fantafanta::Pô, muito bacana seu texto!
Realmente sinto falta de mais reflexões como essa.
Sobre o conceito de obra-prima eu divirjo um pouco de você, pois eu não acho que faz muito sentido questionar o que alguém acha ou não.
Tipo, você acha que a Monalisa é uma obra-prima?
Foram décadas de estudos, pesquisas, disputas e muito bafafá até chegar a um consenso coletivo que trata-se de uma pintura marcante e socialmente relevante.
Entende que não importa muito a opinião pessoal de cada um? O impacto da obra ultrapassa qualquer limite enquadrado em uma análise pessoal. É claro que contribuições pessoais enriquecem o debate. Mas a Monalisa não vai deixar de ser uma obra-prima do renascimento porque o meu tio acha ela feia.
A obra-prima seria, no meu entendimento, não uma obra primorosa em termos de qualidade, mas a principal obra que sintetiza o estilo de um autor ou de um gênero em uma época.
Essa noção é interessante porque independe da percepção de valor pessoal. Assim a gente pode estabelecer que o Spawn é a obra-prima da Image nos anos 90. E eu não estou aqui para dizer que isso seja algo bom! rs
Mas nos ajuda a compreender dialeticamente a evolução histórica da arte sem se prender a algo tão mesquinho como a opinião individual se sobressaindo a do coletivo. Ainda que isso faça parte do pacote.
Experimenta perguntar para um moleque de hoje em dia o que ele acha do Spawn... arrisco dizer que ele vai retrucar: quem?
E olha que Spawn vendeu horrores naquela época! Passou. Só que ninguém pode questionar o fato de que a obra redefiniu a indústria dos quadrinhos e portanto definiu o que foram os anos 90.
Voltando ao mundo dos jogos de tabuleiro, você perguntou se eu considero o Puerto Rico uma obra-prima. E eu respondo que não sei, mas que que provavelmente é sim. Só com o tempo nós vamos descobrir mesmo. Agora se você me perguntar se eu aprecio Puerto Rico, aí a resposta fica mais fácil: não.
Voltando ao meu argumento anterior. Não existe a possibilidade de haver muitas obras-primas, dentro do conceito que eu apresentei. Mas é possível que existam inúmeros jogos semelhantes que mantenham o padrão de qualidade elevado do gênero ou da "escola", se preferir.
Você também perguntou se eu tenho um top 1 da vida, um jogo preferido. Eu digo que não porque meu gosto é volátil. rs
Tem vários jogos diferentes que eu curto bastante. Não saberia dizer qual deles eu prefiro, até por serem muito diferentes entre si. Além disso dependendo do momento eu vou preferir jogar uma coisa ou outra.
Caro
fantafanta
Meu camarada, achei muito interessantes os pontos que você levantou, e gostaria de acrescentar alguns outros para a sua apreciação.
Certamente a noção de obra prima vai muito além de uma mera opinião pessoal. Inclusive o próprio conceito de obra prima meio que se deturpou ao longo do tempo, deixando de ser a "obra primeira", ou melhor obra de um artista, passando a ser uma obra fenomenal. Se utilizarmos esse conceito na sua acepção original, na verdade cada artista poderia ter uma única obra prima, e todas as outras seria secundárias. Só que não é bem isso que acontece com os grandes mestres, em todos os campos da arte. Justamente o que faz com que esses luminares sejam grandes mestres é a capacidade de produzir diversas obras fenomenais, que poderiam ser tranquilamente obras primas.
Ninguém duvida que a Mona Lisa seja a "obra prima" de Da Vinci, mas talvez porque a "Última Ceia" seja um mural e não um quadro. Como mural a ação do tempo foi muito mais severa, e a do homem também. Basta dizer que algum pároco da Igreja de Santa Maria delle Grazie achou uma boa ideia, abrir uma porta bem no meio dessa pintura belíssima. Talvez se "A Última Ceia" fosse um quadro e tivesse sido melhor preservado ao longos dos anos (o mural quase foi destruído por um bombardeio durante a Segunda Guerra, como mostrado no filme "Caçadores de Relíquias"), se ele estivesse exposto em um museu de prestígio como o Louvre, e eu digo talvez, apenas talvez, possivelmente nós estaríamos discutindo qual seria a "obra prima" de Da Vinci. Mantendo o tema pintura, não há dúvida de que "Impressão Sol Nascente" é a pintura mais importante de Monet, mas diversas outras como "Mulher com Sombrinha" e "O Parlamento de Londres", não ficam nada a dever. O Picasso é outro que é impossível escolher uma obra prima (Guernica, Dora Maar com Gato, Les Demoiselles d'Avignon, Vida). O mesmo se aplica a diversos outros mestres como Van Gogh (Noite Estrelada, Terraço do Café na Praça do Fórum, Quarto em Arles, Comedores de Batata, etc), Renoir (Almoço dos Barqueiros, Baile no moulin de La Galete, Meninas ao Piano), Caravaggio (Narciso, Davi e Golias, Medusa), Rembrant (Ronda Noturna, Lição de Anatomia, os Auto-retratos).
Mudando de expressão artística, quem já teve o privilégio de ver de perto o Davi do Michelangelo talvez concorde que essa é sua obra prima. Mas aí o sujeito vai ao Vaticano, vê a Pietá, que é uma experiência realmente transcendental, independente da crença de cada um ou até da falta dela, e a afirmação da frase anterior começa a não ser tanto uma certeza assim.
Do mesmo modo, na música certamente alguém há de dizer que a obra prima de Mozart é Eine Kleine Nachtmusik (certamente a mais famosa de suas obras), mas o que dizer da abertura de Le nozze di Figaro, o que dizer do Requiem da Flauta Mágica?!?! E Beethoven que sem pensar muito dá para destacar a sonata para piano nº 14 (Sonata ao Luar), o primeiro movimento (Allegro con Brío) da sinfonia nº 5, Für Elise da sinfonia nº 3 e como não poderia deixar de ser a Ode à Alegria da sinfonia nº 4. Qualquer uma dessas poderia ser tranquilamente a "obra prima" de Beethovem.
Tido essa que que eu citei são exemplos de verdadeiras obras primas, independente do que eu, você ou qualquer um possa falar delas. O gosto pessoal de cada um é totalmente irrelevante nessa questão. Além disso, todas elas tem algo em comum. Todas, absolutamente todas, passaram no teste do tempo. Nós estamos falando de obras com séculos de idade e que continuam relevantes até hoje. Até hoje nós as apreciamos e até hoje falamos e escrevemos sobre elas.
No caso dos quadrinhos, um garoto comum talvez não conheça o Spawn, nem saiba da sua importância para essa forma de arte. Mas certamente, alguém que curta, se interesse e conheça quadrinhos, mesmo tendo nascido já no séc. XXI, conhece não apenas o Spawn, como o Sandman e o Cavaleiro das Trevas. Também é preciso considerar a possibilidade de acesso a essas obras que cada pessoa tem. Muito infelizmente, gerações de pessoas nasceram, viveram e morreram no interior do semiárido nordestino a região mais pobre do Brasil, provavelmente sem nunca ter ouvido falar de nenhuma dessas obras, principalmente antes da internet. Em alguns bolsões de pobreza até hoje a informação não chega.
Já em se tratando de board games, cuja a escala de tempo não é de séculos, mas de décadas, mesmo em se tratando de jogos modernos, já dá para apontar algumas obras primas. Certamente o Puerto Rico é uma dessas obras primas, da mesma forma que o Catan, o Caracassonne, o Agricola, o 7 Wonders, entre outros, independe da opinião pessoal que alguém possa ter a respeito delas. O Catan vai completar ano que vem 30 anos e ainda é falado e comentado. O Carcassonne e o Puerto Rico já estão na casa dos 25 anos e ainda são relevantes. Mesmo o Agricola e o 7 Wonders sendo mais recentes, um já tem quase 20 anos e ou outro quase 15. E são jogos que ainda estão aí fazendo sucesso. Do mesmo modo, não tenho dúvida alguma que daqui a 30 anos ainda estaremos jogando o Azul, o Ticket to Ride e o Pandemic (o original ou algum derivado), três outras primas na minha opinião. E olha que eles competem em uma indústria que lança milhares de títulos todos os anos.
Para terminar, eu acho que quando se alia uma qualidade enorme, grande relevância no setor e a vitória na prova do tempo, e todos os jogos citados acima se encaixam nisso, na minha humilde opinião, então realmente dá para falar em obra prima.
Um forte abraço e boas jogatinas!
Iuri Buscácio