Boa parte dos jogadores, em especial aqueles que preferem exercitar o raciocínio e elaborar grandes estratégias, condena os jogos de corrida. Salvo talvez o clássico A Lebre e a Tartaruga (1973), de David Parlett, ganhador do conceituado prêmio Spiel des Jahres em 1979, em catálogo até hoje (Devir, 2014) – e que está na memória afetiva de muitos jogadores –, todos os demais jogos, com uma ou outra exceção, sofrem críticas – algumas bem severas. Uma das mais frequentes é a lacônica: “muito dependente da sorte”. Ora, os jogos de corrida são pura diversão: a entrega voluntária do sujeito à dança da fortuna, ao fluxo do rio que corre.
Não posso – como creio que deva ocorrer a muitos jogadores – jogar Xadrez todo o tempo (não sou enxadrista) ou Carcassone (2000), que é bastante estratégico, embora muitos acreditem que não, ou Hive (2001), Onitama (2014), Puerto Rico (2002), Stone Age (2008), Splendor (2014), Caylus (2005), estratégicos também, cada um à sua maneira. Às vezes, o que desejo num jogo é que ele simplesmente me deixe ao sabor do acaso, pois sei que, mesmo assim, será diferente. “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, sentenciou Heráclito. Sem dúvida. E se o jogo é do tipo em que a sorte interfere, não haverá nunca duas partidas iguais. A falta de controle num jogo de corrida é, então, neste caso, um ganho, um mérito. E o sabor da vitória, ao fim, será duplo. Claro que é lisonjeiro ganhar por nossos próprios esforços e com a estratégia que, doravante, terá nosso nome, mas a evidência, afinal, de que a sorte esteve do nosso lado é tão gratificante quanto. É quase como a comprovação da existência de uma entidade divina que zelasse por nós e permitisse que atravessássemos ilesos uma rua escura e deserta às três horas da manhã…
E há, por outro lado, jogos de corrida com altas possibilidades estratégicas. Creio que um dos mais admiráveis entre os mais recentes é Camel Up (2014), do Steffen Bogen. A princípio é só uma corrida de camelos em volta de uma pirâmide egípcia. Mas é muito mais que isso. É um jogo de apostas. Ninguém assume um camelo: o máximo que o jogador consegue é, estrategicamente, com o tile de Deserto, fazer com que ele avance ou retroceda uma casa. Isso porque apostou nele ou contra ele. Pode-se apostar até mesmo nos cinco camelos, se o jogador tem dinheiro suficiente.

A estratégia para vencer passa também por um respeito tácito por aquilo que a sorte pode nos trazer, de bom ou ruim. Obviamente que alguém pode argumentar que não é estratégia, se devemos contar com a sorte. A isso eu responderia que é possível elaborar uma estratégia com base no que a sorte pode nos ofertar: ainda assim é estratégia! Camel Up é perfeito nisso. Já ganhei partidas apostando na possibilidade remota de o último camelo chegar em primeiro lugar, se com o resultado do dado ele subisse nas costas do camelo à frente, que, por sua vez, estava em cima de mais três. No lance seguinte, deu o dado do camelo que carregava os outros quatro, e todo o grupo avançou, com o vencedor sendo então o que fora o último, já que, estando no alto da “torre” de camelos, ele agora passara a ser o primeiro. Essa mecânica, que bem expressa as variações insuspeitáveis de um acirrado derby, permite estratégias ousadas, tanto quanto uma confiança cega em nossa sorte pessoal. É assim, ou não seria um jogo. Seria um enfadonho desfile cívico, daqueles bem soviéticos.

Em Camel Up, portanto, nenhuma configuração de início chegará ao final. Não raras vezes vence o camelo menos provável: o último. E mesmo aquele que partiu primeiro e depois ficou para trás pode chegar a vencer. Ou outro, que vinha sensatamente pelo meio, em marcha lenta, burocrática. Em Camel Up tudo muda de uma rodada para outra. Nada permanece o que é. Tudo, cada “desenho” da corrida, é efêmero. Expressa, neste sentido, a própria mutabilidade das coisas. Das rochas nas montanhas aos gostos pessoais, tudo muda, evolui, regride ou se transforma. Não olharíamos com admiração as ruínas de uma edificação qualquer, se não soubéssemos que foram outra coisa: que viveram tempos melhores, com pessoas transitando por seus cômodos em dias de festas ou gozando de merecido repouso. Não olhamos nas ruínas o que elas são, mas o que foram, o que deixaram de ser. O tempo que passou sobre elas e nos trouxe até aqui.

Em Camel Up aposte no que ainda não existe. O que está ali, diante de nós e em volta da pirâmide, está em franca mutação. Invariavelmente terminará da forma que menos se espera. E a estratégia está em apostar nesta transformação, por mais absurda que pareça à primeira vista. É por isso mesmo um jogo fascinante! Muito mais que um jogo de corridas. Muito mais que um jogo de apostas. A sorte o rege, a estratégia o transforma, a mutabilidade o dignifica. E há em tudo isso um quê de aleatoriedade que é como o sal da vida.
Poucos jogos não serão esquecidos; menos ainda vão se filiar ao grupo daqueles que aí estão há séculos. A simplicidade de meios de Camel Up, os componentes que podem ser reproduzidos ou sofrer adaptação (tabuleiro, pirâmide, os dados, os tiles, os próprios camelos), tudo favorece a sua permanência, a sua transformação. E o fato de que desperta fascínio favorece que se transforme. E permaneça.
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas e gestão de mão.
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