sofronisco::
Eu concordo com você que a cultura e a história do nosso país devem ser exploradas (utilizadas) nos Board Game, achei interessantíssimo a temática do seu jogo, (ele seria cooperativo contra os exploradores?). Entretanto a temática de Brazil: Mundus Imperial apesar de não tratar da temática do ponto de vista do explorado, trata de um período na história de nosso país, o que já é um começo.
Sobre as demais temáticas, concordo com alguns comentários que afirma que jogar no papel do líder de algum império, reino, principado etc. ou megacorporação é mais divertida e interessante.
Você citou o This War of Mine (que figura em minha lista de favoritos, realmente amo o jogo) como exemplo de jogo sobre o ponto de vista do explorado, entretanto, apesar de considerar um excelente jogo e um dos mais imersivos que jogo, não o considero um jogo divertido, do ponto de vista de distração e alegria entre amigos, talvez por ser um jogo pesado que você sabe que de fato não venceu. Mas esse é um jogo cooperativo, ter jogos competitivos de explorados (que em tese deveriam estar unidos) contra eles mesmos é meio estranho em minha humilde concepção. E jogos cooperativos em geral tratam de grupos mais fracos contra um grupo, ou “chefão” maligno.
Enfim, acho que a temática desperta sim interesse inicial acerca de um jogo, mas a mecânica, as regras e a interação entre jogo e jogadores é que dá a palavra final, o Azul é um jogo de sucesso internacional, que o objetivo é por azulejos num palácio! Só isso. Mas é um jogo que atrai muitas pessoas, que nem se quer querem saber dessa temática, jogam porque é divertido e ponto. Se o jogo for de temática brasileira, de uma tribo da Polinésia, do escravo, do escravocrata, daquele que a história disse que venceu ou perdeu etc. tanto faz. E mesmo aqueles que buscam saber um pouco mais sobre a história ou temática do jogo em questão, não deixam de jogar um jogo divertido por isso. Jogar com um imperador, líder militar, explorador, escravo, religioso ou político não significa que o jogador seja essa pessoa, ou mesmo concorde com o que ocorreu.
Olá sofronisco!
Bons comentários! Como disse no texto, a intenção não é demonizar a diversão. São as palavras exatas que usei na postagem. A intenção foi sim analisar quais as temáticas ambientam a nossa diversão. Eu jogo todos esses jogos que citei no texto e inclusive os elogio no texto, quase todos eles (com exceção de Spartacus que realmente eu não consegui gostar). Veja que o ponto de reflexão está exatamente na temática.
Sei que a maioria das pessoas podem jogar os jogos sem sequer se preocuparem com o tema, e tudo bem. A questão aqui não é fazer julgamentos individuais para um problema que é estrutural. Tentei trazer uma análise sobre algo mais coletivo, que está numa escala de observação mais distante do gosto do indivíduo isoladamente (no mercado, nas editoras, na produção dos designers, no marketing, na cultura de consumo etc.).
E essa estrutura, que transborda ao nicho do nosso hobby, influencia muito mais a gente enquanto indivíduo do que nós influenciamos esta estrutura. O marketing, por exemplo, dita muito mais o que iremos apreciar do que os consumidores ditam o que o marketing irá hypar! Quem chega no hobby já é forjado num meio onde o que domina é representar nobres e aristocratas e manipular "colonos" para adquirir pontos de vitória. Acaba sendo um processo no estilo "rolo compressor" de formação de gostos, ditado pelo mercado, que é ditado por essa estrutura a qual analiso no texto. A ideia é tentar estimular um processo contrário!
Por exemplo, foram fatores históricos de manipulação de massa que trouxerem o tema Western para o consumo de entretenimento em escala global, trazendo o cowboy como o herói e o ameríndio como o vilão escalpelador (principalmente com o cinema). Até hoje esse é um gosto fundado pela estrutura na cultura de entretenimento mundial e reflete na produção de board games. Não foi o gosto pessoal das pessoas em todo o mundo que influenciou o mercado a reproduzir essa temática western, de baixo para cima.
Mas havemos de convir que mesmo passivamente os boardgames reverberam essa influência da estrutura no gosto pessoal dos indivíduos e que jogos que trazem o "verso do tile" da história possuem muito mais dificuldades em furar esse "bloqueio" criado pela estrutura.
Imaginemos hipoteticamente que o Great Western Trail, por exemplo, fosse produzido para jogarmos com ameríndios expandindo os seus usos territoriais tradicionais e produzindo rotas para o escoamento de seus produtos por todo o continente americano (como sempre fizeram antes da chegada dos europeus, través de uma complexa federação indígena de escala continental, extremamente organizada, com centenas de etnias diferentes, com milhões - isso mesmo, milhões - de indígenas integrando-a). Sobre a competitividade, havia disputa entre etnias? CLARO! Até guerra existiam entre eles. Mas a lógica das disputas e da competição faziam muito menos o uso da violência física ou simbólica do que nós somos acostumados desde criança a fazer. A diplomacia e a reciprocidade sempre foram extremamente priorizadas dentre os ameríndios. Então por que não um jogo competitivo sobre o tema?
Voltemos à situação hipotética. Agora imagine se um jogo desse, o mesmo GWT mas com temática diferente, furasse as barreiras do marketing comum do Western, que trata os ameríndios como criatura perversa, mantendo a genialidade do sistema de mecânicas igualzinho ao jogo atual. Vamos imaginar esse jogo com o clássico parágrafo de 3 linhas da maioria dos jogos euros explicando o tema (isso quando tem esse parágrafo! Rsrs):
"Os jogadores representam produtores ameríndios buscando expandir o uso tradicional dos territórios, melhorando a produção, ampliando o seu comércio e construindo rotas para a integração de seus negócios com a grande federação indígena, que incluíam milhões de Apaches, Cherokees, Navajos, Comanches, dentre outras etnias, distribuídos por todo o continente".
Cairíamos aí em dois prováveis caminhos:
1) Um jogo genial seria esquecido e invisibilizado pelo mercado de board games devido a um preconceito com o tema (como MUITOS!);
2) O jogo seria apreciado no mercado por sua genialidade nos sistemas/mecânicas e os jogadores, mesmo os que nem se importarem com a temática, ao menos pensariam "Carácoles... não sabia que os ameríndios tinham uma mega federação de milhões de indígenas super organizada, com rotas, comércio, negociações, produção, trocas, diplomacias, tratados etc. numa escala continental!".
O caminho 1 seria uma grande injustiça, oriunda de um preconceito, como o é com vários jogos!
O caminho 2, apesar de parecer pouco ganho, já é um grande avanço no processo de emergir culturalmente um saber menos preconceituoso sobre esses povos. Para os ameríndios, isso já é um passo colossal contra o etnocídio que sofrem. Etnocídio, diferente do genocídio, não é a chacina física de determinada etnia, mas a chacina da existência da expressão cultural de um povo. Não deixa de ser menos cruel por isto e a cultura Western foi uma das ferramentas de etnocídio (sobre o tema recomendo o capítulo "Do etnocídio", do livro Arqueologia da Violência de Pierre Clastres. É curtinho, mas revelador!).
Mas, como eu disse, não deixem de se divertir por problemas na temática. Eu não deixo, a não ser que seja uma questão muito grave (como considero em Mombasa, como um exemplo). Só tentei fazer com que, ao curtirem o jogo, saibam ao menos que há coisas no verso do tile. Só saber disso não é pedir muito, né? Para não sermos tratorados de forma alienada pela estrutura.
Certa feita, por exemplo, perguntei ao meu sobrinho de 14 anos se ele conhecia Spartacus. Ele disse: "não é aquele cara escroto que em Roma que saía cortando cabeça de todo mundo nas arenas?" E só! E, de geração em geração, o verso do tile vai ficando cada vez mais apagado, amarelado e empoeirado, infelizmente!
Sobre a competitividade, não vejo problemas tratá-las em jogos que retratam "dominados", pois não é incomum na história essa competitividade, como dei o exemplo dos indígenas norte americanos. Tratado de forma respeitosa, não há problema que isso venha a ser trabalhado nos board games.
Posso dar milhões de exemplos. Por exemplo, a Espanha no período da Guerra Civil em 1936 contra a ditadura de Franco. É um momento de guerra civil, de disputas de mercados, tomadas de fábrica, alteração da lógica de mercado, conflitos armados, disputas por controle e influência de áreas, negociações etc. Havia na Guerra Civil Espanhola, que prefiro chamar de Revolução Espanhola, uma série de segmentos ideológicos unidos taticamente contra um inimigo comum - o fascismo, mas disputando suas utopias durante a Revolução. Republicanos tentando estabelecer uma república nos moldes da democracia representativa, anarquistas (que foram os majoritários nesse período) tentando coletivizar as terras, instituir uma organização federativa de conselhos e sindicatos e autogerir a produção de forma horizontal e comunitária (e conseguiram!), marxistas tentando criar um governo centralizado e administrado pelo proletariado, dentre outras várias ideologias que estavam ali naquele caldeirão de conflitos. Que jogo fantástico seria esse, hein? Competitivo, ou semi-cooperativo (como queira), com mecânicas de influencia de área, mercados, negociação, produção, eventos, construção de rotas etc., pondo os jogadores competindo pelo sucesso de sua "facção", mas tendo que se aliar taticamente a um inimigo comum (uma inteligência artificial no jogo, por exemplo) extremamente belicoso.
E um jogo de escapar tratando a temática quilombola? Se quisermos algo "menos" conflituoso e belicoso, podemos pensar em outras coisas. Houveram quilombos que buscavam melhorar a própria produção agrícola e de ferramentas, saqueando cargas portuguesas e defendendo o próprio território de invasões, para produzir riquezas e comprar a alforria de mais escravizados, libertando-os e ampliando o próprio quilombo. Por que não um jogo assim, onde cada jogador seria um quilombo tentando alforriar escravizados de sua nação para expandir a própria comunidade? Seria um jogo no estilo "fazendinha", com contratos, negócios, economia apertada e com um tema muito legal que traria a libertação como máxima.
Veja aí o jogo do Friedemann Friese, trazendo como tema trabalhadores explorados e estressados tentando relaxar! Não é etnico, como os exemplos que eu dei, mas traz aí o outro lado dos mundos do trabalho. FANTÁSTICO
Enfim... com criatividade, que não faltam aos designers, tudo é possível! Certamente, há como trazer boas doses de diversão, sem precisar ter o sofrimento de This War of Mine, mas com temas que, até para os mais desatentos à temática, trariam ao menos um conhecimento mínimo sobre o que tem sido comumente escondido no universo corriqueiro de nosso hobby!
Desculpa o texto longo!!! Adorei suas contribuições ao debate!
E sobre This War of Mine, realmente não é um jogo que se pode chamar de "divertido". Mas que jogo pedagógico, não?! Acho os boardgames uma ferramenta fantástica para o aprendizado. Eles ensinam, mesmo que "sem querer" e sem terem sido pensados com essa "intencionalidade".
Abraços e mais uma vez obrigado pela contribuição!!!!