tollendal::
Além de tudo q já foi dito, um ponto q acho muito relevante é o "racismo espontâneo" do designer.
Pq percebemos q não era a ideia dele fazer pouco caso da escravidão, nem romantizar o período histórico retratado. Mas o colonialismo está tão imbricado e naturalizado na forma de pensar do europeu q ele nem percebeu o problema ao longo do processo de criação do jogo.
E não estamos falando de um passado longínquo, é um problema presente hoje: o colonialismo é - ou deveria ser - a grande chave de entendimento para o nosso mundo moderno, pq todas as relações sócio-políticas se estruturam em torno disso. Mudam-se os nomes e os rótulos, mas em sua essência as coisas continuam do mesmo jeito.
Caro
tollendal
Esse é mais um dos seus excelentes comentários, eu não apenas concordo, como faço suas as minhas palavras, porque esse é o tipo de comentário que eu gostaria de ter escrito.
Apesar do conceito original do Puerto Rico ser racista, obviamente não foi essa a intenção do Andreas Seyfarth, e nem o mais empedernido crítico do jogo defende um absurdo desses. Mas, mesmo que de forma não intencional, há um viés racista inconsciente ali, fruto de um pensamento colonial, que tornou a Europa um continente tão rico às custas da exploração e miséria do resto do mundo colonizado.
Além disso, refletindo a respeito do colonialismo, surge uma reflexão muito interessante. A escravidão já estava mais ou menos abolida em quase todo o mundo no final do século XIX, pelo menos do ponto de vista legal. Ilegalmente, até hoje ainda se encontram pessoas vivendo em condições análogas à escravidão. Muito recentemente isso foi noticiado no Jornal Nacional, com uma ação da Polícia Federal e do Ministério Público do Trabalho, nos bairros da Abolição e de Vila Isabel no Rio de Janeiro, que libertaram domésticas que trabalharam durante mias de cinquenta anos sem nunca ter recebido nem um tostão, e nunca terem saído da casa de seus patrões. A ironia em relação ao nomes dos bairros só reforça a revolta e indignação. No século XX apenas sete países ainda não haviam abolido a escravidão formalmente, a China em 1906, Serra leoa em 1928, Nigéria em 1936, Etiópia em 1942, Marrocos em 1956, Arábia Saudita em 1962, e pasme, a Mauritânia apenas em 1981. Só para refletir, em 1981, muita gente aqui do Ludopedia já havia nascido, e se a pessoa tivesse o azar de ter nascido na Mauritânia dos anos 70, ela poderia ter sido legalmente uma escrava.
O problema é que, apesar do do racismo, o fruto mais nefasto do colonialismo, estar espalhado e arraigado em todo o mundo, durante todo o século XX, a escravidão era uma questão muito localizada. Por outro lado, o colonialismo em si era uma questão generalizada e presente em quase todo o mundo, especialmente na África até meados do século XX. Indo além, é preciso lembrar que o colonialismo mesmo não existindo mais formalmente, também reflete e impacta negativamente no mundo até hoje, colocando a África e Ásia em um caos social insolúvel. A Conferência de Berlim de 1885, que sacramentou a Partilha da África entre as potências coloniais europeias, ignorou solenemente que haviam nações, povos e etnias estabelecidas há milênios no continente. As linhas demarcatórias dos territórios das colônias, e que deram origem aso atuais países africanos foram traçadas de forma totalmente arbitrária. Com isso as colônias africanas misturavam povos totalmente distintos, não apenas etnicamente, mas com religião, língua, cultura e costumes muito diferentes, como se todos fossem um povo só. Quando esses países se tornaram independentes essas diferenças se acirraram ao máximo, culminando em seguidas e sangrentas guerras civis. Isso fez da África um continente em contínua guerra civil, em alguma parte até hoje. Um retrato muito duro dessa realidade é o
filme Hotel Ruanda de 2004, que trata o Genocídio de Ruanda (de abril a julho de 1994), estrelado por Don Cheadle, Sophie Okonedo, Joaquim Phoenix e Nick Nolte, que eu recomendo muito a quem conhecer um pouco o drama das guerras civis da África.
Para as pessoas entenderam a raízes que levaram a esse genocídio, a Bélgica administrou e explorou o país até os anos 1960, quando Ruanda declarou independência. Sem um poder único central, as etnias tutsi e hutú, que eram inimigas e rivais históricas, mesmo antes da colonização, e nunca foram feitas para conviverem em um país único, nem foram preparadas para isso, durante décadas de dominação europeia, literalmente começaram a ser matar. Foram décadas de conflitos, golpes de estado, perseguição, tortura e morte, envolvendo principalmente as etnias dominantes (tutsi e hutú), que culminaram na Guerra Civil de Ruanda 1990-1993. Apenas meses após a assinatura do tratado que encerrou a guerra civil, o presidente Habyarimana foi assassinado em um atentado, o que levou ao genocídio. Em apenas quatro meses a maioria hutú, que compunha a elite do país e financiava diversas milícias, trucidou mais de 800.000 tutsis, principalmente na base de porrete, facão e machadinha. E esses 800.000 são apenas os números oficiais reconhecidos, porque diversos estudos indicam que muito mais de um milhão de pessoas foram mortas, da forma mais truculenta e violenta possível, e com requintes de crueldade. Isso tudo porque monarcas colonialistas europeus resolveram que o território de Ruanda seria uma colônia belga, sem considerar, um segundo que fosse, as características e peculiaridades dos povos da região.
Basta considerar, que aquilo que se vê hoje na Ucrânia e que o que ocorreu na antiga Yugoslávia desmembrada em meados dos anos 90 (apenas alguns anos após o Genocídio de Ruanda), é uma realidade diária na África. Mas quando o conflito ocorre na Europa é diferente, porque são "brancos matando brancos", tudo é muito noticiado, todo mundo fica sabendo, os países interveem direta ou indiretamente. Agora quando é na África "são apenas alguns negrinhos se matando, o que não tem a menor importância".
E esse problema do colonialismo não é apenas uma questão africana. Até hoje, Índia e Paquistão, que até 1947 compunham "as Índias", pertencentes à coroa britânica, vivem em um estado de quase guerra declarada, por conta de disputas territoriais envolvendo a região da Caxemira. E eu digo quase, porque em três oportunidades os dois países chegaram às vias de fato: na Primeira Guerra da Caxemira em 1947, na Segunda Guerra da Caxemira em 1969, e mais recentemente no Conflito de Kargil em 1999. Essa questão da Caxemira é um reflexo direto da colonização britânica, mas principalmente da forma conflituosa, repentina e muito violenta, como o Reino Unido gerenciou a independência das "Índias", com a criação de um estado hindu (Índia) e um estado muçulmano (Paquistão). O que ocorreu nesse processo foi um verdadeiro, banho de sangue, em que literalmente, vizinho matava vizinho. Para quem quiser saber mais eu recomendo muito a leitura do livro
"Essa Noite a Liberdade" de Dominique Lapierre e Larry Collins. No caso da China, mantendo a discussão na região asiática, basta ver a forma como os EUA encaram a competição contra o colosso chinês, no campo econômico. Para os norte-americanos, a livre concorrência e o livre comércio só são válidos quando eles dão as cartas, e quando levam grande vantagem. Nisso é interessante notar, que os norte-americanos nunca foram uma potência colonial na acepção histórica da expressão, mas herdaram esse pensamento dos seus colonizadores ingleses, e se acham e atuam hoje como a "polícia do mundo", os detentores do "monopólio da virtude e da liberdade", bem como os "guardiões e regentes da civilização ocidental judaico-cristã".
E para não dizer que os efeitos do colonialismo e a forma colonial de enxergar o mundo não chega até nós, brasileiros, basta lembrar o recente episódio em que o CEO do Carrefour difamou de forma ilegal e muito irresponsável, não apenas a carne brasileira mas de todo o Mercosul, bem como os grandes esforços franceses em nível estatal para barrar o acordo do Mercosul com a União Europeia, para proteger os interesses de meia dúzia de agricultores franceses. No mesmo sentido, vale destacar as iniciativas e ameaças do boquirroto e falastrão presidente recém eleito Donald Trump de taxar em até 100% os produtos oriundos dos países que formam os BRICS, caso eles adotem uma moeda única para transações comerciais internas em substituição ao dólar.
Por fim, não custa lembrar a lapidar frase "Tudo deve mudar para que tudo fique como está" do excelente romance "Il Gatopardo" do celebre escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, que trata, ente outras coisas do "Risorgimento", que foi o processo de unificação italiana, quando os reinos e principados perderam influência em prol da criação da Itália moderna. Essa é outra obra que tem inclusive filme de 1963 (até o eterno Trinity, Terence Hill, está no elenco, os mais "vividos" entenderão), e que eu também indico muito.
Um forte abraço e boias jogatinas natalinas!
Iuri Buscácio