Coup (2012), Stone Age (2008), Azul (2017), Dixit (2008), Pandemic (2008), Carcassone (2000), Catan (1995), Power Grid (2004), 7 Wonders Duel (2015), Takenoko (2011)… O que esses 10 jogos têm em comum? Quanto à mecânica, são muito mais diferentes que parecidos… Quanto ao tema, igualmente. No entanto, algo os costura para além de uma simples lista: o fato de que são potencialmente capazes de enfrentar a monotonia que paira sobre o “mundo dos board games das grandes lojas de rede”, que há décadas investem nos mesmos jogos.
Sempre que entro nas Lojas Americanas, me dirijo quase involuntariamente para a seção de jogos – invariavelmente perto dos brinquedos –, com a esperança talvez de me deparar com alguma novidade… Mas é sempre a mesma coisa: Perfil Isso, Perfil Aquilo, War, Banco Imobiliário, Uno, Combate, Jenga, Batalha Naval, Scotland Yard, Jogo da Vida… Cheguei a encontrar, duas ou três vezes, um Ave Cesar, um Puerto Rico, um Istanbul ou San Juan, mas estavam com as caixas bem estragadas, evidência de que ou foram parar ali por isso mesmo ou se deterioraram na própria loja, vítimas do longo tempo de exposição nas prateleiras e da rejeição geral, afinal o público que ali vai não os conhece nem os quer, acostumado que está com “outros” jogos.

Muito embora reconheça o valor dos jogos citados no parágrafo acima, e ciente de que os mesmos ainda guardam certa importância como formadores de consciências lúdicas, Coup, Stone Age, Azul, Dixit, Pandemic, Carcassone, Catan, Power Grid, 7 Wonders Duel, Takenoko e tantos outros poderiam, se comercializados pelas grandes lojas, não só diversificar as ofertas e possíveis escolhas, mas também refinar o gosto tanto dos jogadores ocasionais quanto das demais pessoas, que, mesmo sem o hábito de jogar, fazem-no esporadicamente, por algum motivo, ainda que seja para estar em meio aos filhos… Sem falar que, assim, os preços baixariam, pois a produção aumentaria em conformidade com o aumento das vendas.

Então, nos perguntemos: por que isso não acontece? Por que o público comum desconhece o potencial tanto educacional quando lúdico de um jogo como Azul? Ou Dixit, que nos obriga a pôr em ação nossa imaginação, tão corroída pelo trivial cotidiano de telenovelas, noticiário político, fofocas e programas de auditório? A questão é meramente comercial? Ou existe, por baixo de um fino e imperceptível véu, uma intenção mais sutil, que é a mesma que confina as pessoas, e a cada dia mais, à música, aos livros e aos filmes comerciais, que são julgados não por sua qualidade estética, mas sim por sua capacidade de (i)mobilizar multidões? Os jogos que nós, adeptos do hobby, cultuamos não estariam também sendo prejulgados como “incompreensíveis e excessivos para as massas”? Creio que sim: ao decidir por comercializar somente jogos da Grow, da Hasbro e da Estrela (os mais elementares do mercado, com duas ou três exceções), as grandes lojas estão, talvez por ignorância ou comodismo de seus gerentes, direcionando os jogos de tabuleiro para dois públicos bem específicos – pais e filhos; e, na melhor das hipóteses, não há como negar que neste direcionamento vai muito de prejulgamento: a ideia de que a diversão mais óbvia e o processo de educação mais trivial são os únicos interesses despertados pelos jogos de tabuleiro. Em outras palavras: o público geral é visto como uma massa única e indivisível, incapaz de voos maiores e que se alimenta do mesmo caldo.

E atentem para o fato de que esta é a época em que mais se fala em diversidade, liberdade de escolha, direitos individuais, gosto pessoal… Na verdade, em boa parte do dia isso é só discurso, a face do apresentador de tevê que vemos e que está sobre a face que desconhecemos.
Recentemente joguei Coup com amigos e alguns familiares, e foi sensacional ver como as pessoas “atuam” com este jogo, como saem de seu eixo e se tornam capazes de adotar atitudes, expressar pensamentos e falar frases que no dia a dia evitariam. Este jogo é como uma sessão de psicanálise: não há temor, nem cuidados, nem arrependimentos. Largamos sobre a mesa mentiras, blefes, intenções e, depois, ao jantar, as coisas voltam a ser o que são. Mas, lá dentro, no íntimo de cada um de nós, creio, ficou a remota compreensão de que as sociedades, passados séculos e séculos, continuam a ser o que sempre foram: um acúmulo de mentiras, intensões, traições, atos de egoísmo, deslealdades e disputas de poder. Coup é Paris, Brasília e Washington; Moscou também e Pequim. É o tipo de jogo que desmascara a humanidade e nos faz compreender por que somente os mesmos jogos inócuos chegam às grandes lojas. É um meio tão massificado quanto qualquer outro, regido pelo dinheiro e pelo desejo, ainda que sabiamente disfarçado, de que as pessoas continuem onde estão e o que são: massa modelável, multidão.

Os jogos de tabuleiro há muito perderam a inocência. Mas o seu público, em geral, não. Porque prevalece a ideia de que deve-se oferecer ao público o que ele “pode” sorver, de modo a não engasgar nem a si mesmo nem ao sistema, a orquestra sociopolítica que nos rege e nos confina ao cotidiano comum. Aconteceu com a literatura, a música, o cinema… Prejulga-se o público dois ou três pontos abaixo do seu verdadeiro potencial, e como ele se acomoda, talvez porque na escola não lhe ensinaram a ter senso crítico, mas sim a seguir tendências, aquilo que se lhe reserva torna-se a única via ou único objeto possível, absorvidos sem consciência, como se, sedentos e exauridos, mergulhássemos num lago de água fresca.
Não há um dia sequer de minha existência que, jogando ou lendo ou vendo filmes ou somente vivendo a trivialidade cotidiana, eu não me lembre de uma notável frase de T. S. Eliot: “não se deve descer a arte ao nível do povo; deve-se elevar o povo ao nível da arte”. Creio que poucos governos terão oferecido aos seus cidadãos tal cenário. Muito menos o nosso. E o fato de que os “nossos” jogos continuem os mesmos por décadas é uma evidência de que também comercialmente somos “uma política”: há sub-intenções em qualquer ação ou propósito. Por que oferecer à população a chance de imaginar livremente com Dixit? Mas, se Dixit trouxesse em cada carta um rosto célebre, desses que aí estão pelas redes sociais e na tevê, aí seria diferente… Ora, ora, ora, mas que ideia…! Ao mesmo tempo nem boa nem ruim, apenas elementar. Essa é a diferença entre “aqueles” jogos vendidos maciçamente e os que nós jogamos. Esse é o propósito, o lado obscuro da moeda: (re)produção, clichê. Ninguém é levado a sério com ideias originais, já dizia Mário Quintana, pois o lugar-comum é a base do sucesso. “Palavras, palavras, palavras…”
“– Mas que tal uma partidinha de War?”
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas e gestão de mão.
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