Comecei no hobby em 2012 quando tive meu primeiro contato com um Boardgame moderno, no caso o Carcassonne. Até então, como a grande maioria aqui, o meu contato com jogos de tabuleiro se restringia essencialmente aos quatro cavaleiros do apocalipse: Jogo da Vida, War, Banco Imobiliário e Detetive.
Naquele dia, um amigo do grupo tinha comprado o Carcassonne e eu cheguei na casa dele quando eles já estavam no meio de uma partida. Eu não entendi nada, eles estavam jogando um jogo, mas não tinha tabuleiro... o tabuleiro estava sendo construído à medida em que o jogo progredia, além disso, os bonequinhos, que futuramente eu descobri que eles se chamavam meeples, não eram de plástico, mas de madeira. Aquilo explodiu a minha mente, foi amor à primeira vista. Não muito tempo depois já tinha a minha cópia do Carcassonne, meu primeiro Boardgame moderno.
O bichinho do hobby já tinha me mordido, então na sequência chegaram para a família: Catan, Ticket to Ride, Munchkin, SmallWorld, Puerto Rico e Zombicide. Acredito que esse tenha sido um caminho natural pra muita gente que aqui se encontra. Na época eu assistia muito aquela série Table Top com o Wil Wheaton, essa era a minha fonte principal e quase que única de novos boardgames. Além de não ter um critério específico, tudo era novo, tudo era interessante. Desde o Euro até o Ameritrash, era tudo fascinante. Até jogos que não são nem considerados jogos de fato por aqueles que estão mais adentrados no hobby, como o caso do Munchkin que é mais visto como uma experiência (bem ruim) do que um jogo propriamente dito.
Hoje eu já não tenho mais aquela alegria que eu tinha ao jogar o Munchkin, mas mantenho uma memória afetiva muito intensa. Devo muito àquelas cartinhas toscas e desequilibradas, muitas risadas, muitos bons momentos. Valeu o dinheiro investido. Por uns 5 anos eu não tive mais do que 10 jogos ao todo, eu não sabia quais eram os lançamentos mais quentes, qual era a hype, eu mal conhecia comunidades de jogos como Ludopedia ou Boardgame Geek. A ignorância é uma bênção porque nesses 5 anos eu joguei, e joguei muito cada jogo que eu tive. Eu troquei a chave uns 2 anos atrás quando uns amigos passaram a comprar uns jogos diferentes e isso aguçou a minha curiosidade. Passei a pesquisar boardgames pesadamente, em algumas semanas eu já era amigo de infância dos principais influenciadores desse universo, sobretudo os gringos.
Em 2 anos eu quadrupliquei minha coleção. Tinham mais jogos entrando do que eu conseguia jogar. Até meu grupo de jogos estava saturado, "a gente mal jogou esse e já tem outros 2 a caminho? Vai com calma, cara". Hoje eu tenho uma Shelf of Shame, ou estante da vergonha, de jogos que eu ainda nem consegui jogar. Essa lista já foi bem maior. Hoje tem uns 5 jogos que eu ainda não joguei e não me orgulho nem um pouco disso. Eu tenho material pra ficar o resto da vida jogando todos os meus jogos semanalmente sem enjoar. Depois de rodar toda a lista, o primeiro jogo jogado já estaria reciclado na minha mente e teria aquele sentimento de jogo novo.
Mas ainda sim eu queria mais. A minha lista de desejos já beirou os 60+ jogos, sendo que na época eu tinha uns 20 jogos na minha estante que eu mal tinha aberto. Eu comecei a perceber que algo estava errado e deixei a minha cegueira de lado quando outro dia meu irmão pegou a caixa do SmallWorld e perguntou há quanto tempo eu não jogava ele? Fazia alguns anos já. Colocamos na mesa pra jogar. Foi um boom novamente. O mesmo feeling que eu tive em 2012 com o Carcassonne. Eu parei pra refletir na hora "nossa, Smallworld é muito bom" e o bicho tava na minha estante esse tempo todo, mas na minha compulsão era como se o jogo que eu não tenho fosse infinitamente melhor que todos os meus jogos somados. Seguramente não é verdade, mas eu estava cego pelo vício consumista.
Um apaixonado pelo hobby não vê apenas jogos, vê experiências. De fato, eu queria experimentar mais e mais, explorar todo esse universo por fronteiras nunca antes alcançadas, mas isso tem um preço. Um não, vários. Você paga não só com dinheiro, mas com espaço na sua estante, tempo pra jogar, pra aprender a jogar, pra pesquisar, ou ainda culpa por ter comprado e não jogado.
Foi aí que a ficha começou a cair e eu passei a fazer um processo reverso. Eu peguei aquela lista de 60 jogos e fui cortando um a um. A minha pesquisa era pra me convencer de que eu não precisava daquilo. Em tese, eu não precisava de mais nada, tenho mais jogos do que eu consigo jogar. Acontece que ninguém para de fumar assim do nada, então precisei de tempo e determinação para amadurecer a ideia.
No começo era bizarro, era como se eu tivesse lutando contra meus demônios interiores e de fato meio que estava. Sempre que eu cortava um jogo da lista, era como se eu tivesse arrancando uma costela ou algo assim. Parte de mim estava se perdendo. Parecia que eu tava abandonando um filhotinho de cachorro numa estrada deserta. Pouco a pouco eu ia desapegando. Eu ainda assistia Reviews de jogos, mas eu já conseguia nem me coçar pra botar aquele jogo na lista. Depois de todo o esforço que eu tive pra tirar? Nem pensar.
Fora que daqueles 60 jogos, muitos deles eram tecnicamente redundantes. Eram jogos que faziam essencialmente a mesma coisa, mecânicas parecidas, feeling de jogo virtualmente iguais, só que um era num contexto x e o outro no y, mas um era genérico do outro.... e eu queria os dois.
Quando a lista chegou aos 20 jogos que eu tanto desejava, foi ficando tudo mais difícil, era muito difícil se desapegar da elite dos jogos que sobreviveram ao pente fino. Porque, afinal, se aqueles 20 sobreviveram a 40 cortes, coisa ruim eles não eram. Mas ai que tá, quanto eu precisava daquilo? Não é porque é bom que você precisa ter. Milhares de jogos são lançados todos os anos, centenas deles são decentes, dezenas deles são bons e alguns são realmente bons. Se você seguir por esse caminho obsessivo e tomar conhecimento de tudo que você nunca vai ter, você surta.
Eu comecei um acompanhamento psicológico. Não especificamente por essa razão, outros traumas a parte que ocorreram na minha vida, mas certamente eu me abri a respeito da famigerada lista de Boardgames em algum momento das sessões. Felizmente eu ainda não estava num estágio onde eu tava abdicando de fazer outras coisas em prol dos jogos exclusivamente, ou ainda gastando um dinheiro que eu não tenho só pra isso. Aos poucos eu fui desapegando da elite dos 20, que se tornou a elite dos 10. O famoso top 10. Ainda sim, havia muita resistência em cortar mais e mais. Quebrar a estrutura do top 10? Poxa, mas eu super preciso desses 10 jogos, eu só tenho 50, não dá nem pra jogar nada...
Parece piada, mas foi muito complicado pra mim. Hoje minha lista de desejos tem 6 jogos. Esse número me parece razoável dentro do meu patamar e minha consciência está tranquila em querer apenas 6 jogos para completar minha coleção. Eu evito usar o termo coleção porque parece que o hobby não é jogar, mas acumular jogos. Reconheço que por 2 anos foi mais isso do que jogá-los de fato. E depois de muita luta interna, eu não tenho mais vontade de aumentar esse número em tempos futuros. Quero voltar à inocência de 2012 quando eu tinha poucos jogos e aquilo era mais do que suficiente.
Eu não me vejo me desfazendo dos jogos, mesmo aqueles que eu não gosto tanto assim quanto antigamente depois de amadurecer e refinar meus gostos, porque eles pertencem a categorias de jogos. Quando eu jogo com amigos x, são jogos pesados, amigos y, jogos médios, família, jogos leves. Se eu mostrar um Munchkin pra certos amigos, eles fazem cara de azedo, se eu mostro pros meus primos, é a alegria da reunião de família. Ao passo que se eu mostro pra eles um Mombasa, eles torcem o nariz, e praqueles amigos, eles já chegam como quem diz "desafio aceito". Se eu só tenho euro médio/pesado, pra minha família eu não tenho jogo nenhum e vice versa para os jogos leves e festivos, considerando meus amigos. Felizmente eu me identifico com ambos.
Para você que leu a minha história até o final, alguns aprendizados que tirei disso tudo:
1 - Não há nada de errado com quem faz Review de jogos. Não demonizem essas pessoas quando elas adotam práticas não muito bem vistas como enaltecer um jogo muito mais do que ele merece de fato porque eles têm segundas intenções por trás daquele review, como por exemplo manter o vínculo empregatício com a editora que pagou por aquele review. É um negócio. É assim que o mercado funciona, é uma forma de propaganda. Você nunca vai ver na televisão uma propaganda falando como aquele carro é uma bosta e você não deveria comprá-lo, mas mesmo assim você não fica com raiva do garoto propaganda por que ele coloca muito mais confete do que o carro tem pra oferecer. A diferença é que quando falamos de boardgames, estamos envolvendo a nossa dimensão afetiva e quando vemos um Review, parece que o influenciador tá falando com o seu coração, mas na maioria das vezes trata-se de uma ilusão e quando você se depara com a realidade dos fatos, você converte esse sentimento em raiva orientada para a pessoa que coloca a cara naquele review. Ao invés disso, apenas se torne mais consciente de seus atos repensando cada uma de suas escolhas. Olhe o seu entorno, você realmente quer esse jogo? Você realmente precisa dele? Você vai de fato jogar? Você tem jogado os outros jogos que você falou pra si mesmo que ia jogar tanto quanto você gostaria quando você viu o review dele e agora ele tá lá parado na estante acumulando teia? Você compra novas experiências e aventuras ou simplesmente desejos impulsivos e ilusões?
Observação: por mais que o influenciador esteja sendo 100% honesto de suas convicções e desapegado da influência da editora, o fato dele aprovar o jogo é suficiente pro jogo ser realmente bom para o seu gosto pessoal? E vice versa, porque ele não gosta do jogo, o jogo se torna instantaneamente ruim? Reflita
É fato que quem faz review tem mais quilometragem nessa estrada, já viu mais coisa, já tem um senso mais apurado, mas às vezes esse é justamente o problema. O seu gosto não está amadurecido ao ponto. O cara gosta de 18xx e seu coração ainda fala com o Ticket to Ride. Ele não é melhor do que você por causa disso e nem você é obrigado a um dia gostar de 18xx. Não é um caminho de mão única. Parem de gourmetizar jogo pelo peso. Um jogo pesado não é necessariamente bom. Bom e ruim são medidas abstratas para formação de critérios pessoais.
2 - Em uma segunda escala, não é porque você tem o jogo base que você tem a obrigação moral de ter a expansão. Primeiro que se o jogo precisa da expansão pra ficar realmente bom, ele já tá errado. É um caça níquel. Outra, você jogou esse jogo até enjoar ao ponto de falar que você PRECISA daquela expansão pra dar uma sobrevida a ele? Fora que você só tem esse jogo de bom? De todas as dezenas, talvez centenas de jogos que você tem e nem lembra que tem. Às vezes o que o seu jogo precisa pra ganhar uma sobrevida é que você jogue outros jogos e deixe o arado descansar fazendo uma rotação de culturas. Sem mencionar que a expansão não necessariamente vai deixar o jogo melhor. Na verdade, na maioria das vezes é o oposto, o jogo fica mais complicado, com regras demais, camadas demais para manter a atenção, demorado demais, desmotiva novos jogadores ou jogadores não tão sérios, etc. O tiro pode sair pela culatra e a expansão pode ser o último prego pra enterrar um jogo desgastado pois agora que você não quer jogá-lo mesmo e você gastou dinheiro com isso.
Acho que a melhor coisa que eu obtive quando comecei a desapegar dos meus impulsos consumistas foi o prazer de redescobrir gemas perdidas em meio ao que eu já tinha. Tome cuidado com o ponto de saturação. Aproveite o que você já conquistou. Saboreie mais os seus jogos. Profissionais no meio dos reviews que jogam mais de uma centena de jogos novos a cada ano dificilmente vão poder digeri-los corretamente.
3 - Qual é o propósito de uma empresa? Ganhar dinheiro, sempre. Não importa se é vendendo flores ou armas, é sempre ganhar dinheiro. O mesmo vale para Boardgames. Parece óbvio, mas sempre que compramos um boardgame ruim porque caímos no conto do vigário ou a cigana te enganou, nós não percebemos esse fato. Até onde eu me lembro, a última grande revolução em design de boardgames foi o Dominion com a criação do Deckbuilding. Dali em diante ninguém arriscou mais, todo mundo se manteve ali naquela zona de conforto, aquela área segura onde você pega o que "tá dando certo". Quando uma empresa de boardgames faz uma aposta segura, você fica com aquela sensação de que você conhece aquele jogo de algum lugar, rola um processo de associação ali. "Hmm, isso aqui parece com o jogo A, esse elemento é do jogo B, esse aqui é uma mistura de C com D e J". Então é muito mais fácil pra empresa te vender uma aposta segura recheada com firulas tipo miniaturas bacanas, um tabuleiro bonito, itens extras, um monte de reviewer falando maravilhas desse jogo, quando na verdade ele é um híbrido de um monte de coisa que você já tem, já viu, já jogou e muito provavelmente você não precisa daquele Frankenstein, do que a empresa chegar e criar algo genuinamente revolucionário onde te faça parar e pensar "olha, eu realmente gostaria de ter isso na minha coleção, eu nunca vi nada igual". Isso é um em um milhão quando que na prática, quando você se deixa levar por seus impulsos, você tá comprando é um monte de mais do mesmo e chega um momento irônico que você não quer jogar o jogo A porque você tá enjoado de jogar o B que é igual, mas "é diferente".