PUBLICADO ORIGINALMENTE EM http://onboardbgg.com/2016/05/17/sobre-a-mesa-twilight-struggle/
Se você tem uma idade próxima da minha, creio que deva ter uma relação interessante com a Guerra Fria. Cresci em meio a termos proferidos no telejornal como corrida espacial e armamentista, KGB, Irã-Iraque, sandinistas, revolução muçulmana, dama de ferro… Isso porque peguei apenas o braço oitentista do conflito. Apesar de pouco entender estes nomes, a Guerra Fria foi parte de minha formação, ainda mais pelas influências nos filmes, na TV, nos quadrinhos, nos brinquedos e jogos etc.
Twilight Struggle é um jogo que se passa durante as quatro décadas deste embate militar, ideológico, cultural, econômico e político que quase transformou o planeta em um deserto por mais de uma vez. Até o ano passado foi o jogo número um no ranking internacional do boardgamegeek.com, ocupando hoje a segunda posição. O que faz deste jogo um dos mais respeitados de toda a ludoteca mundial?
Mecânica:
– Controle de área
– Gerenciamento de mão
– Seleção simultânea de ações
– Rolagem de dados
O jogo representa a disputa pelo controle de países por todo o globo. Cada país ou bloco é representado abstratamente por um número indicando sua estabilidade, independência e poder. Marcadores numéricos são colocados pelos dois jogadores para igualar ou superar este número. Para exemplificar rapidamente, o Irã tem um número de estabilidade dois. Em uma situação tranquila, se o jogador americano tiver dois pontos de influência no Irã, passará a controlá-lo. Se a USRR, por sua vez, colocar um único ponto de influência lá, os Estados Unidos perdem o controle, pois o número de estabilidade também indica a diferença que deve ser superada. Explico: se a USSR tem 1, os EUA precisam agora de 3 pontos de influência, levando a diferença entre as potências novamente para 2, o número de estabilidade do país.

Uma partida de Twilight Struggle tem por cerne a escolha e a jogada de cartas, a partir das mãos dos dois jogadores, um representando os Estados Unidos da América e outro representando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. As cartas são distribuídas sem distinção destes países e têm duas informações principais. Um número no canto superior esquerdo e um evento descrito em um pequeno texto. Em sua vez, o jogador coloca uma carta em jogo escolhendo utilizar este número na execução de alguma operação ou realizar o evento. Entretanto, as cartas podem ser atreladas a alguma superpotência. Algumas têm uma estrela branca (EUA) no mesmo canto superior esquerdo sob o número; outras, uma estrela vermelha (USRR) e um terceito tipo tem estrelas divididas ao meio, com as cores branca e vermelha e não tem afiliação.
Antes de conhecer as operações é importante saber que quando um jogador utiliza uma carta ligada ao seu país ou uma carta neutra, ele pode escolher o evento ou os pontos para bancar suas operações, mas se jogar uma carta atrelada ao oponente, ele pode usar apenas os pontos e o evento (que favorece o jogador inimigo, no caso) DEVE acontecer. Por ser sempre obrigado a jogar uma carta, as escolhas em Twilight Struggle são extremamente difíceis e devem ser analisadas minuciosamente, pois são comuns as faltas de opções favoráveis por ter uma mão repleta de cartas associadas ao adversário!
Vejamos as operações, primeiro. Estas são executadas utilizando apenas o valor numérico das cartas. Uma das mais comuns é a colocação direta de influência em algum país, ao custo de um para cada ponto ou dois, no caso de um país controlado. No caso da Hungria, por exemplo (estabilidade 2), imagine-a sem influência alguma e o jogador soviético joga uma carta com valor 3. Ele decide gastar dois pontos lá e o terceiro em outro lugar do mundo. Você já sabe que, neste caso, a USRR controla agora a Hungria. Se o jogador americano resolver também influenciá-lo, a primeira influência gastará dois pontos de operação, devido ao controle soviético. Com o placar atual de USRR 2 x 1 EUA, não há mais controle e uma segunda influência custaria aos americanos apenas um ponto.

Existem ainda tentativas de realinhamento ideológico e golpes de estado financiados pelos números nas cartas que, apesar de simples, não os descreverei aqui. A corrida espacial também é representada e serve como única maneira de escape da obrigação de ativar eventos inimigos, apesar de limitada. A ameaça nuclear mostra suas cores e cada golpe tentado em certos países aumenta o risco da aniquilição atômica que deve ser levado em conta no planejamento das açõs, pois quem causa o holocausto perde a partida! Existem ainda cartas de pontuação de cada região que consideram os países controlados e a supremacia de influência no cenário em questão, movendo assim o marcador de pontos para o lado americano ou soviético. Calcular com precisão quando jogar cada carta dessas, potencializando sua influência em certo momento é um dos caminhos para a vitória. A partida termina quando um dos blocos atinge vinte pontos ou ao final de dez rodadas.
Considerações Finais:
Olhando sem cuidado, Twilight Struggle seria um jogo quase abstrato de colocação de marcadores numéricos cuidadosamente alocados. Aliás, esta é a crítica mais ouvida de quem não o aprecia. Sempre o vi, contudo, por outra ótica.
Representar, por si só, um conflito de quarenta anos, de tamanha complexidade e que se desenvolveu por áreas tão distintas quanto campos de batalhas pontuais, quadras esportivas, laboratórios científicos ou propaganda política de maneira tão simples é o maior mérito do jogo. Intenção dos designers como relatado por eles mesmos nas notas ao final do manual. Não há miniaturas ou conflito direto no sentido tático do termo, mas apenas marcadores de papelão, cartas e a análise criteriosa do que fazer, onde fazer e quando fazer. Quando abrir mão, quando arriscar, quando investir pesado.
Como as cartas têm grande impacto nas estratégias, conhecê-las é essencial, por isso pode ser um jogo pouco interessante nas primeiras partidas ou com jogadores inexperientes. Ele valoriza demais a experiência, sendo um daqueles jogos para ser usufruído por uma dupla regular de jogadores. Por estar mergulhado na História até à cabeça, cedo ou tarde, certo evento acontecerá e se não você não o conhecer ou não imaginar seus efeitos baseado nos fatos reais verá parte de seu investimento estratégico desintegrar. O jogo é lento, sem muitos atrativos visuais e exige conhecimento prévio para a merecida avaliação. Na correria de hoje, quando cada dia oferece um novo jogo imperdível que você nem conhecia minutos atrás, mas não viveria sem ele, entendo a falta de “apelo” do título. Porém, sou um wargamer também, daqueles que chamo de “tiozão” e que ama marcadores de papelão sobre um mapa.

Sobre isso, quero tecer algumas palavras. Twilight Struggle é o primeiro jogo lançado aqui da GMT, a maior empresa do mundo no gênero wargame, com um catálogo fabuloso. A falta de oferta e de conhecimento do estilo no Brasil fará os novatos sedentos por miniaturas torcerem o nariz e esse não é o público alvo deste produto. Quando amadurecemos neste hobby, aprendemos a admirar a beleza de cubos ou tokens, a sutileza e a abstração de um sistema elegante de regras. A GMT oferece uma série de jogos de guerra extramamente complexos que duram, literalmente, dezenas de horas e que simulam todas as minúcias táticas, estratégicas ou logísticas. Ao lado deles, Twilight Struggle é um jogo para iniciar no estilo, uma verdadeira exceção. Por abranger, em escala mundial, uma guerra sui generis e de maneira tão simples mecanicamente, atingiu um público não habituado ao estilo; ao mesmo tempo, por utilizar o estilo guiado por cartas de jogos que revolucionaram e revigoraram o gênero como We the People, Hannibal ou Paths of Glory, angariou também fãs do meio. Vale destacar, para quem não conhece, o cuidado com a informação histórica das cartas e situações, inclusive com lista ao final do manual descrevendo os acontecimentos que inspiraram cada carta e com notas mostrando as escolhas dos designers, algo tão usual nos produtos GMT e, infelizmente, uma raridade de ser ver em outras empresas.
Twilight Struggle não é um produto para as massas, seja na proposta, no visual ou na jogabilidade. Mas conquista a todos que dedicaram o tempo ou abriram mão dos preconceitos para aproveitá-lo e isso explica as notas altíssimas de quem o avalia e a posição merecida no ranking. Melhor jogo do mundo? Tal coisa não existe, mas, sem dúvidas, um jogo que escapou do próprio nicho inicial por mérito, um clássico moderno e, particularmente, um de meus dez jogos favoritos.