MatheusAleM::Mano, concordo muito com seu alerta e com a ideia geral da sua reflexão. Deixo só um pequeno comentário no sentido de que algumas empresas ainda defendem que financiamento coletivo é a única saída pra alguns tipos de projeto, e eu acredito. Por exemplo, o Betrayal of the Second Era da Chip Theory Games. No primeiro financiamento (jogo base + 1 expansão) eles arrecadaram +- 4 milhões de dólares e agora no segundo (mais expansões) eles arrecadaram +- 4 milhões também até o momento. Os representantes deles já agradeceram trocentas vezes em lives, postagens etc. esses valores e explicaram que não tem como os acionistas da empresa liberarem esse valor pra uma "aventura ambiciosa" dos designers, eles só conseguem esse tanto de grana pra fazer um jogo se for por financiamento mesmo, simplesmente não tem outra opção atualmente (segundo eles).
Não sei se procede, mas também já ouvi dizerem que a Go On Board (Witcher Old World, Witcher Legacy, Cyberpunk board game) precisa de financiamento pra levantar lá seus 10 milhões de euros pra fazer jogo.
Deixo também o questionamento correlato sobre o tipo de jogo que as empresas querem fazer. Pelo que me parece, a tendência tem sido empresas grandes focarem mais em jogos simples, enquanto os jogos "de luxo" estão sendo mais fruto de empresas menores. Mas se a empresa menor não tem tanto capital, de onde ela vai tirar milhões de dinheiros pra fazer um jogo que sabe lá se vai vender? E mais, agora com relação ao criticado parcelamento do Gamefound: se o jogo "deluxe" não pode ser parcelado, quem que vai comprar? Até os gringos estão parcelando atualmente, não tá fácil pra ninguém.
Então, o que quero dizer é que tem empresa que faz financiamento coletivo caro e parcelado, mas aparentemente faz de boa fé, ou pelo menos já foi transparente o suficiente pra tentar explicar racionalmente o motivo de trabalhar com financiamento coletivo. Se amanhã a Disney me aparece com financiamento coletivo eu p*rateio umas 2 dúzias de filme só pra não deixar barato a petulância, mas se a empresa do Random John aparece amanhã com uma ideia que eu curto bastante e pede grana pra tocar o projeto, eu acho de boa financiar se eu tenho caixa para tanto.
Obs.: atualmente estou em apenas 2 financiamentos coletivos e não tenho outro à vista.
Caro
MatheusAleM
Rapaz, você realmente tem um ponto, mas o problema é que os próprios exemplos que você citou não se enquadram na proposta original de financiamento coletivo, enquanto ferramenta de fomento à arte independente, ao menos na minha opinião. O Betrayal of Second Era, na verdade se chama The Elder Scrolls: Betrayal of Second Era, e eu peço que você não se ofenda com a correção, porque meu intuito é única e exclusivamente demonstrar a inadequação desse jogo com o espírito do financiamento coletivo, e não dar uma de gostosão sabe-tudo, até porque eu nem tenho mais idade para isso



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Como você pode ver, estamos falando de um jogo de uma das franquias de video games mais famosas de todos os tempos. Agora imagina você, uma humilde e pequena editora de jogos de tabuleiro começar logo de cara com um board game de uma franquia tão famosa. E mais inacreditável ainda, imagina se a empresa que detém os direitos autorais vai sequer dar ouvidos para um empresa humilde e pequena, que nem tem dinheiro para lançar seus próprios produtos, dependendo de financiamento coletivo. E em alguns casos não basta nem mesmo ter dinheiro porque, você pode por exemplo chegar com o dinheiro que for para rodar um board game e as editoras gringas entenderem que não te conhecem, e por isso não vão arriscar atrelar a "galinhas dos ovos de ouro" dela a uma empresa literalmente desconhecida. E é justamente para essa "gente desconhecida", que se aplica o financiamento coletivo. Por isso, se a Chip Theory Games ao menos cogitou lançar um jogo da franquia The Elder Escrolls, ela pode ser até uma editora pequena, mas dificilmente se encaixaria no tipo de empresa independente, para as quais o financiamento coletivo foi criado. A mesma coisa se aplica ao caso do Old World, que faz parte de uma franquia conhecida globalmente, com jogos badaladíssimos e uma série da Netflix que estava no auge, quando o financiamento coletivo do jogo foi lançado.
Mas mesmo que não fosse o caso desses dois jogos serem de franquias multimilionárias, você ainda tem a questão dos próprios jogos em si. Basta ver a quantidade de material que o The Elder Scrolls: Betrayal of Second Era possui, são mais de 150 dados, quase 250 cartas, isso sem falar em vários livretos, tabuleiros de neoprene, e mais uma infinidade de coisas. O Old World também não fica atrás tendo além de uma infinidade de marcadores e cartas, diversas miniaturas na versão De Luxe. O próprio fato de haver uma versão De Luxe do jogo já demonstra que o produto não é muito compatível com jogos indies de empresas independentes. Esse board games com centenas de componentes e caixas de 10 kg definitivamente não são jogos pequenos que aquele amigo do amigo bolou e está pensando se lançar na carreira de designer com eles. Imagina só o custo com artista para fazer 150 ilustrações diferentes e olha que jogos com apenas 150 cartas já começa a ficar fora do escopo de jogos pequenos. Agora compara isso por exemplo com o jogo "Quem Foi?", que tem apenas 49 cartas, a maioria com a mesma imagem mudando apenas a cor do fundo e de um designer praticamente desconhecido. Esse sim seria um jogo que se encaixaria na proposta original do financiamento coletivo.
Agora imagina uma situação totalmente hipotética (não estou dizendo que foi assim que ocorreu porque não foi, mas é só um exemplo), apenas para ilustrar o meu ponto de vista, que é a seguinte: o Roubira, que era psicólogo infantil, teve a brilhante ideia de transformar as cartas que ele usava no consultório para criar um jogo chamado Dixit. Ele obviamente não tinha uma empresa e provavelmente nem o capital para produzir o jogo em uma escala mínima capaz de chamar a atenção. Ele então recorre ao financiamento coletivo, levanta o dinheiro necessário para produzir o jogo, coloca à venda. Da noite para o dia o jogo vira uma sucesso meteórico, de modo que o criador fica rico, nunca mais terá de atender um único paciente na vida. Ele então passa a se dedicar só ao Dixit, que em pouco tempo vende no mundo todo. Para lançar o Dixit inicialmente, o Roubira não tinha dinheiro, era um desconhecido e realmente precisava do financiamento coletivo. Ocorre que com o sucesso estrondoso, a fama instantânea e o retorno financeiro milionário, o Roubira não precisa mais do financiamento coletivo para lançar, por exemplo, o Dixit Odissey. O problema é que é muito mais fácil, cômodo, e lucrativo, uma empresa pegar dinheiro com os apoiadores, sem pagar juros nem empatar o próprio capital, aproveitar o projeto para por si só criar todo um marketing ao redor do lançamento do novo jogo, do que pegar dinheiro junto ao mercado financeiro, através da venda de ações tentar atrair novos parceiros e investidores, que vão querer um pedaço da empresa, ou pegar empréstimo no banco, que é o que a maioria das empresas faz.
Quanto à questão dessa inversão, editora pequena lança jogo grande, editora grande lança jogo pequeno, eu acho que isso é mais uma prova de que as editoras grandes que tem gente graúda e profissional por atrás, estão começando a ver o risco que é lançar esses jogos megalomaníacos (no bom sentido!!!). Por outro lado, as editoras pequenas estão naquele sonho de lançarem logo um jogo grande, para se tornarem conhecidas e ganharem muito dinheiro o mais rapidamente possível. Isso é muito perigoso, especialmente se você não está acostumado, nem tem a expertise de trabalhar com projetos grandes, de somas vultosas. Basta ver o caso da Mythic Games que originou esse texto. A empresa durou apenas dez anos, de 2020 até 2022 levantou mais de 10 milhões de dólares, fazia projetos nababescos, de muito sucesso, mas menos de três anos depois acabou quebrando.
Por fim, obviamente se a editora acha que dá conta de lidar com um projeto de jogo na casa dos milhões de dólares, e se ela conseguir engajamento suficiente para levantar essa fortuna, independente de ser pequena ou não, ou de ter começado ontem ou não, evidentemente não há regra que impeça isso. Até porque, as plataformas querem mais é lidarem com projetos milionários, que vão tornar a marca da plataforma muito mais conhecida. Só que isso vai de encontro totalmente ao espírito "indie" que levou justamente à criação dessas plataformas de financiamento coletivo. E tem mais um porém, que é o que eu acho mais sinistro e preocupante. Imagina, por exemplo, que as plataformas de financiamento coletivo gostem tanto da brincadeira de financiar jogos de 10 milhões de dólares, que resolvam não dar mais espaço, ou até mesmo limitar imensamente o espaço daquele selo de quadrinhos independente ou aquela editora pequena de jogos, com projetos de apenas 10 mil dólares. Como esse povo vai conseguir sobreviver, sem o financiamento coletivo, do qual eles dependem tanto?
Um forte abraço e boas jogatinas!
Iuri Buscácio