Obs.: Nenhuma das opiniões a seguir reflete quaisquer pensamentos do designer/editora/usuários citados. Todos são de minha responsabilidade, o autor deste post.
Análise de Rewild: South America

Tentei e falhei inúmeras vezes em começar esta análise de uma maneira interessante, então decidi por começá-la com a verdade que é a falta de habilidade de iniciar ela do jeito que é merecido. Também, ressalto que ela é até certo ponto inspirada pela belíssima
análise do Spirit Island realizada pelo
Bruno Marchena (que NÃO é o Bruno designer de Rewild) e publicada aqui cerca de quatro anos atrás pelo
Linauro (o qual também publicou uma
entrevista com o Bruno (
ChangesKhan), autor de Rewild: South America). Também vale ressaltar a inspiração porque a análise será diferente do habitual. Abordarei muito pouco sobre o funcionamento, peso, com quantas pessoas roda melhor... isto eu deixo para vocês testarem. É um jogo médio-leve, com colocação de peças, ações direcionadas por carta, controle de mão, coleção de conjuntos. O Financiamento coletivo pelo Kickstarter foi um sucesso rapidamente, e segue com quase 1000 apoios. Quase diariamente metas novas são batidas, e a decisão delas cabe aos apoiadores. Segue o link:
https://www.kickstarter.com/projects/marcduer/rewild-south-america
Minha análise, por outro lado, vai num caminho diferente. Talvez eu até passe mais tempo aqui justificando esta análise do que realizando-a em si. Isto porque até uma semana atrás, eu não imaginava que estaria aqui escrevendo sobre um jogo que ainda está em financiamento coletivo e que NÃO será publicado no Brasil (até o presente momento, mas espero que o futuro nos reserve agradáveis surpresas). Fato é que me deparei, naquela matinal passeada na Ludopédia, com o tópico supracitado da entrevista do Linauro com o Bruno, e o South America do título me convidou a clicar. Uma agradável surpresa, de início, com a arte e a carinha do jogo. De fato, é muito bonita. A editora investiu bastante em uma equipe de arte (bem plural tanto em gênero quanto em etnicidade, diga-se de passagem) com esse teor “Ghibli”, que combina demais com elementos da natureza. Pude confirmar mais ainda a qualidade visual quanto testei o jogo digitalmente.
Imagens do jogo Rewild: South America no modo Avançado
Foi, no entanto, na segunda pergunta da entrevista que me senti convencido a clicar no link do FC, quando o designer relatou que originalmente o jogo era sobre a Caatinga e se tornou mais amplo em diálogos com a editora. Quando finalizei a leitura da entrevista, abri, migrei para aba do FC no KS e, confesso, me senti um tanto triste quando vi que o jogo era Kickstarter Exclusive. De maneira geral, isto é um balde de água fria para nós brasileiros do hobby. Para falar a verdade, eu praticamente nunca participei de financiamentos coletivos de jogos, mas entro para conhecer igual se entra em loja para “dar uma olhadinha” e confirmar se tem chance de chegar aqui. Foi aí que na segunda imagem da página da campanha eu me deparo com este rapazinho, perdido ali no tabuleiro mas que reconheci imediatamente:
Esta lagartixa, briba, entre outros nomes (Phyllopezus periosus) foi um dos primeiros répteis endêmicos da caatinga (só ocorrem lá) que conheci pessoalmente e considero um ícone da fauna do sertão nordestino. Faço uma ressalva aqui para localizar a minha pessoa para os leitores: sou biólogo, mestre e doutor em Zoologia e estudo por quase 20 anos os animais da Caatinga (em especial répteis e anfíbios). Sou também professor, nordestino, paraibano de criação, pernambucano de sangue, casado com uma cearense (morei lá por quatro anos) e atualmente residente do estado de Alagoas. Vê-lo representado em um jogo me causou uma alegria inimaginável. Em seguida, vi a carta da Jararaca-da-seca (Bothrops erythromelas) e me instiguei mais ainda, baixando imediatamente o manual do jogo e entrando na oficina da Steam para testá-lo no TTS (Tabletop Simulator). A partir daqui quero dividir a análise em três seções: (a) Representatividade Ecológica (b) Mecânica vs. Temática e (c) Designer e Editora, fechando com considerações finais.
Representatividade Ecológica
Xique-xique, coroa-de-frade e macambiras, fotos à direita e representação em Rewild: South America à esquerda
Em cada uma das vezes que joguei o jogo (tanto no modo normal e avançado) ficou claro para mim que a ideia original de fato era focar nas matas brancas da Caatinga (ou caatingas, como a origem tupi do nome sugere). A maior parte das peças (tiles) do jogo são as “shrublands”, que representam as regiões semiáridas da América do Sul, representadas majoritariamente pela Caatinga, o bioma (no sentido mais amplo) que engloba a maior parte do nosso nordeste brasileiro. Não existe um só estado nordestino que não possua a Caatinga em sua geografia (ainda que pouco, como o Maranhão). O Ceará, por exemplo, um dos maiores estados da região, está totalmente inserido no domínio das caatingas. As outras peças/biomas, “grasslands/wetlands” (savanas/brejos) e “rainforests” (matas úmidas) e suas árvores são quantitativamente menores e mais custosas de se jogar, direcionando os jogadores a explorar, as “shrublands”, mesmo que brevemente (a depender da estratégia).

Diferenças em tamanhos dos “tiles” de shrublands (caatingas), grass(wet)lands (cerrado e pantanal) e rainforests (matas úmidas) e modelos de sucessão ecológica (retirado de: https://florestas.pt/)
Isto, por si só, já foi bem cativante para mim, mas foi na seleção da fauna que o designer surpreendeu. As espécies que podem habitar a caatinga parecem ter sido escolhidas a dedo durante anos, e arrisco dizer que até um biólogo com pouco conhecimento no bioma teria dificuldade de escolher uma seleta tão genial. Não se enganem, a cara da nossa fauna “famosinha” está em cada bioma e elemento do jogo: temos nossas queridas capivaras, antas, a feroz harpia, o tamanduá-bandeira, mico-leão-dourado, grandes felinos como a jaguatirica e a imponente onça-pintada (que também é um animal da caatinga). No entanto, eles disputam espaço com uma rica fauna nordestina, como o mocó, o tatu-bola, a jacucaca, o carcará, o veado-catingueiro, a arara-de-lear e a famosinha e emblemática ararinha-azul (que a série de animação Rio, em duas produções, fez questão de apagar a origem nordestina e catingueira). Perderia o dia aqui citando e comentando cada espécie, mas não é esse o ponto. O ponto, meus amigos e amigas, é o quão genérica e caricaturada nossa fauna e flora brasileira costuma ser em jogos de tabuleiro (e midiaticamente), e como aqui o designer conseguiu demonstrá-la bem (em especial a nordestina), para além de onças, lobos-guará e micos dourados (os invertebrados são um show à parte do jogo, diga-se de passagem).
Nossa queridinha e nordestina Cyanopsitta spixii, a ararinha-azul (em jogo e ao vivo).
Mecânica vs. Temática
Este aqui é um ponto onde sou BEM crítico com jogos que envolvem natureza. Não deixo de jogar, inclusive tenho o Cascadia e o jogo bastante, mas não deixo de considerar o tema “colado com cuspe”. Acho que a maioria dos jogos de natureza falham bastante em vincular a mecânica com o tema, inclusive os mais famosos, como Dominant Species e Ark Nova. Com exceção do Wingspan, que acho um dos mais bem acurados entre mecânica e temática (e um pouco do Encyclopedia), poucos jogos me trouxeram uma sensação de imersão como o Rewild. O fato dos biomas mais complexos demorarem mais para cobrir o mapa e demandarem mais nutrientes e água ficou fenomenal. Até o fato dos tiles das “grasslands/wetlands” diminuírem o custo de água para tiles adjacentes se integra à realidade, onde o maior aquífero subterrâneo continental se encontra no Cerrado, a nossa savana. Fica aqui, inclusive, a sugestão de assistirem ao documentário “Sertão Velho: Cerrado”, onde pesquisadores, povos tradicionais, artistas, entre outros dialogam sobre a destruição deste bioma e suas consequências catastróficas. Quanto às cartas, eu diria que cerca de 90% delas está bem alinhada ao que se propõe ecologicamente. Talvez um dos mais belos e bem feitos exemplos seja o dos “Hide Beetles” (besouros-do-couro), os diminutos Dermestes. Estes besourinhos são famosos por sua voracidade em devorar carne morta, e inclusive são utilizados em laboratórios e museus de biologia e história natural para taxidermia e limpeza de ossos há mais de 200 anos. No jogo, eles pontuam por cada animal que foi devorado por outro, sugerindo seu caráter necrófago (alimentar-se de carne morta).
Tamanduaí (Silky Anteater) pontuando com número de insetos e Borboleta Heliconius (Red Postman) pontuando a partir de número de plantas em jogo.
A maior parte das outras cartas segue essa linha, onde animais insetívoros pontuam com a quantidade de invertebrados em jogo, herbívoros (como a iguana) pontuam com as plantas, dispersores (como a cotia) fornecem sementes, as plantas fornecem mais tiles de biomas ou símbolos de vegetação e os predadores “comem” suas presas (ou pontuam com a quantidade delas em jogo, como a harpia). Ainda, completar a cadeia alimentar de cada bioma gera pontos extras, enriquecendo o aspecto temático do jogo ao estimular a busca destas pontuações por meio da montagem de um ecossistema equilibrado. Em termos ecológicos, o primeiro desequilíbrio de um ambiente impactado são as relações produtores e consumidores / predador e presa. No aspecto de mecânica vinculada à temática, Rewild: South America não deixa nada a desejar. Pelo contrário, dá uma aula de verossimilhança.
Designer, Editora e Considerações Finais
Confesso que (infelizmente) não conhecia o Bruno (
ChangesKhan) e suas empreitadas como designer de jogos de tabuleiro, sequer a editora Treecer (Treeceratops), mas como a esta altura eu já estava bem convencido a financiar o jogo, precisei me certificar um pouco mais. Dei uma pesquisada no BGG e na Ludopédia e descobri que ele (o designer) é baiano (logo, nordestino) e aí tudo começa a fazer muito mais sentido, tanto o Rewild quanto seu pai original, o Caatinga: Vida no Sertão. Em poucos minutos, encontrei o Bruno no Instagram e troquei uma breve ideia com ele, gente finíssima. É notório o quanto ele se dedicou para o jogo, que ele veio produzindo por pelo menos três anos. Sobre a editora, também tive agradáveis surpresas. Apesar de ser gringa (especificamente suíça), eles possuem diretrizes bem rigorosas quanto à origem ecologicamente sustentável dos materiais empregados na produção (origem reciclável, diminuição de plásticos, etc.). Confesso que inicialmente meu maior empecilho também foi o fato do jogo ser gringo. Sou bem chato com jogos publicados apenas na gringa, mas neste caso, sendo uma empresa bem pequena e com todo um foco ambiental, abrirei uma exceção. Encontrei também um punhado de pessoas criticando o não lançamento do jogo no Brasil, os nomes em inglês das espécies ou os preços altos de importação. Infelizmente, sobre os preços, creio que isto não seja algo controlável pelo autor, mas só de observar o cuidado histórico-ecológico dentro do conteúdo, sei que ser publicado no Brasil era o seu grande sonho (e pelo que observei, ainda é). Inclusive, o Brasil é o único país da América do Sul com frete “amigável”, então existe um esforço para facilitar a chegada da mercadoria até aqui, mesmo sem editoras nacionais de hub. Fico Feliz de ver o sucesso antecipado do jogo e torço que seja muito mais no futuro. Já está financiado em mais de 60.000$, e devo lembrar que o aclamado Spirit Island, em seu primeiro financiamento, não angariou muito mais que 80.000$, valor que provavelmente Rewild irá bater logo logo.

Imagens do protótipo de Caatinga, retiradas SEM autorização das redes sociais do designer (o qual espero que não me processe nem deixe minha esposa viúva)
Inclusive, na supracitada entrevista com ele, ficou claro suas tentativas de publicar o jogo nacionalmente, mas ainda carecemos de uma indústria de jogos de tabuleiro autossuficiente, além de um mercado extremamente preconceituoso com publicações nacionais e/ou temas nacionais. Isto não é novidade para ninguém. As pessoas gastam rios de valores para se desdobrar em jogos sobre desenvolvimento industrial europeu (olá, amantes de Brass: tralalá), ou no máximo ovacionam jogos onde escrevem o nome do nosso país com Z, mas criticam os nomes das espécies em inglês de Rewild: South America. A maioria estão vinculadas igualmente a empresas estrangeiras, como a Asmodee. Pessoas que acham o jogo Cangaceiros um máximo, mesmo a arte sendo genérica e retratando mais as Mesas Norte-americanas do que nossos sertões nordestinos, e ignoram o
Cangaço como uma opção de compra. A grande questão aqui é: faz realmente diferença comprar das empresas brasileiras? Quantos aqui possuem jogos da Maloca Games? Ou deram uma chance ao
Street Art? E me coloco dentro desta crítica. Sempre fico com vontade de comprar e termino por dar espaço para outras opções do mercado tradicional. Como podemos pedir algo se não consumimos? Se estivesse no mercado nacional, com uma carinha mais simples, apoiaríamos? Fica o questionamento e (auto)crítica. De verdade, acho que precisamos de mais Brunos por aí no mercado de designers nacionais, mesmo que infelizmente precisemos os exportar. Precisamos disto, de pessoas (incluindo jogadores) que de verdade querem colocar o Brasil com S e a América Latina no mapa do mundo, principalmente nosso Nordeste, contando a verdade da nossa flora e fauna (que faz parte da nossa história), do que reescrever as linhas do tempo sob olhares alegóricos de invasores e bandeirantes.
da América Invertida aos cordéis nordestinos
Que em união sejamos um povo autossuficiente em sociedade, natureza, jogos e criticidade, pois riquezas naturais, intelectuais e culturais nós possuímos milenarmente.
Reflorestemos nossa história, tão desmatada por mãos alienígenas, nem que usemos elas para tal.
Que nosso Norte seja sempre o Sul!
Guaraci nos ilumine sempre!
do sulamericano da Paraíba,
Lucas.