O prazer do Jogo
Por: Ian Carvalho (@_carvalhoian), designer de jogos.
Aprecio muito o trabalho de crítica e discussão em teoria da arte. Lembro-me de um livro do professor Ismail Xavier, sobre a situação-cinema, quando ele discorre sobre a experiência cinematográfica do espectador. Decidi fazer um paralelo, um comparativo, pensando na experiência do jogo de mesa, me valendo das palavras do Ismail.
Quando a pessoa comum, sobretudo nós trabalhadores, consegue tempo para dedicar à experiência do jogo de mesa, opera-se em sua consciência uma mudança psicológica crucial. Do ponto de vista subjetivo, em muitos casos, ela senta à mesa em busca de distração e entretenimento, para escapar à aspereza e esgotamento do “mundo real” por um bom par de horas. Para este recorte de jogadores, pouco importam os outros jogadores à mesa, o conforto das cadeiras, o tipo de iluminação, como outras condições técnicas, e às vezes até o jogo não importa tanto assim. O importante é aproveitar aquelas duas horinhas livres, seja lá com quem puder jogar naquele momento e poder escapar das injunções do nosso mundo opressivo. Isso acontece comigo muitas vezes.
No entanto, a par das muitas motivações subjetivas, entram em jogo certos fatores objetivos - a mudança psicológica da consciência que acompanha automaticamente o simples ato de sentar à mesa para jogar. Para mim, esse cenário “precário” está longe de ser o ideal. Sempre que possível irei procurar, então, o cenário perfeito que me dê o maior prazer à mesa. O que frequentemente não consigo alcançar.
Um dos principais aspectos que eu persigo neste ato “corriqueiro” de jogar debruçado sobre uma mesa de madeira, é o isolamento mais completo possível do mundo exterior e de suas fontes de perturbação visual e auditiva. A jogatina ideal seria aquela onde não houvesse distrações externas. A eliminação de todo e qualquer distúrbio visual e auditivo não relacionado com o jogo. Assim como um filme justifica-se pelo fato de que apenas na completa escuridão, sem distratores, podem-se obter os melhores resultados na exibição do filme. A perfeita fruição do ato de jogar um jogo de mesa é prejudicada por distúrbios visuais ou auditivos muito importantes, que faz o foco do jogador se dividir com frequência, contra sua vontade. Quando estou a ponto de suscitar uma experiência especial mediante a exclusão da realidade trivial da vida corrente, e aí preciso lidar com batidas de porta, gente entrando e saindo, pausas para comer, jogadores atendendo ao telefone, mudanças de mesa etc. me sinto como atirado de volta ao mundo exterior, incompatível com a realidade psicológica da minha experiência de jogo (principalmente os mais imersivos). Daí a inevitável conclusão de que a fuga voluntária da realidade cotidiana é uma característica essencial da experiência de jogo para mim.
Por que prefiro esta espécie de confinamento? Pelo efeito psicológico da alteração da sensação de espaço e do tempo. Sabe-se que quando nós estamos focados em um determinado objeto por muito tempo, perdemos a noção do tempo e, não raro, até do espaço onde estamos (como acontece mais facilmente com os jogadores de videogames). Acredito que na mesa este efeito dá à imaginação maior liberdade de interpretar os tabuleiros, cartas e componentes que nos cerca. Quanto maior a capacidade do nosso olho distinguir com clareza a forma real das nossas cartas, dos nossos tokens etc. maior o papel desempenhado pela imaginação, que faz um registro de nível elevado de subjetividade do que ainda resta de realidade visível. Por isso a importância grande de poder jogar com calma e com atenção, para podermos apreciar e contemplar os movimentos e as imagens (sobretudo). Mais sobre isso à frente, no item “A experiência leve”.
O jogo na mesa vem se encontrar com a expectativa exaltada, servindo de alívio para o jogador, que adentra uma realidade diferente. Surge o prazer. Ocorrem aí fenômenos significativos: A imaginação que foi estimulada “apossa-se” do jogo, que vai assentando com sua narrativa (que desejo muito ser envolvente) ações de realidades fantasiosas. Daí a sensação modificada de tempo gera um desejo de ações intensas do jogo, que permitem realidades virtuais a serem vividas. Salvo exceções, é intolerável, ou até mesmo insuportável, viver no jogo uma estória cuja ação segue o ritmo normal dos acontecimentos na vida real cotidiana. Não queremos jogar narrativas onde somos adultos sérios que levamos filhos na escola, compramos pão e assinamos cheques. Isto não me satisfaz enquanto jogador. Subjetivamente, eu desejo uma narrativa mais fantasiosa ou emocionante, que de algum modo eleve meus níveis de adrenalina. Insatisfeito esse meu desejo psicologicamente motivado, a sensação de tédio, até então adormecida, será inevitavelmente desperta. Em outras palavras, o jogo em questão será vivido como tedioso. A propósito, é importante assinalar que a impressão de "chato" decorre, muitas vezes não do jogo propriamente dito, mas do estado de consciência do jogador. Por isso acho tão importante a preparação da experiência, o engajamento coletivo e a contemplação.
Importante também é mencionar a aterradora falta de imaginação do ser humano moderno: o cinema, a literatura, os quadrinhos, o teatro, são muitas vezes impotentes para suprir esta falta de imaginação, sintoma essencial do sapiens contemporâneo. O jogo de mesa tenta se colocar na posição de uma realidade irreal ou um caminho para o entretenimento e a distração. Mas acredito que a experiência coletiva do jogo, sobretudo os roleplayings, canaliza a imaginação, dando-lhe ainda o alimento de que tanto necessita.
Lembro-me de quando joguei pela primeira vez
El Grande. O meu estado mental ao sair da experiência se manteve alterado por algum tempo, o que foi facilmente percebido pelos adversários que me acompanharam. Por motivos, talvez inconscientes, eu me identifiquei com determinadas mecânicas, ideias ou situações proporcionadas pelo jogo. A minha surpresa e excitação foram tão grandes que essa disposição mental permaneceu por um bom tempo, até que a experiência do jogo retrocedesse perante as solicitações da realidade cotidiana, acabando por dissipar-se.
Além desta custódia fraterna, também acredito que ambientações como trilha sonora de fundo, cadeiras mais confortáveis, mesas amplas etc. contribuem muito para o prazer da experiência, para a captura para dentro da diegese do jogo. Para mim e tantas outras pessoas não é tão fácil e barato conseguir este cenário com frequência, além de nem sempre ser possível diante de outras possibilidades como os jogos nos encontros públicos, nas convenções, na luderia etc.
A experiência leve
A calma, a atenção e o foco são importantes demais para aproveitar melhor a experiência. Podemos gerar esse tipo de energia positiva quando colocamos nossa mente em um estado de contemplação e entramos em contato com o que está acontecendo no momento presente diante do tabuleiro, com calma. Assim tornamo-nos conscientes do tipo que cartas seguramos, se apropriando da característica de cada um, contemplando a arte do tabuleiro, prestamos atenção na nossa alegria e nos imergimos totalmente presentes para a experiência. Essa energia nos ajuda a tocar a experiência de maneira mais leve e prazerosa. Assim como também a fala gentil, a generosidade com os jogadores, a hospitalidade, a empatia etc.
Esse tipo de energia não mobilizamos arduamente. É muito agradável e relaxante, e não precisamos de esforço ou preparação para fazê-lo. É uma arte encontrar maneiras agradáveis de se comunicar, de ameaçar o seu adversário, de comemorar a vitória antes do tempo. É uma virtude, a comunicabilidade afável mesmo na competição, mesmo dentro da euforia de um jogo que reclama mais exultação.
A função terapêutica
Um dos elementos essenciais da experiência do jogo de mesa é o que podemos chamar de sua função psicoterapêutica. Todos os dias milhares de pessoas sentam à mesa com pessoas queridas, apertando os laços de amizade, gargalhando junto, se emocionando ou tornando suportável um dia péssimo. O jogo de mesa oferece compensação para muitas vidas que perderam grande parte de seu brilho. Conheço pessoas, muitas trabalhadoras, outros com doenças lamentáveis, outras tantas depressivas que conseguem ter alegria no jogo de tabuleiro. Trata-se de uma necessidade moderna a de se divertir em conjunto de modo inteligente, respeitoso e instigante, para além de sobreviver neste mundo desafiador, hostil, incompleto, inseguro, invariavelmente perigoso. Os jogos analógicos nos fazem ficar contentes, bem-dispostos, alvoroçados, desapontados, frustrados, enganados, mas sempre satisfeitos. Muitos ainda nos ensinam muitas outras coisas, conhecimentos que talvez nunca teríamos a chance de obter, e talvez até nos incitam à reflexão e nos livra das preocupações. Alivia um pouco o fardo da vida cotidiana e serve de alimento à nossa imaginação empobrecida. É um amplo reservatório contra o tédio e uma rede encantadora de amizade. A cada semana tento buscar meu isolamento com meus amigos e amigas, assistir ao colorido filme de sorte, destreza, inteligência e amizade que se projeta na minha tela de madeira e pano. Depois, transitoriamente mudados, nós saímos à luz do dia ou para a noite; cada qual agora com sua própria emoção albergada no peito.