Não se trata de uma análise. O texto a seguir pretende apenas discorrer um pouco a respeito do jogo após algumas partidas.
Jogos de tabuleiro e História sugerem, algumas vezes, um suposto elo perdido, um santo graal. Como se de algum modo fosse possível unir o lúdico com aprendizagem.
Confesso, como historiador, meu ceticismo com essa estranha combinação. Não acho, via de regra, que jogos possam substituir, ou ser uma alternativa, à educação.
Mas entendo que possa ser possível inserir jogos como uma ferramenta que vise despertar o interesse, suscitar questionamentos e reflexões.
Em Freedom os jogadores são abolicionistas nos Estados Unidos do século 19. O objetivo consiste em conduzir uma certa quantidade de pessoas escravizadas nas fazendas no sul, para o Canadá; ainda, deve-se financiar o suporte à causa abolicionista. Os jogadores são derrotados se ao final do turno 8 não se atingir a número necessário de libertos e o suporte esperado; ou caso sejam perdidos escravizados além do limite.
Recebi o jogo com alguma desconfiança. Parecia muito mais um puzzle com um tema inserido arbitrariamente do que genuinamente partido de uma premissa, histórica.

Minha bagagem pode justificar o meu pessimismo: possuo, joguei e adoro títulos como Twilight Struggle, Paths Of Glory, Sekigahara, Friedrich, Pax Pamir, BattleLore, On The Origin of Species, Tigris & Euphrates.
Cada qual a seu jeito, procuram uma abordagem de algum modo vinculada à História mas, no final das contas, nunca me senti sujeito ativo da narrativa que estes jogos pretendiam imprimir.
Minhas ações não pereciam necessariamente certas ou erradas, imersivas a tal ponto que eu deixasse de entender que são apenas jogos. DIficilmente parei para me questionar se realmente estava fazendo o correto ao efetuat determinada jogada.

Por outro lado, Freedom the underground railroad trouxe, de modo muito visceral, um sentimento consideravelmente diferente em relação aos jogos anteriores.
Por mais que se esforce, parece inevitável que, para salvar o número apropriado de famílias escravizadas (slaves freed), invariavelmente é necessário algum sacrifício (slaves lost).
Isso nos coloca diante de alguns dilemas, como a escolha entre famílias que se perderiam, que seriam capturadas pelos caçadores de escravos e as que se salvariam.

Outro aspecto que chama a atenção é o uso das próprias pessoas escravizadas, especialmente nos Estados do sul, para sensibilizar e obter financiamento para a condução de famílias e da causa abolicionista.
Estes dilemas, a partir de determinado ponto, parecem indicar que não há realmente uma escolha.
Isso levanta o seguinte questionamento: seria Freedom, com suas escolhas condicionadas a alguma perda, uma abstração que procura refletir um passado? Há um peso nas decisões"? Será que em realidade as ações dos abolicionistas dependeram de escolhas tão utilitaristas? É uma reflexão que pode ficar em aberto.

Freedom, embora não seja uma aula de História, consegue com bastante competência apresentar diversos acontecimentos do periodo que ele se propõe e os encaixa de forma muito adequada na jogabilidade:
- a condução de pessoas escravizadas;
- a arrecadação de fundos;
- o financiamento de suporte;
- o mercado de escravizados;
- as fazendas escravocratas no sul;
- a perda de pessoas;
- os eventos abolicionistas.
Estes elementos são sentidos nas ações dos jogadores como uma narrativa emergente. Ou seja, em nenhum momento soa didático ou professoral.
O jogo atinge o tom certo ao não fetichizar o tema (por exemplo, com miniaturas de escravizados - isso seria de muito mal-gosto) mas ao mesmo tempo não permite que nos afastemos da problemática histórica que o jogo propõe.
O mercado de escravizados, as fazendas, os caçadores, eles estão ali como uma lembrança constante da seriedade daquilo que se está combatendo.
Ainda que continue achando que jogos não conseguem ser um objeto central para o ensino de História, admito que Freedom é um pouco diferente.
A escolha acertada, possível apenas em um jogo cooperativo, em colocar os jogadores contra os horrores da escravidão, pode representar não apenas uma denúncia ou responsabilidade com o tema, mas uma firme posição contrária à esses acontecimentos.
E isso talvez ainda seja um desafio para a maioria dos jogos de tabuleiro, essa postura mais enfática e responsável com a História, ainda que se esteja se tratando apenas de um jogo.
Nota: Endeavor, embora um tanto raso tematicamente em sua execução, talvez seja outro jogo que não apagou a existência da escravidão ou deu contornos mais suaves (como talvez alguns jogos brasileiros, por exemplo, insistam em fazer).
Contudo Endeavor falha ao, sob o argumento de uma escolha que significa uma certa metáfora histórica (tu apoiares ou não a escravidão), não tratar o tema com a sensibilidade que Freedom, felizmente, conseguiu fazer.