Aproveitando o fim das férias, resolvi voltar à escrita e, como não poderia deixar de ser, falar sobre o que mais gosto: jogar e conversar sobre jogos de tabuleiro. Curiosamente, essas semanas de descanso foram as mais silenciosas em termos de jogatinas. Meu grupo anda envolvido em outras aventuras lúdicas, especialmente com o Itajaí Challenge, e as noites que normalmente seriam de drafts, combos e risadas viraram um hiato estratégico. Aproveitei o intervalo para unir os dois mundos que me acompanham diariamente - o hobby e a redação - transformando mais uma vez meeples, regras e tabuleiros em parágrafos, argumentos e reflexões.
Se não deu para jogar, deu ao menos para escrever sobre o jogo, o que, convenhamos, é quase tão divertido quanto mover cubos no tabuleiro.
Depois de questionar se “50 milhões de jogadores não podem estar errados… ou podem?”, decidi mergulhar em outro vespeiro do universo boardgemístico. Se no texto anterior o alvo era a devoção quase religiosa aos títulos bem ranqueados, agora o que me intriga é a balança imaginária que dita quantos ludoquilos pesa cada jogo. Afinal, se brass birmingham ostenta status de obra-prima porque a comunidade o colocou no topo, será que ark nova merece os seus 3,9 pontos de peso só porque o BGG assim o proclama? Entre dados, meeples e miniaturas, volto a levantar a sobrancelha e perguntar: será que o peso importa tanto quanto dizem ou é só mais uma daquelas discussões em que a graça está em discordar?
Se você acha que “peso” em jogos de tabuleiro tem a ver com aquele número que faz o atendente dos correios suspirar antes de calcular o frete, acertou o espírito da coisa. Mas calma: aqui o peso não mede quantos reais você vai deixar no balcão para enviar Projeto Gaia com insert de MDF, e sim quantos neurônios vai gastar tentando entender as regras — o que, sejamos sinceros, às vezes sai mais caro que o sedex.
Desde que o BoardGameGeek criou uma coluna chamada weight no seu sistema de classificação (https://boardgamegeek.com/wiki/page/Weight) os jogadores perderam o medo de admitir que alguns jogos exigem mais neurônios do que outros. Aqui na Ludopedia, o assunto também provoca debates: por que um euro como brass birmingham tem um peso tão elevado e um ticket to ride é considerado leve, se (basicamente) ambos são jogos de construção de rotas?
Será que existe uma fórmula mágica, ou trata-se apenas de comparar com o que já foi jogado? E, aliás, qual foi o primeiro jogo a ser posto na balança? Será que senet recebeu uma nota 5 quando os egípcios perceberam que controlar barcos e deuses exigia mais sinapses? Ou teria sido war, quando alguém decidiu que merecia 2,5 porque a sorte dos dados aliviava a estratégia?
Na verdade, não há registro oficial do “primeiro peso”. Como a nota depende de comparações, ele surgiu quando algum usuário do BGG avaliou um jogo e, para fazê-lo, já tinha outros títulos em mente. É um dilema quase kantiano, daqueles em que causa e efeito parecem andar em círculos: não dá para medir o peso de algo sem uma referência prévia, mas a própria referência só existe porque alguém, em algum momento, começou a medir.
Para começo de conversa (ainda que esse “começo” já esteja mais para meio de papo, lá pelo oitavo parágrafo), o que afinal significa “peso” e para que serve essa misteriosa medida que faz alguns jogadores suarem só de olhar o número?
No BGG, o peso não mede diversão nem o tempo que você vai gastar montando e desmontando o setup, mas complexidade. São vários fatores que influenciam essa percepção: a extensão do livro de regras, o tempo de partida, a proporção de tempo dedicada a pensar estratégias, o papel da sorte, a necessidade de habilidade técnica (como planejar várias jogadas à frente) e até o número de partidas necessárias para “pegar” o jogo.
Com base nisso, os jogos recebem uma nota média de 1 a 5, interpretada em faixas: leve (até 1), médio-leve (até 2), médio (até 3), médio-pesado (até 4) e pesado (até 5).
Esse peso não é calculado por editoras nem por um conselho de sábios. Ele nasce da votação coletiva de milhares de jogadores, ajustada por um algoritmo que tenta equilibrar as diferenças entre jogos com mais ou menos avaliações.
Se o peso surge dessa média de percepções, faz sentido que a escala também reflita o impacto real da experiência na mesa. Cada degrau, portanto, não é apenas um número, mas um salto perceptível de exigência, quase exponencial.
Passar de 1,5 para 2,5 ainda é tranquilo, como trocar um passeio de domingo por uma caminhada leve. Já de 2,5 para 3,5, é outro exercício: exige preparo, atenção constante e, às vezes, um vídeo do Romir aberto como guia de sobrevivência.
A Ludopedia ainda não possui um sistema oficial de pesos, mas a comunidade, sempre criativa, tenta emular o modelo do BGG. Surgiram listas e fórmulas baseadas em critérios como complexidade de regras, quantidade de estratégias possíveis, propensão a analisis paralisis e até o cansaço mental pós-jogo. Alguns usuários dividem a escala em subfaixas, por exemplo, jogos médio-pesados entre 3,5 e 3,9 (https://ludopedia.com.br/topico/34964/como-definir-peso-dos-jogos). O consenso é que tempo de partida isolado não define peso, porque há jogos rápidos muito densos e jogos longos com decisões triviais.
O prêmio “expert”, da própria ludopedia, acaba servindo como uma tradução nacional desse conceito: ele marca os títulos destinados a um público experiente: os que levam mais de dez minutos para explicar e mais de uma hora para jogar), o que, no fundo, é apenas uma maneira elegante de avisar que você vai precisar de paciência (e talvez um café duplo).
Mas afinal, como se determina o “peso” de um jogo? Ele nasce de uma avaliação absoluta, fruto de cálculo frio, ou de uma comparação coletiva em que cada jogador ajusta a balança segundo suas experiências anteriores? Em outras palavras, como se chega ao número que define se um jogo é leve como azul ou denso como on mars?
Não há um método único, mas a comparação reina. O peso é um ponto de referência que nasce do contraste com outros jogos. Os jogadores calibram suas notas com base em vivências anteriores: se 7 wonders é 2,31, azul provavelmente ficará perto disso; se on mars passa de 4, qualquer coisa mais simples raramente superará 3,8. Essa calibragem coletiva cria um ranking relacional, no qual cada novo título encontra seu espaço no tabuleiro das percepções.
Depois de cerca de 08 anos empurrando cubos e draftando cartas, cheguei à conclusão de que a complexidade de um jogo cresce por três degraus: aprendizagem, interpretação e execução. O primeiro mede o quanto o jogo exige na leitura das regras; o segundo, o esforço para compreender as decisões e consequências; e a terceira (a mais traiçoeira) é onde tudo se junta, quando o jogador precisa fazer o sistema funcionar.
Nesse ponto, preciso mencionar minha primeira partida de waether machine. A explicação foi exatamente o que se espera de um jogo do Vital: densa, meticulosa e com aquele ar de quem vai exigir café e concentração. Ainda assim, o tom do explicador (expert na tarefa, diga-se de passagem) trazia uma tranquilidade suspeita, como se tudo fosse fluir naturalmente. Terminada a explicação, pensei confiante: “ah, esse jogo não pesa 4,55”. Três turnos depois, eu já estava completamente perdido, sem saber se coletava recursos para novos experimentos, se transformava descobertas em prestígio ou se melhorava a máquina, tudo isso sob o olhar impassível (e um tanto julgador) do professor Lativ, que parecia sussurrar: “bem-vindo ao caos científico, meu caro”.
Na partida, a complexidade me pareceu se concentrar justamente no terceiro fator: a dificuldade de execução. Aprender as regras foi trabalhoso, mas compreensível; interpretar as conexões entre as ações, igualmente desafiador, mas possível. O verdadeiro peso surgiu quando precisei transformar teoria em prática, escolher entre dezenas de caminhos, lidar com as limitações de turnos e reagir as ações dos outros jogadores. É nesse ponto que o jogo revela seu caráter: mais do que entender o sistema, é preciso fazer o sistema funcionar, e é aí que o cérebro sente todo o peso que o 4,55 anunciava.
A lógica comparativa explica, então, por que o peso de um jogo nunca nasce no vácuo. Ele é sempre relacional, e o número, uma tradução simbólica da experiência.
Um 4,0 não é apenas um dado frio, mas uma mensagem cifrada: “mais complexo que TFM, menos caótico que weather machine”. O peso se torna, assim, um dialeto interno da comunidade: uma medida de empatia entre quem já suou tentando entender o manual do madeira ou do nippon.
No fim, o peso é apenas um indicador de densidade, não um selo de qualidade. Ele aponta que o jogo tem múltiplas camadas, mas não promete diversão.
Há jogos densos que são prazerosos e outros que desabam sob o próprio peso; do mesmo modo, há leves que encantam pela fluidez. Complexidade, afinal, é um convite e não uma garantia.
Metrificar a complexidade é, portanto, essencial e inevitável. O sistema de pesos do BGG alimenta boa parte do ecossistema lúdico: cria expectativas, gera frustrações, inspira discussões eternas em fóruns e, claro, textos longos (culpado). Ele define etiquetas como “gateway” e “expert”, influencia compras impulsivas e dá origem a piadas internas (“jogo leve não vê mesa”).
E como as férias terminaram, volto às minutas, com o cérebro ainda calibrado na escala do bgg e com a promessa de que na próxima temporada de escritas, a balança vai pender novamente para o lado dos tabuleiros, de preferência, com menos regras e mais risadas.