Os termos “habilidade” e “competência” se tornaram presentes no vocabulário dos educadores nos últimos anos, em grande parte devido ao crescimento do ENEM, que baseia seus itens em uma matriz de Habilidades e Competências e não apenas nos tradicionais conteúdos.
Porém, embora as palavras sejam muito utilizadas, é visível que os conceitos ainda não conseguiram causar modificações na estrutura escolar. Por mais que se discutam estratégias para desenvolver habilidades, o que ocupa a quase totalidade do cotidiano escolar ainda é a velha transmissão de conteúdos, às vezes disfarçada de moderna pelo uso de tablets e lousas digitais.
Uma área que desenvolve habilidades e competências muito melhor do que as escolas, no entanto, é a dos jogos (digitais, de tabuleiro ou de cartas). Por esse motivo, seria útil que os educadores observassem a forma como eles funcionam e adaptassem alguns de seus princípios para a educação.
Habilidades e conteúdo
Um conteúdo pode ser definido resumidamente como um fato, dado ou informação; uma habilidade, por outro lado, corresponde à capacidade de fazer algo. Por exemplo: a definição da figura de linguagem ironia é um conteúdo; se uma prova solicitar ao aluno que defina ironia em poucas palavras, alguém que memorizou esse conteúdo pode ser bem-sucedido. Ser capaz de reconhecer a ironia em textos reais, por outro lado, é uma (rara) habilidade. Alguém que memorizou o conceito de ironia não necessariamente conseguirá interpretar um texto irônico.

Vale destacar aqui a ideia de que os conteúdos podem ser transmitidos e memorizados abstratamente, enquanto as habilidades são trabalhadas por meio da interação com situações reais (é por esse motivo, aliás, que as questões do ENEM são sempre contextualizadas).
Que vença o mais hábil
Nesse aspecto de interação com situações reais, os jogos se mostram bastante adequados ao trabalho com habilidades: afinal, para vencer um jogo, seja ele um videogame ou um jogo de tabuleiro, é necessário aplicar as regras no contexto do jogo. Muitas vezes, um jogador memoriza as regras corretamente, e consegue até explicá-las, mas não é bem-sucedido ao tentar ganhar o jogo. Isso demonstra, mais uma vez, a diferença que existe entre o conteúdo (regras) e as habilidades (a capacidade de jogar bem e vencer).

Saber jogar é uma coisa; conseguir ganhar é outra...
Alguns exemplos práticos são jogos digitais em que o jogador precisa administrar uma propriedade, seja ela uma cidade, um império ou uma estação espacial. Nesse tipo de jogo, estão sendo trabalhadas habilidades de gestão, como calcular riscos ou gerenciar recursos limitados para produzir o máximo com o menor desperdício possível. Nos jogos bem feitos, as condições externas mudam frequentemente, obrigando o jogador a se adaptar com rapidez. Logo, memorizar regras para uma gestão ideal não é o suficiente para vencer nesse tipo de jogo. É preciso desenvolver a habilidade e aplicá-la.

Civilization VI, clássico jogo de gerenciamento de recursos
As escolas poderiam aprender com jogos desse tipo: ao invés de forçar a memorização e a repetição de conceitos abstratos, eles oferecem desafios aos jogadores, que precisam usar suas habilidades para superá-los. Como consequência, o aprendizado é muito mais prazeroso e significativo.
Em um próximo post, falaremos sobre outras características dos jogos que poderiam ser aproveitadas pelas escolas. Até breve!
Por que jogar é mais divertido que estudar?
Nos parágrafos anteriores, discuti a possibilidade de usar conceitos dos jogos para trabalhar competências e habilidades na educação. Agora, vou dar mais detalhes sobre quais características dos jogos podem ser aproveitadas para essa finalidade.
O que é um jogo?
A palavra jogo abrange desde esportes até videogames, passando por jogos de cartas e de tabuleiro. Por isso, é válido definir que, para os propósitos desta discussão, um jogo é uma atividade voluntária que possui condições de vitória claras e regras definidas. Usar jogos na educação, portanto, não significa trocar as aulas por partidas de truco ou Playstation, mas sim utilizar esses elementos na prática escolar, de modo análogo ao que é feito pelos jogos.

Agricola, um dos jogos de estratégia mais premiados do mundo
Atividade voluntária
Em um jogo, os participantes são instigados, mas não obrigados, a participar. Se um jogador perde o interesse pelo jogo, por exemplo, a tendência é que ele simplesmente deixe de se esforçar. Para que o jogador queira participar, portanto, é comum os jogos se apresentarem como desafios e não como tarefas. Em alguns videogames, os jogadores são colocados na posição de aventureiros com a missão de derrotar monstros para salvar o reino; em jogos de tabuleiro, muitas vezes há o desafio de acumular mais dinheiro que os adversários ou de conquistar os territórios deles. Essas situações propostas funcionam como motivação para as ações dos jogadores.

"Sua missão é conquistar o continente de Westeros" soa bem mais instigante do que "vamos fazer uma provinha?"
Mas o que dizer de jogos abstratos, como damas ou muitos jogos de baralho? Nesses casos, o principal motivador para o jogador costuma ser o desafio de vencer os oponentes (ainda que esses oponentes às vezes sejam o próprio jogador ou o jogo, em jogos solo/cooperativos), o que nos leva à próxima característica.
Condições de vitória
A ideia de testar as próprias habilidades é sedutora para um grande número de pessoas: quando confrontadas com uma situação-problema, elas tendem a querer resolvê-la e se sentem bem quando alcançam o resultado esperado. Por isso, a simples ideia de que haverá uma competição pode servir como motivação para a participação em um jogo. É importante, nesse caso, que haja formas claras de definir se um resultado foi alcançado ou não, como a contagem de pontos, por exemplo.

E aí, quem ganhou?
Regras definidas
Por fim, os jogos necessitam de um conjunto de regras pré-definidas, acessíveis a todos os participantes, que digam explicitamente o que eles podem e, principalmente, o que eles não podem fazer. Muitas atividades podem ocorrer sem regras (como brincadeiras de faz-de-conta), mas elas não são jogos no sentido que estamos usando aqui.

Meu jogo, minhas regras
E as escolas?
Observando situações típicas de educação, é possível notar que, na maior parte das vezes, as escolas não usam esses aspectos dos jogos: as atividades oferecidas aos estudantes tendem a ser obrigatórias, não desafiadoras, o que faz com que os alunos as realizem por necessidade, sem a motivação adequada.
Da mesma forma, as condições de vitória são confusas: ao invés de incentivar o estudante a atingir os melhores resultados possíveis nas disciplinas em que se sai melhor, a forma como as escolas são organizadas os leva a buscar as notas necessárias para a aprovação nessas matérias e se esforçar naquelas áreas em que sente dificuldade. Essa lógica (“abandone o que você gosta, dedique-se ao que você não gosta”) serve como mais um fator de desmotivação.

"A cola existe porque o valor que a escola atribui às notas é maior que o valor que os alunos atribuem ao aprendizado" - Neil DeGrasse Tyson
Por fim, as regras da escola, de maneira geral, desfavorecem o aprendizado. Se as provas são construídas de modo a valorizar a memorização, é a essa habilidade que os estudantes irão se dedicar, mesmo que não seja essa a intenção da escola; analogamente, muitos testes são feitos de modo que um aluno inteligente, mas não necessariamente que domina o que é cobrado na prova, consegue perceber quais alternativas têm a maior probabilidade de estarem corretas. Quem quiser ver evidências disso pode ir a uma sala de aula antes da aplicação de uma prova ou vestibular importante e verá a quantidade de técnicas que os alunos conhecem para tentar “chutar” as respostas de modo mais eficiente.
Essa discussão não se encerra por aqui. Em uma postagem futura, você vai ver exemplos práticos de atividades que podem ser realizadas em escolas usando técnicas de gamificação, ou seja, aproveitando de forma produtiva as características de jogos.
Até logo!
(edit: publiquei uma continuação no tópico https://ludopedia.com.br/topico/94766/o-que-e-gamificacao-com-um-exemplo-pratico?id_post=566768#id_post_566768)