Uma das coisas que mais gosto no Kingdom Death Monster é a narrativa emergente de cada personagem. É como se cada um deles tivesse seu próprio arco narrativo, que surge organicamente do jogo.
Escrevi um conto curto sobre um survivor e seu processo de transformação. O texto terá spoilers e referências a vários conteúdos do jogo base e expansões.
Caso haja interesse ou bata a inspiração novamente vou continuar expandindo essas crônicas. Também ficarei feliz em receber opiniões e críticas
Crônicas da Morte - Kingsman

Dor. Essa foi a última emoção que senti. Ela tomou o lugar do êxstase que tive ao
notar que o machado tinha entrado fundo nas costas do estranho de armadura
dourada.
Mas, ao invés da já familiar sensação de carne sendo cortada e ossos quebrados
ante a potência do golpe, senti apenas uma viscosidade sem muita resistência, após
partir a dureza do metal da armadura. Em seguida, um líquido espesso e de cheiro pungente acertou meu rosto e começou a corroer minha pele.
A partir desse momento, senti minha cabeça explodir em dor, enquanto meu crânio
se expandia e retorcia. Minha pele derreteu, substituída por um metal vindo de não sei onde. Quando a dor se tornou insuportável, simplesmente começou a desaparecer...
Não apenas a dor, mas a fome, o medo, a alegria, a tristeza... Tudo se tornou distante, como um sonho de uma outra vida que acabara de ser esquecido.
No lugar, restou apenas a batida. Uma pulsação rítmica e regular. Incessante, incansável, implacável. Ela ecoava em minha mente, chamando-me para a escuridão insondável, com um senso de dever e urgência que nascia no meu âmago.
A pulsacão me chamava, mas eu não sabia para onde.
Desde então, perdi todo o interesse na vida cotidiana do assentamento. Tudo parecia menor e sem sentido. Eu ficava parado, imóvel, enquanto os outros sobreviventes fitavam minha face metálica e impassiva com um misto de horror e
desconfiança.
Apenas uma coisa ainda despertava minha atenção: a caçada. Não pela fome, que eu não mais sentia, ou pela adrenalina da luta, que também não mais me atraía. Mas porque adentrar a escuridão esmagadora parecia tornar a batida e seu chamado
mais claros em minha mente. Era como escutar uma língua estranha prestes a fazer sentido.
Minha nova condição trouxe vantagens para o combate. Mesmo sem uma abertura para os olhos, eu enxergava, inclusive na escuridão absoluta à minha frente. Meu corpo era mais resistente do que os pedaços de ossos e peles de monstros que
meus companheiros usavam como proteção. E, como por instinto, troquei meu antigo e desajeitado machado por uma lança, precisa e mortal.
Após minha segunda caçada, meus braços também foram transformados. Mas, ao invés de dor, senti meu corpo se encaixando em um molde perfeito, como se aquela
fosse a forma que ele sempre deveria ter tido. De volta ao assentamento, consegui treiná-los para se tornarem uma arma ainda mais eficiente e letal.
Essas habilidades fizeram com que os outros continuassem a me levar para a caçada, mesmo sem confiarem plenamente em mim. Mas tudo mudou quando caçamos uma fera que nadava em uma poça de sangue. A besta começou a estalar
os dedos de suas costas em um padrão hipnótico que aterrorizou um companheiro, fazendo seu coração bater tão forte que explodiu em seu peito. Quando o monstro
tentou usar o mesmo truque comigo, ao invés de escutar os estalos, minha cabeça foi preenchida pela batida. Nesse momento, algo despertou dentro de mim: uma proficiência absoluta no manejo da minha arma. Com um golpe certeiro, atingi a criatura entre as fendas de sua armadura carmesim reluzente. O sangue jorrou profusamente do coração pulsante do animal, fazendo aquela confusão de dedos e olhos ficarem imóveis, enquanto meu corpo era coberto pelo sangue coagulado quase que imediatamente.
Naquele momento, a desconfiança se dissipou. Fui levado de volta como um herói, mesmo com minha cintura e coxas também se contorcendo e se tornando metal.
Para mim, no entanto, a batida apenas se tornava mais clara e mais forte.
Essa empolgação desapareceu na nossa próxima caçada. Mais uma vez, coube a mim desferir o golpe final em uma fera composta por uma multidão de tentáculos multicoloridos. O golpe foi tão forte que os dentes do monstro voaram para longe.
Meu último companheiro vivo gritou de alegria, certo de que voltaria para casa para cuidar de sua colônia de insetos de estimação. Mas, enquanto ele celebrava, mais uma transformação acontecia comigo. Minhas costelas explodiram, deixando minhas entranhas à mostra, enquanto se transformavam em metal. Ao mesmo tempo, vomitei meus órgãos, que se liquefizeram em ácido. Meu companheiro não
resistiu à visão aterradora e morreu de um terror mortal.
Então perdi a consciência. Por um segundo, que pareceu durar uma eternidade, me vi perdido em uma biblioteca cheia de cadáveres e intermináveis estantes lotadas de livros incompreensíveis. A batida, porém, me guiava por aqueles corredores. Ela se tornava cada vez mais forte, até que encontrei um tomo específico. Ao abri-lo, meu corpo pareceu se mover por si só, como se, pela primeira vez, eu o movimentasse de
verdade.
Ao acordar, voltei ao assentamento, sozinho e carregando os equipamentos dos meus companheiros, a desconfiança voltou a pairar sobre mim. Ninguém mais falava comigo ou me chamava para caçadas. Nenhum olhar ousava se direcionar a mim.
Eu não me incomodei, pois pouca coisa me incomodava agora. Continuei no meu canto, esperando que a batida me dissesse para onde ir.
Hoje, porém, nós fomos a caça. Uma fúria congelante cercou o assentamento, uma sensação tão forte que todos podiam sentir. Uma enorme figura, empunhando dois cutelos e carregando inúmeras lanternas penduradas, surgiu no horizonte. Poucos tiveram coragem de enfrentar o monstro para defender nossa casa. Eu, no entanto, sentia a batida cada vez mais forte ao ver aquela aberração se aproximar.
A luta foi intensa. A brutalidade do monstro sobrepujara qualquer arma ou tática que utilizássemos. E apesar da fúria, o guerreiro atacava com inteligência, conseguindo arrancar uma das minhas pernas, meu único ponto fraco ainda de carne e osso. Eu já não conseguia me mover e atacar ao mesmo tempo. Mas por fim o Butcher foi sobrepujado e desapareceu em um flash de luz congelante.
Quando a luta terminou, sem uma das minhas pernas, por um instante a batida pareceu fora de compasso. O desespero me tomou. Mas, de repente, o ritmo voltou
à perfeição. Olhei para baixo: minha perna havia sido substituída por metal, combinando com o resto do meu corpo.
Pela primeira vez, me senti completo. Finalmente compreendi a voz que me chamava:
"Venha. Aquele que era aguardado chegou. A procissão do rei deve começar."
E, então, tudo se tornou claro, enquanto eu sumia na escuridão.