“Você consegue imaginar a emoção de encontrar, pousado no fundo do mar, um objeto que um pirata segurou em suas mãos séculos atrás?”, pergunta Patrick Lizé na página 31 de seu livro Tesouros do mar (Siciliano, 1993). Como caçador de tesouros, ele já passou por essa experiência diversas vezes. Mas, e nós, seres confinados ao cotidiano ordinário? Resta-nos o cinema, a literatura e… os jogos de tabuleiro! Nesse aspecto, uma das melhores experiências que tive foi jogar algumas vezes Deep Sea Adventure (2014), de Jun e Goro Sasaki.
A caixa é pequena, 11×6,5cm, com 3,5cm de profundidade. Os componentes: um submarino do tamanho da caixa, 48 peças de tesouro, 6 meeples coloridos, um marcador de oxigênio e dois dados, além do manual, em inglês, espanhol e francês (este, no entanto, embora mencionado na edição, não consta da caixa). Lado a lado com o enorme Amerigo, do Stefan Feld, é como se olhássemos para King Kong e o Pequeno Polegar, ou para Davi e Golias.
O propósito do jogo é que cada jogador, na condição de mergulhador, vá ao fundo do mar e volte com a maior quantidade de tesouros possível. Mas há um empecilho: todos estão dividindo o mesmo tanque de oxigênio! Carregados de tesouros, os mergulhadores pesam mais, gastam mais oxigênio e correm o risco de não retornar a salvo ao submarino. E, moralmente, é sempre o mais ambicioso que se dá mal ou leva todos a um destino fatídico. A solução é se desfazer dos tesouros antes que o ar acabe, voltar ao submarino e tentar, na próxima missão, um desempenho melhor. E isso se aplica tanto ao mergulhador quanto ao jogador. O melhor desempenho de um é forçosamente do outro. O que me parece não só coerente como incrível: a estratégia afoita do jogador afeta pesadamente o desempenho do mergulhador.

Cada partida compreende três rodadas, para até seis jogadores. E, conforme os tesouros são coletados ou perdidos, o submarino desce mais, o que é perfeitamente racional. Ao fim, vence quem marcou mais pontos. Os tesouros que estão no fundo valem mais. Há tesouros de quatro níveis: 1) de 0 a 3 pontos; 2) de 4 a 7; 3) de 8 a 11 e 4) de 12 a 15. Resgatar só tesouros muito valiosos exige muito oxigênio; ficar só com tesouros de pequeno ou médio porte pode não conduzir à vitória… Eis o dilema, o risco. Talvez a melhor estratégia seja balanceá-los: ir, conforme o fluxo da aventura, alternando uns e outros. Bem, é você que está jogando, crie sua própria estratégia.
A volta ao submarino é uma experiência única e, porque o oxigênio torna-se escasso, sufocante, desesperadora. Não foram poucas as vezes que, tendo retornado a duras penas ao submarino, os jogadores suspiraram, de alívio, sentindo-se realmente a salvo. Quais jogos proporcionam isso? Acho que bem poucos. É como se, na condição real de mergulhadores, eles escapassem da morte.
É uma lastima que um jogo como este não tenha ainda edição no Brasil. Não são poucos os seus méritos, a saber: 1) não seria caro produzi-lo nem sairia caro para o consumidor; 2) é pequeno, leva-se para qualquer lugar; 3) produz, de fato, uma experiência profunda nos jogadores, que, por 25 ou 30 minutos, se veem as voltas com os mecanismos de ambição, abnegação e sobrevivência que um mergulho ao fundo do mar em busca de tesouros proporciona.
Numa das histórias contadas por Patrick Lizé em seu livro está a do corsário Thomas Stradling, que, ainda que sob a ameaça de afundar, com o navio fazendo água, “tinha certeza de que escaparia são e salvo. Com o tesouro, naturalmente”. Não é o que Deep Sea Adventure sugere. Os piratas, muito embora todos os percalços que enfrentavam, estavam à linha do mar. Em Deep Sea Adventure o drama é lá embaixo, em meio a um inimigo que não tem rosto, pois emerge de nós mesmos, e que podemos simplesmente chamar de: ambição desenfreada. Tanto no jogo quanto na vida, ela pode ser fatal.

Mayrant Gallo é professor, escritor, boardgamer e sócio da Invasion BG. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas, controle de área e gestão de mão.
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