Nos últimos anos, temos vivido o que alguns lá fora chamam de “A Renascença do Carteado”, em tradução livre. Nunca se falou tanto de carteados quanto nos dias atuais. A febre é tamanha que hoje toda editora precisa ter uma seção de carteados em seu catálogo a fim de não abrir mão dessa fatia do mercado. É a bola da vez, assim como foi com a Alocação de Trabalhadores, a Construção de Baralhos, os jogos de Rolar e Escrever etc.
Hoje em dia, basta incluir “vaza” ou “escalada” entre as principais mecânicas de um jogo que um monte de radares serão acionados entre os jogadores mais dedicados nesse subnicho. Muitas porcarias são produzidas surfando nessa onda, devemos admitir. Não é porque o jogo é um carteado, raro, gringo, que ele necessariamente é um bom jogo. Na realidade, temo que o meio já esteja saturado, pois, a cada ano que passa, os novos carteados transitam entre “mais do mesmo” e “exótico demais para o meu gosto”.
Então hoje venho falar de um jogo que é “novo” no Brasil, mas que já está lá fora há algumas décadas, passando com louvor no teste do tempo.
Tichu tem aquilo eu particularmente acho um charme em uma banda: sabe quando a banda fala o próprio nome no meio da música?
“É Barões da Pisadinha!”
(adoro Barões, mas voltemos ao Tichu)
Tichu, assim como Truco, é não apenas o nome do jogo em si, mas também o nome de uma aposta que você faz durante a partida. Você basicamente está falando para os demais “eu vou vencer esse negócio aqui, e se eu perder, vocês podem negativar meus pontos”. É matar a cobra e mostrar o pau. Tiro, porrada e bomba. Só quem pediu Grand Tichu ou um Truco de 12 e venceu sabe a dimensão da adrenalina à qual me refiro.
Eu não vou ensinar a jogar Tichu, este não é um tutorial, até porque Tichu possui regras simples em sua maioria, mas alguns pequenos detalhes chatos que passam despercebidos entre os menos experientes, assim como Xadrez. Relativamente simples de aprender e uma vida para dominar. Eu tenho algumas centenas de partidas no bolso e me considero um jogador, no muito, mediano.
O foco deste texto está na emoção que leva as pessoas a fazerem coisas como essas:


Tichu não é um jogo, é claramente um estilo de vida. Mas afinal, que molho é esse no jogo que faz com que ele suba ao patamar de clássico?
Em linhas muito gerais, o básico que você precisa entender aqui é: Tichu é um jogo de Escalada e de Esvaziar a mão, jogado em duplas. Por “Escalada”, isso significa que se alguém jogar uma carta de valor X e você quiser vencer essa pessoa, você deverá jogar ao menos uma carta de valor X+1; o mesmo vale se ela jogar uma sequência de cartas, nesse caso, você deverá jogar o mesmo tipo de sequência, mas com valores maiores. Já “Esvaziar a mão” é literal: quem ficar sem cartas na mão primeiro obterá mais vantagens em termos de pontos e apostas, como o tal Tichu propriamente dito.
Nesse contexto, “pedir Tichu” significa que você está falando para os seus confrades “dentre nós 4 aqui, eu serei aquele que esvaziará a mão primeiro”. Se você cumprir com o que prometeu, parabéns, 100 pontos para a sua dupla. Se a dupla adversária frustrar seus planos, vocês perderão 100 pontos (sim, Tichu considera a pontuação negativa). O Tichu clássico é jogado até 1000 pontos, pessoalmente prefiro a versão de 500 pontos. De qualquer forma, 100 pontos em jogo são uma quantia considerável.
Tichu é jogado com um baralho tradicional de 52 cartas e 4 cartas especiais, o Cachorro, o Mahjong, o Dragão e a Fênix. Falaremos deles mais adiante, mas voltemos ao mais importante aqui: os pontos, a adrenalina.
Eu disse que você quer esvaziar sua mão o quanto antes para obter uma vantagem no Tichu, e, para fazer isso, mais do que cartas avulsas, você pode jogar sequências de cartas, como um par, trio, “Full House” (um par e um trio) ou um “Straight” (5 ou mais cartas em sequência numérica). Quanto mais alta e elaborada for a sua sequência, mais difícil será para que seus oponentes a superem, então a vez voltará para você, e você iniciará uma nova vaza, esvaziando a sua mão mais rapidamente.
Parece fácil, né?
NÃO! NÃO, CLARO QUE NÃO!! Não estava prestando atenção lá em cima? Tichu é uma GUERRA, não é carteado, é um wargame isso aqui! Deveria ter sido lançado pela GMT. As possibilidades são infinitas, e não é porque a sua mão tem 3 Ases que você vai esvaziar sua mão primeiro. Você pode ser, e será, surpreendido por jogadores mais experientes. Avaliar uma mão forte no Tichu é uma ciência à parte. Essa avaliação depende não somente das cartas em si, mas do contexto.
Você só pode pedir Tichu se você ainda não tiver jogado nenhuma carta da sua mão, mesmo que os demais já tenham jogado. Em outras palavras: imagine que você está quase esvaziando a sua mão, o seu adversário ao lado até o meio da rodada ainda não jogou uma carta sequer. Você tem 2 cartas na mão apenas, ele tem 14. Você está quase pedindo Uno!, e ele ainda nem começou a se coçar. Então você joga sua penúltima carta, chega a vez dele, e ele fala TICHU! Sim, é isso mesmo que você ouviu. Você, com 1 carta na mão, e ele, com 14 cartas, acabou de dizer pra todos que ELE será o primeiro a esvaziar a mão naquela rodada! Ele joga um Dragão. Não existe carta mais alta que o Dragão jogada individualmente. Apenas uma bomba poderia derrotar o Dragão, mas você não tem uma bomba, a bomba é composta de uma quadra ou pelo menos cinco cartas em sequência do mesmo naipe. Você só tem uma carta na mão, não se qualifica, e seu parceiro também não está com cara de quem tem bomba, ele tá fraco.
O oponente Tichuzeiro vence a vaza e começa uma nova. Ele só joga sequências de 2 ou mais cartas, você não pode seguir porque você só tem 1 carta na mão. Seu parceiro também está com uma cara de poucos amigos, o oponente leu a situação perfeitamente. Ele é o primeiro a esvaziar a mão, e não satisfeito em fazer isso na sua cara enquanto você estava na área do gol, a última carta que ele joga é o Cachorro. O Cachorro passa a vez para o parceiro dele. Sim, se você achou que, ao esvaziar a mão dele, a vez passaria para você em sequência e você finalmente poderia acabar com esse tormento jogando aquele último 2 de espadas que ficou mofando na sua mão, ele joga o Cachorro pulando a sua vez, passando a liderança da vaza diretamente para o seu outro adversário.
Nesse momento, o seu parceiro já é a personificação de uma novela mexicana.
Seu rival restante destrói a mesa, sendo o segundo a esvaziar a mão. E agora vem o plot do plot twist. Você sabe o que acontece quando duas pessoas da mesma dupla terminam respectivamente em primeiro e segundo na rodada?
Isso mesmo, eles ganham 200 pontos, e a outra dupla fica chupando o dedo com 0 ponto, independentemente de qualquer ponto que a dupla que ficou por último tenha ganhado ao longo da rodada! Mas lembra que ele pediu Tichu? Então são mais 100 pontos na conta. Sim, estamos jogando uma partida de 500 pontos, e já está 300 a 0. Nada mal.
Nada te impede de realizar a mesma façanha, mas lembre-se de que, diferentemente do seu adversário sagaz, você não foi capaz de perceber que iria ficar com aquele 2 de espadas parado na mão. Boa sorte.
Mas calma, nem tudo está perdido. Eu tenho uma solução pra você. Que tal pedir Grand Tichu? “O que é Grand Tichu?”, você me pergunta. E se eu te disser que você pode ganhar 200 pontos se você for o primeiro a esvaziar a mão? E se, além disso, o seu parceiro for o segundo, vocês ganharão 400 pontos ao todo, e seus oponentes xingarão muito no Xuíter?
“Interessante, conte-me mais”.
O fato é que antes da rodada começar, primeiro os jogadores recebem 8 das 14 cartas e decidem ali se querem pedir um Grand Tichu (GT), só depois que eles recebem as 6 cartas restantes. Pedir GT significa que apenas com essa informação limitada, você confia no coração das cartas que você será o primeiro a esvaziar a mão, por isso 200 pontos. Quanto maior o risco, maior a recompensa, não é mesmo?
Mas calma, tem mais! Depois que vocês recebem as 6 cartas restantes, antes da rodada começar efetivamente, cada jogador deve separar 3 cartas da mão e dar 1 para cada adversário e 1 para o parceiro. Essa troca acontece simultaneamente.
Você pediu GT, né? É lógico que os seus oponentes vão te passar as cartas mais xexelentas possíveis. Seu nobre camarada vai te passar a melhor carta que ele tem, esperando que você não faça nenhuma besteira, e você vai tentar se livrar das piores cartas da sua mão passando-as para os oponentes.
Pronto, agora sim a rodada pode começar, já tem 200 pontos na mesa, e a primeira carta ainda nem foi jogada. Seu parceiro te deu uma Fênix, considerada por muitos a melhor carta do jogo! “O que faz a Fênix?” Ela destrói todas as criaturas, e elas não podem ser regeneradas.
Opa, foi mal, jogo errado. A Fênix é um curinga. Ela pode entrar em qualquer sequência, seja um par, trio, straight ou fullhouse. Além de, individualmente, ser meio ponto maior do que qualquer carta jogada anteriormente. Então se alguém jogar um Ás, e você jogar uma Fênix na sequência, ela valerá um “Ás e meio”, perdendo sozinha apenas para o Dragão. Em termos de pontos, a Fênix vale “-25”, mas isso é para compensar pela versatilidade da Fênix. Sem mencionar que, o que são 25 pontos frente aos 200 pontos de um GT? O Dragão, por sua vez, ao vencer uma vaza, ele passa todas as cartas daquela vaza para alguém da dupla adversária, sendo que ele mesmo vale 25 pontos positivos. Essa é a compensação do Dragão.
Então você está ansioso, mas confiante. Você tem o Mahjong na sua mão, o que significa que você será o primeiro a jogar. Além dele, que vale 1, você tem 2, 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10, J, Q. Você não tem um 6, mas tudo bem, a Fênix fica no lugar dele de curinga. Você inicia os trabalhos com uma sequência gigantesca de 12 cartas: 1, 2, 3, 4, 5, Fênix, 7, 8, 9, 10, J e Q, restando apenas um Ás e um 4 na sua mão. Você está quase lá, nada mal, né?
E o oponente joga uma bomba!
A bomba é composta de 4 cartas iguais, ou 5 ou mais cartas em sequência do mesmo naipe. É o único caso em que o naipe importa nesse jogo. São as sequências mais raras do jogo, e você não pode usar uma Fênix como curinga nesse caso. A vantagem da bomba é que você pode jogá-la em qualquer momento, independentemente da sequência da vaza ou ainda da ordem dos jogadores. Sim, é o único momento em que você pode pular a vez de alguém deliberadamente, sem o intermédio do Cachorro.
Obviamente o seu parceiro, fraco, sem bomba, não tem muito mais com o que te ajudar. O oponente bombado assume a liderança, jogando sequências que você não é capaz de seguir, e terminando antes de você, frustrando seu GT. -200 pontos para a sua dupla. Dessa vez, você consegue terminar em segundo, evitando um resultado ainda pior, mas o estrago já está feito, seus oponentes estão nadando de braçadas, e vocês estão afogando com um peso de concreto amarrado na perna. Mas vamos parar por aqui.
Tichu não é um jogo para todos. Ele tem muitos pequenos detalhes, um pouco de sorte, um grau elevado de profundidade, depende de dupla, tem uma contagem de jogadores restrita e uma curva de aprendizado não muito amigável. Jogadores experientes irão detonar os novatos na imensa maioria das vezes. Os novatos podem vencer uma rodada ou outra, mas na pontuação geral, os veteranos quase sempre terão uma vantagem considerável.
Se você não gosta de carteado, pode esquecer Tichu. Esse jogo muito provavelmente não mudará a sua visão acerca do tema. Se você gosta de carteado, provavelmente você já conhece Tichu e já tem sua opinião formada. Se você está ingressando nesse mundo agora e está empolgado, pise de leve na água e vá devagar, sem muita sede ao pote, esse não é um jogo que costuma agradar de primeira. Muita gente fica meio perdida, dependendo da quantidade de experiência que ela tem com jogos similares.

De minha parte, o que posso dizer é que esse baralho tradicional com 4 cartas a mais e um punhado de regras em torno de pontos é o responsável por algumas das melhores experiências que eu já tive nesse hobby. Eu já joguei dezenas de carteados diferentões, clássicos, gringos, mas nenhum deles foi capaz de emular a emoção que eu costumo ter jogando Tichu. Eu espero que você possa sentir uma fração do que estou tentando falar aqui. É muito difícil expressar Tichu em palavras, acho que agora eu consigo entender o pessoal que tatua isso no corpo.
Só posso concluir que, quando criança, eu ficava fascinado nas reuniões de domingo em família quando os adultos se juntavam para jogar Sueca e Buraco. Eu sou o neto mais velho dos dois lados da família, então eu não queria brincar com meus primos pequenos, eu queria jogar o que os adultos estavam jogando, mesmo eu tendo meus 11 anos de idade. Meu filho certamente terá mais sorte, nada contra Sueca e Buraco, que particularmente hoje já não gosto mais, mas ele naturalmente aprenderá a jogar Tichu.