Minha primeira vitória em Power Grid tornou-se para mim inesquecível. Aconteceu na última rodada e se originou de uma usina que arrematei e com a qual, na fase de aquisição de recursos, esvaziei o depósito de carvão, impedindo meu adversário de iluminar na totalidade a sua rede de casas; e, assim, ele acabou por iluminar só 16 cidades, ao passo que eu iluminei 20. Essa reviravolta, que poucos jogos proporcionam, foi incrível e deu uma perfeita ideia do que é este jogo. Em tese, passei toda a partida em desvantagem, economizando, comprando com cautela e parcimônia, construindo cidades apenas na quantidade que fosse possível iluminar, sem exageros. É um jogo econômico e, assim, a base de sua estratégia é o equilíbrio de custos, muito embora seja também um jogo de corrida, pois se encerra quando se atinge um limite específico de cidades construídas, as quais devem estar iluminadas, de preferência em sua totalidade.

Se o leilão inicial ─ através do qual se obtêm as usinas que vão, sob a administração de cada jogador, iluminar as cidades ─ é a força motriz de Power Grid, seu coração é a esteira de comercialização de recursos. É ali, com seu mecanismo de equilíbrio de oferta e procura, que as partidas se decidem. Do carvão ao urânio, nada é permanentemente barato nem permanentemente caro. Se é óbvio que no início preferimos as usinas movidas a carvão, recurso àquela altura bem mais em conta, ao final vamos optar pelas de urânio, cujo preço caiu consideravelmente. Essa esteira é tão impressionante, que é como se tivesse vida própria. Como se fosse um órgão pulsante, em perene transformação, à revelia dos jogadores… Olhamos para ela, e é uma configuração específica; olhamos 50 minutos depois, e ela se tornou outra coisa. Com efeito, um fenômeno.

Todavia, Power Grid é muito mais que um exercício de mecânica. Além de profundo estrategicamente, pois são muitas as alternativas circunstanciais ao longo de uma partida, oferece uma profundidade temática, que nos leva a uma “segunda experiência” e que vai além do domínio e do eficaz uso de suas regras. A segunda experiência existe quando o mecanismo de ações do jogo se harmoniza perfeitamente ao seu tema. É algo que salta da totalidade do jogo e nos sensibiliza. Não pode ser explicado a contento, e nem todas as pessoas o pressentem. Vai depender de muita coisa (sensibilidade, experiência, despojamento), mas está lá: o jogo o oferece e traduz, como a representação que é de uma realidade. Obviamente que em alguns jogos isso é mais evidente e reconhecível. Noutros, mais sutil. Os melhores jogos são esses, porém; e, assim como não devemos ler a literatura só pelo assunto ou pela forma que o desenvolve, não devemos venerar um jogo somente pela sua mecânica ou pelo seu tema: ambos, assunto e mecânica, devem estar de acordo, em harmonia, de modo que se exercite um ao passo que se avança no outro. Isso proporcionará uma experiência que vai além do cumprimento de regras com vistas a suplantar os adversários. Possibilitará ao jogo se tornar um objeto novo, inserido no limiar entre o “objeto lúdico” (diversão apenas) e o “objeto artístico” (movimentação de sentidos), como um romance, um poema, uma canção, um quadro. Não esqueçamos que o tempo da supremacia dos jogos abstratos puros se foi: os jogos de tabuleiro modernos são antes de tudo narrativas, cortes temporais de um período histórico ou de uma determinada atividade humana, o desenvolvimento de uma ideia ou assunto, com começo, meio e fim precisos. Um exemplo inquestionável: “No Ano do Dragão” (2007), de Stefan Feld. Mês a mês, ocorre um novo acontecimento, até que o Ano do Dragão se cumpra, reduza drasticamente a população do império e faça decair os palácios, o que impõe consequências graves a todos os jogadores, deixando-os de pires na mão, mas que, ainda assim, não impede que haja ao final um vencedor. Este, a rigor, foi aquele que melhor se preparou para transpor tais adversidades. Há muitos outros jogos assim, e aqui cito apenas mais dois que estão entre os que mais admiro: “A queda de Pompeia” (2004), que resgata o período da cidade romana que vai da sua reconstrução depois do terremoto (62 d. C.) ao seu soterramento pela lava do Vesúvio (79 d. C); e “K2” (2010), que representa a aventura de alpinistas na tentativa de alcançar o cume da chamada Montanha Selvagem.
Power Grid foi um dos primeiros jogos que comprei, antes mesmo de jogá-lo. Só o conhecia de pesquisas e comentários, muitos dos quais bem elogiosos. Outros, porém, o depreciavam sem piedade e, quando seus críticos não encontravam pontos negativos em seu mecanismo ou tema, partiam para a sua arte, que em geral é vista como insossa, nem um pouco atraente. Ora, se temos boa memória ou estamos acostumados a olhar para o passado (como sujeitos conscientes de que aportamos num mundo preexistente), vamos reconhecer que a arte de Power Grid localiza-o num tempo bem específico: os anos 1950! E o motivo é que esta foi a década dos eletrodomésticos e dos brinquedos elétricos. Ou seja, a energia domiciliar ganhou fortes elementos que a justificavam. Como as donas de casa iriam comprar eletrodomésticos, se não houvesse energia em casa? E seus filhos, por que ganhariam brinquedos elétricos no Natal e em seu aniversário, se não os poderiam pôr para funcionar? Portanto, a arte de Power Grid tem um duplo sentido: é perfeitamente racional e coerente quanto ao tema, bem como uma homenagem a uma década de fulgor existencial, consequência direta do Pós-Guerra, os primeiros anos “sensatos” depois de muito sangue derramado. É de Albert Camus a expressão lapidar que define o século XX, especialmente na sua primeira metade: “Um século úmido”. Era natural que nos anos que se seguiram à catástrofe (marcada pelo Holocausto e pela aniquilação de Hiroshima e Nagasaki) que foi a Segunda Guerra Mundial o mundo desse um salto, e que a criatividade humana se superasse em vários campos do conhecimento, pois “ter sobrevivido” era “ser possuidor” de uma energia incomensurável. Em suma, a arte de Power Grid é a celebração de um decisivo momento histórico.

Power Grid é um jogo sobre o proveito da energia. E este proveito é real e sempre será. Quanto mais o mundo avança e evolui, mais energia se consome, e novas alternativas de produção são e serão criadas, se quisermos que nossos computadores, celulares, tablets, tevês, aparelhos de som, rádio, eletrodomésticos, brinquedos, elevadores, aparelhos hospitalares, maquinários industriais etc. continuem funcionando e provendo a sociedade. Power Grid é um jogo que traduz uma das grandes necessidades do nosso tempo, se não talvez a maior: estar ligado, conectado. E é por isso que nos fascina: sua essência está em nós, ainda que inconscientemente, ele representa anseios e corrobora desejos, ressaltando-se ainda que é um excepcional exercício de habilidade comercial. Sentimo-nos, sem dúvida, magnatas da energia, quando, através de nossas ações ─ bem sucedidas, é claro! ─, fazemos existir aquela rede de casas iluminadas.

Só uma coisa falta a Power Grid… Dois tons de cores para cada conjunto de casas, um mais vivaz e outro mais contido, desmaiado, de modo que as residências, quando iluminadas, se sobressaíssem de suas irmãs ainda apagadas. Mas isso seria, talvez, um refinamento supérfluo, que exigiria a duplicação de seis conjuntos de componentes individuais. Sim, claro… Mas, ainda assim, lembremos o que o escritor Dyonélio Machado afirmou num de seus livros: o avanço da civilização implica atribuir importância às coisas supérfluas.
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas e gestão de mão.
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