Dentre os diversos e importantes prêmios da indústria dos jogos de tabuleiro, nenhum é tão esperado ou comentado como o Spiel des Jahres. O principal prêmio alemão de jogos é também o principal prêmio mundial. Ignacy Trzewiczek, um dos profissionais mais respeitados no mundo dos jogos de tabuleiro, defende que o Spiel des Jahres é o
único prêmio realmente importante na indústria.
Por toda a sua importância e por ser referência em diversos aspectos, o Spiel é muito aguardado e sempre gera debates interessantes. Para começo de conversa, é bom entender que o SdJ é um prêmio dividido em três categorias: Kinderspiel des Jahres (Jogo Infantil do Ano), Spiel des Jahres (Jogo do Ano) e Kennerspiel des Jahres (algo como "Jogo do ano para conhecedores").
No ano passado, 2023, o jogo que gerou mais bafafá por ter vencido o prêmio foi o
Challengers, vencedor da categoria Kennerspiel, ou jogo para conhecedores, jogadores já experimentados e que já têm o costume de jogar jogos de tabuleiro. Aqui mesmo na Ludopedia existe um artigo traduzido do Board's Eye View em que o autor defende que Challengers não é o justo vencedor do prêmio (claro, na sua opinião), além de argumentar sobre as razões dele não adorar Challengers, apesar de ter vencido o prêmio mais importante.
Challengers é um jogo, no mínimo,
corajoso. O jogo é estruturado em um formato de torneio, em que as rodadas são quebradas em partidas 1x1 e, ao longo das 7 rodadas, todos os jogadores jogarão contra todos, conquistando pontos de vitória. Ao final da 7ª rodada, os dois que conquistarem mais pontos farão a grande final. O vencedor da grande final é, também, o vencedor da partida.
A coragem citada vem de algumas escolhas.
- Criar um jogo para uma a oito pessoas em que, rodada a rodada, os confrontos serão todos 1x1;
- Publicar um jogo que é claramente melhor em número par de jogadores, num momento de mercado em que a contagem de jogadores faz muita diferença nas vendas de um produto;
- A final, que decide a vitória, pode ser disputada entre jogadores que alcançaram pontuações MUITO diferentes. É plenamente possível que um jogador com 25, 26 pontos durante as 7 rodadas classificatórias, vença na final um adversário que tenha feito 40 pontos durante a classificação.
A carta no canto inferior direito determina o tapete onde este jogador disputará suas partidas. Curiosamente, nessa foto a carta não corresponde ao baralho inicial, como podemos ver pelos símbolos não correspondentes no canto esquerdo inferior das cartas de jogo e no canto direito inferior na carta de duelos.
Basicamente, Challengers se assemelha a um Deck Building normal. Você e todos os outros jogadores partem de um baralho idêntico e, ao longo das rodadas, vão melhorando os seus baralhos com novas cartas adquiridas dos três montes de cartas: A (cartas mais fortes que as iniciais, mas ainda melhorias fracas), B (melhorias intermediárias, de forma geral melhores que as cartas básicas) e C (melhorias realmente muito boas). Além de adquirir novas cartas, entre as rodadas os jogadores também podem tirar de seus baralhos quantas e quais cartas desejarem.
O jogo é um Pique Bandeira (pra mim, rouba-bandeira) disputado em combates simples carta X carta. Você vai abrindo cartas do seu baralho até que a força das suas cartas seja igual ou superior à da carta do oponente que defende a bandeira. Quando isso acontece, você junta suas cartas e apenas a do topo passa a contar para a defesa. Agora é a vez do adversário fazer o mesmo.
São duas condições de vitória em uma disputa pela bandeira:
1. você deve ficar com a posse da bandeira quando o baralho adversário acabar;
2. você deve forçar o seu adversário a descartar a sétima carta de nome diferente em seu banco.
Cada jogador possui um banco, para onde vão as suas cartas derrotadas. Este banco possui 6 espaços e cartas de mesmo nome (existem diversas cópias de certas cartas no baralho) devem ocupar o mesmo espaço do banco. Quando uma carta extrapolaria o sexto espaço do banco, o jogador dono daquela carta perde a partida.
A grande curiosidade do jogo é que, uma vez que você fez as alterações no seu baralho entre as rodadas, durante a rodada mesmo, a ordem das suas cartas é definida ao acaso. Você deve embaralhar seu baralho, o adversário pode cortar o baralho como desejar e a partir daí apenas as cartas do topo serão abertas em sequência, uma a uma. Essa é outra escolha corajosa, mas essencial no jogo. Jogadores com mais tendência a quererem o máximo de controle sobre suas escolhas podem se incomodar com esse aspecto e acharem tudo "muito aleatório".
O fato é que é essa escolha que torna o jogo emocionante, do início ao fim. A ordem incerta das cartas faz com que você possa acabar desperdiçando recursos importantes quando não precisaria. Ao passo que também pode não aproveitar ao máximo de um efeito ou outro de suas cartas. Isso também pode acontecer com seus adversários e, muitas vezes, você se vê torcendo para isso.
Se, em algum momento, você tiver uma carta de força 4 defendendo a bandeira, nada melhor do que ter seu adversário comprando uma carta de força 3 e, depois disso, colocando uma carta de força 5 ou mais sobre a carta de força 3. A soma 8 é muito mais que o necessário para roubar a bandeira e tirou recursos importantes do baralho adversário.
Na fase de construção do seu baralho, você vai poder seguir diversas estratégias. Pode ir para um baralho com mais disrupção do baralho adversário, ou para um deck de maior força bruta, ou mesmo decks que controlam melhor o seu banco e o banco do adversário. Existem cartas que são suporte a partir do banco, aumentando a força de suas cartas jogadas nas disputas, dentre diversas outras opções. O jogo explora bem diversos caminhos de construção de baralho.
Limpar o seu baralho, para mim, parece até mais importante que construir sua estratégia a partir das melhorias que conseguir. Ter um baralho muito cheio também significa preencher o seu banco muito rapidamente e acabar perdendo muito rápido. O fato é que a sinergia do seu deck é muito importante para que você tenha boas partidas.
Um outro fator que Challengers ensina na construção de baralhos e que eu só tinha experimentado em jogos competitivos como Magic: The Gathering e Pokémon TCG, é o fato da construção do seu baralho ter que considerar, tanto quanto a força e os efeitos das cartas que você adquirir, a consistência do seu baralho. Por consistência entenda: a capacidade do seu baralho de repetidas vezes fazer sua estratégia principal funcionar. Você tem que considerar que a ordem de compra das cartas não será perfeita. É bem provável que você desperdice certos recursos e cartas, por isso é importante a consistência. A ordem dos fatores não pode alterar tanto o produto.
Essa consistência até é vista em outros deck buildings quando você tenta trashar (excluir permanentemente) certas cartas do seu baralho. Geralmente você tenta excluir aquelas cartas inicias para que elas não "poluam" uma mão mais adiante, tirando mais cartas boas. No entanto, no Challengers, por você poder descartas quantas e quais cartas quiser, isso é ainda muito mais relevante.
Por último, o jogo também traz um pouco daquela emoção que só quem já disputou torneios realmente competitivos conhece. A emoção da disputa, de vencer a partida, de abrir um suíço 3-0... tudo isso é sentido mais fortemente no Challengers do que em qualquer outro jogo não-competitivo que eu já joguei.
A final em partida única é outro motivo para o jogo ser tão bom. Não importa se o Chelsea é um super time, com grandes investimentos e vários dos melhores jogadores em suas posições no mundo. O Cássio pode estar num dia inspirado, fechar o gol completamente, o Guerrero fazer um gol e o Corinthians ser bicampeão mundial, mesmo tendo apenas uma Libertadores.
Esse é Challengers e, por todos esses motivos, além das importantes e profundas escolhas a serem tomadas entre as rodadas, eu considero ele um justo Kennerspiel. Não é tão trivial quanto pode parecer e é inovador, engaja e traz propostas muito diferentes para uma indústria que conta com quase 5 mil lançamentos por ano.
Challengers, para mim, é o melhor jogo lançado desde
Duna: Imperium.
Faça um favor a você mesmo e experimente. Se você não gostar, a culpa é do seu gosto duvidoso

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