Teotihuacan revisita um cenário comum para os jogadores de tabuleiro moderno: os povos da região da América Latina ricos em cultura, misticismo e uma intrigante história de civilização. Não à toa os pré-colombianos estão presentes em Mexica, Tikal e Cuzco (originalmente com nome de Java), os três famosos jogos da trilogia das máscaras da dupla Michael Kiesling e Wolfgang Kramer. O próprio designer Daniele Tascini já havia visitado o tema anteriormente em Tzolk’in, um de seus maiores trabalhos até então. Até então.
Sem muito alarde, Daniele vinha trabalhando em alguns projetos junto à
NSKN Games e em meio ao lançamento de outro jogo da mesma editora (
Dice Settlers) numa campanha no
Kickstarter no ano passado,
Teotihuacan ganhou força — o anúncio mesmo já tinha sido feito antes — e a atenção de toda a comunidade. Primeiro pelo autor, que tem no currículo o já citado
Tzolk’in, além de outros bons jogos como
As Viagens de Marco Polo e
Council of 4. Segundo, óbvio, pelo tema.
Teotihuacan é conhecida como uma das maiores cidades que já existiu entre os impérios maia, inca e asteca, sendo na verdade uma cidade composta, provavelmente, por um misto de todos esses povos na região dos toltecas (não vou me alongar no contexto histórico dessa vez porque muito dessas informações são contraditórias entre as fontes que pesquisei). O significado do nome, “onde nasceram os deuses”, ajuda a compreender porque há tanto mistério em volta de uma cidade que foi, em seu auge, maior do que muitas cidades europeias da época, chegando a ter entre 120 a 200 mil habitantes entre os séculos V e VI. Uma civilização tão evoluída tecnologicamente pra época e ao mesmo tempo tão ligada às suas crenças que se tornou um marco histórico e é conhecida por suas enormes pirâmides.
O jogo se passa durante a construção da
Pirâmide do Sol, a terceira maior pirâmide do mundo em volume, e ao longo de três grandes eclipses solares, o que já evidencia o forte apelo temático do jogo. Se os eclipses exerciam grande apelo religioso nos povos da região, no jogo eles desencadeiam as fases de pontuação do jogo: no final de cada eclipse os jogadores pontuam tudo o que fizeram até então e se preparam para a fase seguinte. Entre essas fase, o jogo se alterna em rodadas em que cada jogador move um de seus trabalhadores em sentido horário para um espaço de ação de um belo e completamente funcional tabuleiro.
Os trabalhadores são dados que, como tem se tornado algo bastante relevante, não são rolados ao longo do jogo, mas marcam a habilidade desse trabalhador — eu juro pra vocês que tive essa ideia pro meu jogo
Rio 1808 antes de conhecer
Teotihuacan. Os dados começam geralmente com a face 1 e, ao realizar uma ação de um espaço, o dado evolui para o próximo nível, até chegar em 6, quando acontece a ascensão, algo que vou explicar mais pra frente.
O mecanismo do jogo é bem simples, pra dizer a verdade. Você irá coletar recursos (madeira, pedra e outro) e cacau (a moeda do jogo) e avançar em trilhas de culto e “comprar” tecnologias para melhorar suas ações, para transformar tudo isso em pontos em diversos pequenos jogos como o de construir a pirâmide ou avançar na fabulosa
Avenida dos Mortos (na língua nativa,
Nahuatl Miccoatli). O jogo se desenrola de maneira bem fácil e flui bastante, mas tem diversos pontos interessante que fazem dele um jogo acima da média.
A cada rodada os jogadores irão escolher um de seus dados — 3 no começo do jogo e 4 se ele decidir colocar o dado extra na mesa — e avançar, em sentido horário, para qualquer espaço de ação à frente 1 a 3 espaços. Em cada espaço de ação ele poderá resolver a ação principal do espaço ou coletar cacau e, em alguns casos, poderá alocar seu dado num espaço de culto. Nesses espaços, ele não interage com os outros dados do local e poderá avançar nas trilhas respectivas e comprar
tiles de bônus. Caso escolha coletar cacau, a quantidade de dados de diferentes cores que estiverem no local irá influenciar em quanto cacau será coletado, sendo importante ter mais dados para ter um resultado melhor.
Para realizar a ação principal, o jogador poderá escolher executá-la com 1, 2 ou 3 dados, conforme tiver seus dados no local. Caso existam dados de outros jogadores, ele precisará pagar 1 cacau pra cada outra cor (pagar para o banco e não para o jogador). As ações principais também permitem evoluir o número de um de seus dados e isso será importante para realizar as ações mais fortes no futuro.
As 8 ações do jogo são: coletar madeira, coletar pedra e coletar ouro, realizar uma ação especial no espaço do pátio da pirâmide, construir a pirâmide usando madeira e pedra, construir a decoração da pirâmide utilizando o ouro, investir numa tecnologia também utilizando ouro e construir jazigos na
Avenida dos Mortos, utilizando madeira. Alguns espaços irão permitir também você avançar nas trilhas de templo, o que irá render alguns bônus e pontuação de fim de jogo se você chegar ao topo dessas trilhas.
A construção da pirâmide se dá ao colocar um
tile de construção no maravilhoso espaço no centro do tabuleiro que forma, realmente, uma pirâmide em 3D. Cada peça de construção tem 4 símbolos que, combinados com os símbolos abaixo deles, permitem também ao jogador ganhar pontos e avançar nas trilhas de templos. Além disso, cada vez que executa a ação de construção, o jogador avança numa trilha de construção que dará pontos a cada eclipse. A decoração funciona de maneira similar, porém somente dá pontos no momento da construção.
A
Avenida dos Mortos tem um funcionamento bastante interessante e está associado tanto à ação do local em si quanto à ascensão dos dados. Toda vez que você realiza essa ação e constrói um jazigo você irá pontuar imediatamente, mas também irá influenciar — no caso, negativamente — na pontuação do final do eclipse que a avenida irá dar aos jogadores. Cada casinha retirada do espaço da avenida significa um multiplicador menor que será utilizado na fase de pontuação e que pontua por cada avanço na avenida. Como o jogador avança no momento em que constrói um jazigo, mas também toda vez que um de seus dados alcança o valor 6, essa pontuação é bastante equilibrada e pode tanto dar muitos pontos ao longo do jogo quanto bem pouco no final caso seja muito visada.
Evoluir seus dados e, consequentemente chegar à ascensão, ou seja, chegar com um de seus dados ao valor 6, serve a dois propósitos. O primeiro é o de avançar na
Avenida dos Mortos. O segundo, permite ao jogador escolher uma bonificação especial do centro do tabuleiro que poderá ser seu quarto dado no jogo (que só pode ser feita uma vez, obviamente), 5 pontos, 5 cacaus ou avançar 1 ou 2 vezes nas trilhas de templos. A escolha desses bônus terá muito a ver com a situação no momento do jogo e no que é mais importante para o jogador dentro da sua estratégia.
As tecnologias permitem aos jogadores evoluírem num tipo de ação específico, como por exemplo coletar 1 recurso extra toda vez que coletarem. Ou ganhar pontos extras sempre que construírem algo. Geralmente as tecnologias são uma estratégia para se focar cedo e garantir essa vantagem ao longo do restante do jogo, até mesmo porque quem faz primeiro garante um bônus de 3 pontos toda vez que outro jogador investe na mesma tecnologia.
Exitem ainda diversos
tiles de bônus espalhados pelas trilhas e espaços do jogo, principalmente nas áreas de culto das ações de coleta de recursos, nas trilhas de templos e na ação da entrada da pirâmide. Em sua maioria, esses bônus são de uso único e servem para realizar uma ação extra ou coletar recursos, ou dar ao jogador uma habilidade especial momentânea. Porém, existem diversos tiles com desenhos de máscaras, que criam um estratégia importante no jogo com um
set collection. O jogador irá pontuar por coleções de máscaras diferentes a cada final de eclipse. E a pontuação é realmente forte caso consiga juntar uma quantidade considerável.
Sempre que a rodada terminar, ou seja, todos os jogadores tiverem realizado uma ação, o marcador de eclipse avança um espaço. Esse marcador também poderá avançar sempre que um jogador ascender seu dado 5 para um 6. Ao final de cada eclipse, que tem uma duração diferente conforme o número de jogadores e a fase do jogo — num jogo com 4 jogadores, por exemplo, se jogam 12, 11 e 10 rodadas cada eclipse — ocorrerá uma fase de pontuação. Os jogadores devem pagar cacau aos seus trabalhadores e, em seguida, pontuam por avanço na
Avenida dos Mortos, na construção da
Pirâmide do Sol e por máscaras coletadas. Na última fase de pontuação, no final do terceiro eclipse, os jogadores ainda irão pontuar pelo avanço nas trilhas dos templos, caso tenham atingido um espaço de pontuação de final de jogo.
Sim, o jogo tem muita coisa, muitos elementos que conversam entre si e precisam de ações planejadas para ir bem. Algumas pessoas já disseram que o jogo é longo e com coisas demais, pra um jogo relativamente leve dentro do universo dele (veja bem, o jogo não é leve, mas perto de outros jogos do gênero, ele é sim mais leve). Porém,
Teotihuacan é um enorme quebra-cabeça em que os elementos menores interagem de forma que você precisa lidar com figuras, recursos e até mesmo a disposição dos seus adversários para fazer as melhores jogadas. Não chega a ser um jogo tático, de reação, porém é importante fazer a leitura da mesa.
O jogo vem com diversos
tiles e tabuleiros extras que permitem configurar o jogo de uma maneira completamente diferente toda vez que você o for jogar, se você quiser. Ou você pode sempre jogar com a configuração padrão que já vem impressa no jogo e ainda sim ter um partida diferente toda vez. A rejogabilidade nunca será um problema em
Teotihuacan.
Agora, porque eu considero
Teotihuacan o jogo número 2 do ano? Primeiro porque o acho extremamente competente, divertido e redondo. O jogo funciona super bem com todos os seus mecanismos menores criando uma máquina de fazer pontos muito bem equilibrada e que depende muito do jogador observar o jogo. Saber jogar é um diferencial sim, mas é possível um jogador novato ler o jogo e pegar suas sacadas e jogar super bem. Também vejo o valor do designer aqui, mesmo com elementos que lembram bastante
Tzolk’in, o jogo é completamente diferente, com outra essência, mas que funciona tão bem quanto.
Também acho a arte do jogo super clara, que permite você observar os detalhes das ações, dos símbolos e ícones que estão presentes nos infinitos
tiles e ações. Tudo conversa com o tema do jogo, com as ações a serem realizadas e está tudo muito claro nos espaços de ação, como por exemplo como os dados evoluem, quanto se paga para fazer a ação e etc. Se faltou algo, foi indicar no tabuleiro a ação de coletar o cacau. Só isso.
Por mais que o tema não seja muito profundo, ele está lá. Na ideia da construção da
Pirâmide do Sol, na
Avenida dos Mortos ou mesmo na contagem das rodadas através do eclipse. Ainda dá pra sentir a ideia de uma civilização muito ligada a seus rituais através das tecnologias, das trilhas e dos bônus, além das máscaras que remetem à vários povos e diferentes culturas, como é dito sobre a
Cidade dos Deuses.
Teotihuacan é um grande jogo, fruto de um trabalho notavelmente bem feito e bem produzido, com uma enorme rejogabilidade. Está acima da média até mesmo dos trabalhos da escola italiana, com os quais é impossível não comparar. Num ano em que esse grupo de designers entregou ótimos jogos,
Teotihuacan é ainda superior: é excelente. E se você é fã de sucessos recentes desse estilo de escola com jogos euro bem amarrados, com uso de dados e bastante competentes como
As Viagens de Marco Polo,
Grand Austria Hotel,
Lorenzo: Il Magnífico e
Coimbra, então o jogo é certamente pra você.