Rio 1808 é um jogo econômico, de alocação de trabalhadores, controle de área, especulação de commodities, coleção de componentes, entre outras mecânicas, que tem como pano de fundo o Rio de Janeiro do começo do século XIX. Os jogadores encarnam o papel de famílias ricas da cidade em busca de um título de nobreza que somente será concedido ao jogador com maior influência ao final das 12 rodadas do jogo.

Entre outras características, destaca-se o fato de que os trabalhadores são dados que não serão rolados ao longo do jogo. Ou seja, dependente apenas da estratégia do jogador e, é claro, dos espaços disponíveis para alocar. Para ter acesso às ações mais complicadas, os jogadores poderão "educar" seus dados para dar a eles mais experiência (mudar suas faces para um valor maior), capaz de realizar ações específicas no tabuleiro ou ainda obter bônus em determinadas ações.




Ao longo do jogo, os jogadores irão se alternar realizando tarefas como comprar mercadorias, negociar melhores preços, destinar familiares para se tornarem estudiosos clérigos que avançam em influência na igreja, contratar e treinar novos trabalhadores, realizar festas pela cidade para ganhar a simpatia da população, patrocinar as construções dos edifícios públicos e, principalmente, agradar à corte de D. João VI através de artigos de luxo vindos diretamente da Europa.

Mas tudo isso acontece num período cercado por problemas sociais, pela escravidão - sim - e pelo grande desleixo português com suas colônias. Fato que começa a mudar justamente com a chegada da corte ao Brasil.

Em Rio 1808, os jogadores assumem o papel de chefes de famílias importantes do Rio que buscam ser nomeados com títulos de nobreza pela coroa portuguesa durante a transferência da capital de Portugal de Lisboa para a cidade do Rio de Janeiro. Isso não é um tema inventado pra fazer o jogo ser "legal", isso é algo que de fato aconteceu na história do Brasil e foi extremamente importante para criar não só uma esfera política e social na cidade do Rio de Janeiro, mas também para criar empregos, comércio e trazer para a cidade o começo de uma infraestrutura que, mais tarde, seria o berço da industrialização do Brasil. O ato de "comprar" títulos de nobreza era comum no Brasil nesse período, uma vez que não havia aqui uma nobreza hereditária. Então, famílias ricas realmente compravam títulos e estes não eram passados de pais para os filhos.

RIO EM 1808: A HISTÓRIA POR TRÁS DO JOGO

Grande parte da nossa história se dá entre os anos 1500 e 1822, enquanto o Brasil foi colônia portuguesa. E o fim desse período começou justamente com a vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808, quando as embarcações, lotadas de fugitivos de uma Europa em guerra contra o domínio napoleônico, aportaram em Salvador e, em seguida, no Rio de Janeiro, onde seria estabelecida a nova capital do Reino. Entre os relatos que se confundem e não chegam a uma conclusão sobre número (uns dizem mil, outros dizem 15 mil pessoas), uma coisa é comum: a família real trouxe não só sua riqueza, seus costumes, seus funcionários, mas também parte da cultura europeia para o Brasil. Mesmo que de modo forçado. Os cidadãos cariocas logo copiavam o estilo e os hábitos de D. João VI e sua corte.




Fato também é que a abertura dos portos ao comércio com outras nações possibilitou que o acesso a diversas "novidades" da Europa fosse uma realidade na cidade do Rio. Isso trouxe um enorme interesse comercial e cultural a cidade que, na época, ainda sofria com o descaso português. Pessoas de todo lugar vinham para comercializar, negociar, barganhar e, claro, bajular o então príncipe-regente. Por sua vez, D. João VI, adepto das artes, da educação, da cultura e das ciências, criava na cidade do Rio de Janeiro um novo centro cultural no país com a criação do Jardim Botânico, do primeiro banco brasileiro, do primeiro museu e da primeira biblioteca em solo nacional.

A abertura dos portos às nações amigas, decretada por Dom João VI, impulsionou um intenso fluxo de pessoas, ideias e bens culturais. A vinda da Biblioteca Real para o Brasil enriqueceu consideravelmente o acervo bibliográfico do país, possibilitando um acesso maior às obras literárias e científicas da época.

Segundo o historiador Laurentino Gomes, em seu livro "1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil", a presença da Corte no Rio de Janeiro "despertou o interesse por conhecimentos científicos e culturais, além de contribuir para a formação de uma elite intelectual no país."

Durante o jogo, os jogadores enviam seus trabalhadores para várias partes da cidade para comprar certos produtos, completando os desejos da realeza e também ajudando na construção de vários edifícios em toda a cidade, como o Museu Nacional, a Biblioteca Nacional e o Jardim Botânico. Esses edifícios, acompanhados da fundação do Banco do Brasil, da Academia Real Militar, a Imprensa Régia e da escola de Medicina (essas últimas não representadas no jogo - ainda), são o berço da educação no país, por meio dos quais se iniciou no Brasil um processo de inovação cultural. "Outra medida do príncipe regente permitiu a qualquer pessoa a abertura de escolas de primeiras letras, na maioria das vezes funcionando na casa do próprio professor." No jogo, a ação de educar seu trabalhador acontece na Oficina, que faz parte da casa do jogador.

A criação da Escola de Medicina, Cirurgia e Anatomia em 1808, por iniciativa do príncipe regente Dom João VI, trouxe avanços significativos para o ensino da medicina e das ciências na época. Segundo o pesquisador Cláudio Figueiredo, em seu artigo "A Escola Anatômica do Rio de Janeiro no contexto da história das ciências médicas", "a vinda da Corte e a criação da escola foram responsáveis por estimular a formação de uma comunidade científica no Brasil e promover o intercâmbio de conhecimentos com outros países."




A cidade, antes marcada por uma rígida hierarquia social e uma forte divisão entre classes, começou a experimentar mudanças sociais em decorrência da interação entre a nobreza e a elite local. De acordo com a pesquisadora Mary Del Priore, em seu livro "O Príncipe Maldito: A vida de Dom Pedro I, o primeiro imperador do Brasil", a vinda da Família Real "gerou uma maior mobilidade social e oportunidades para comerciantes, artistas e intelectuais da época, alterando a dinâmica social do Rio de Janeiro e abrindo caminho para a ascensão de novas classes sociais."

As mudanças na sociedade foram tantas que até mesmo influenciou na vida das mulheres da época, que ficaram cada vez mais próximas dos costumes da corte e tiveram suas liberdades ampliadas. "Também mudavam os costumes das famílias, quebrando a reclusão do lar para as mulheres, que passaram a frequentar os espaços públicos, como as ruas e os teatros, e também a se dedicar à leitura de livros e ao estudo de outros idiomas¹." Obviamente, que não estamos falando aqui de uma mudança profunda na sociedade em relação a esse tópico sensível. Mas algo começou a mudar ali.

Lojas com produtos de moda, perfumes e decoração se espalharam pela cidade com imensa rapidez, a ponto de surpreender os turistas que viram essas transformações acontecerem da noite para o dia. No jogo, as Lojas representam exatamente essa esfera comercial da sociedade, de artigos luxuosos que começaram a surgir na cidade, em grande parte trazidos da Europa (principalmente da Inglaterra).




Durante o jogo, os jogadores também precisam realizar tarefas para influenciar a Igreja e o povo. A Igreja Católica ainda exercia grande influência na sociedade neste período, principalmente pela família portuguesa ser bastante católica. Igrejas foram construídas e muitas famílias enviavam seus filhos para ter, na vida religiosa, acesso a uma melhor educação. No jogo, essa ação é representada pela escadaria da Igreja que leva ao templo e que garante, durante a subida, dádivas aos jogadores. Já o povo é alvo das Festas Populares, organizadas para animar a cidade à noite, para trazer mais opções culturais e também comerciais. A cidade se agitava com as festas, o que movimentava o comércio, principalmente o de moda.

Mas e a escravidão? Ela está representada no jogo?

A resposta curta? Não. No jogo não existem escravos, mas trabalhadores assalariados que, inclusive, recebem salários mais altos conforme seu grau de instrução. Os jogadores têm que contratar e ensinar novas habilidades aos seus funcionários, instruindo-os e tornando-os mais eficazes na execução das tarefas. No entanto, trabalhadores mais eficientes também são mais caros e exigem melhores salários. Em cada rodada, os jogadores recebem dinheiro, mandam seus trabalhadores para as tarefas e, no final do dia, pagam seus salários.

Mas isso não faz o jogo ser menos temático? Bom, vamos aos fatos:

A fim de estreitar os laços comerciais e políticos com os ingleses, Dom João assina, em 1810, o Tratado de Aliança e Amizade, de Comércio e Navegação com o Reino Unido. Neste tratado foram acertadas vantagens comerciais ao Reino Unido para a importação de bens para o Brasil e também uma importante decisão com relação a não implantação da Inquisição no Brasil, o que possibilitou a vinda de mais protestantes ingleses ao Brasil na época (que não cabe aqui aprofundar, mas que foi um imenso passo no sentido de aumentar o número de escolas no Brasil).

Conforme aponta o economista Ricardo Salles, em seu trabalho "A Transferência da Corte Portuguesa e o Desenvolvimento Econômico Brasileiro", "a abertura dos portos impulsionou o comércio, aumentou a oferta de produtos e estimulou a atividade industrial, contribuindo para o desenvolvimento econômico da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil como um todo."

Entretanto, o mais importante tópico desse tratado foi o compromisso assinado para o fim do tráfico negreiro em vistas da abolição da escravidão - que sim, só foi acontecer em 1888, 80 anos depois deste tratado, mas que começou também aqui, com a vinda da corte portuguesa ao Brasil.




Dessa forma, nós escolhemos representar no jogo uma sociedade em que não há a escravidão, mesmo sabendo que nesse período ela ainda existia. Essa decisão, apesar de deixar o jogo "menos acurado", historicamente falando, reflete o pensamento do autor, no caso eu, que gostaria que a história tivesse sido assim, sem escravidão. Mas, então, vamos negar que a escravidão existiu? Também não. É importante conhecer a história para não repeti-la. Somente não vi a necessidade de colocar luz nesta parte da história, tendo em vista todas os acontecimentos positivos deste período como os retratados acima.

Você pode fazer jogos mais "acurados"? Sim, acho que existe espaço para esse tipo de jogo, casos como Archipelago, Endeavor: Age of Sail e Freedom: The Underground Railroad, que trazem para a discussão um tema que é sim muito importante e que não deve ser esquecido. O Rio 1808 é esse tipo de jogo? Não.

Espero que você jogue Rio 1808 pelo que ele é, não pelo que outras pessoas dizem que ele deveria ou poderia ser. Espero também que você entenda que várias das decisões tomadas no design do jogo foram pensando sim na parte temática, histórica, mas a maioria delas foi em prol de ter um jogo divertido, agradável, estratégico e que, por vezes, abrimos mão da precisão histórica para isso. Rio 1808 é um jogo com forte ênfase na história do Brasil. Nós tentamos trazer esse capítulo tão importante da nossa história à tona para levantar sim discussões e analisar o período pelo que ele foi, mas sem abrir mão do mais importante: levar à mesa um jogo prazeroso.

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Referências bibliográficas:

GOMES, Laurentino. 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. São Paulo: Editora Planeta, 2007.

PRIORE, Mary Del. O Príncipe Maldito: A vida de Dom Pedro I, o primeiro imperador do Brasil. São Paulo: Editora Planeta, 2007.

SALLES, Ricardo. A Transferência da Corte Portuguesa e o Desenvolvimento Econômico Brasileiro. Anais do Seminário Internacional de História do Brasil. Rio de Janeiro, 2008.

FIGUEIREDO, Cláudio. A Escola Anatômica do Rio de Janeiro no contexto da história das ciências médicas. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 4, n. 2, p. 399-410, 1997.