Em uma era onde os jogos de cartas brasileiros seguem uma linha bastante semelhante a outros títulos estrangeiros (beirando o plágio), Cultive chega de mansinho como uma brisa de mudança refrescante.
"Amanhe".
Todos já frisaram este ponto diversas vezes, mas não custa lembrar que o jogo foi produzido por mulheres desde a raiz até as folhas, através de um projeto que requereu uma garra extrema! Um “parabéns” a todas as pessoas envolvidas! Aliás, um não, uns vinte.
E o jogo em si, do que se trata, afinal? Ora essa, de cultivar, é claro!
VISÃO GERAL
Segurando uma mão de cinco cartas, representando diversos vegetais, os jogadores se revezam fazendo três ações dentre quatro possíveis (em qualquer combinação):
1) "Plantando-os" no seu próprio terreno, à sua frente;
2) Fazendo-os crescer, colocando outro vegetal por cima de um já plantado e revelado (caso seja um de 2 ou 3 níveis);
3) Trocando uma carta da mão por uma das oito viradas para cima sobre a mesa, chamadas de "feira";
4) Descartando completamente a feira para virar oito novas cartas do baralho.
O intuito é de que cada jogador planeje seu plantio e mantenha os vegetais em plenas condições para serem colhidos e marcarem os tão preciosos pontos de vitória.
Cada vegetal tem sua particularidade: os que gostam de sombra devem ser mantidos bem juntinhos de árvores mais altas que eles, enquanto os que gostam de sol precisam de seu próprio espaço. Algumas espécies precisam ter duas cartas iguais jogadas simultaneamente e, outras, devem crescer na rodada seguinte.
Um de cada tipo de vegetal posando para a foto.
Na rodada seguinte, então, os vegetais sobreviventes (e que estão em seu nível máximo) podem ser colhidos e vão para baixo das suas cartas de terreno, sob a exata mesma coluna. Além dos pontos impressos no canto da carta, os conjuntos de vegetais colhidos também valerão pontos bônus se estiverem ligados a outros com os mesmos símbolos. Estes conjuntos são denominados "Consórcios".
Por fim, após completadas uma quantidade variável de rodadas a depender do número de jogadores, o jogo termina. Quem teve a melhor colheita vence!
ANÁLISE
PRESENÇA TEMÁTICA:
Cultive apresenta um sistema bem integrado com o tema de plantio e colheita, onde a pontuação depende da combinação de vegetais jogados e reforça a necessidade de se pensar a curto e médio prazo, recompensando a habilidade de adaptação dos jogadores de uma maneira simples e satisfatória.
O fato de cada tipo de vegetal ter uma necessidade faz com que diversas opções sejam consideradas, mesmo aquelas que você talvez não fosse tão propenso a executar normalmente.
O sistema de Consórcios parece um pouco desconectado do restante, entretanto, atribuindo pontos extras por sequências de vegetais diferentes com símbolos iguais. Este é um ponto importante a se atentar, pois dois vegetais idênticos lado a lado na sua área de colheita devem ser virados para baixo e passam a ocupar espaços como "cartas mortas", sem valer ponto algum. Segundo o manual, esta medida existe para impedir o monopólio de um vegetal pelo jogador, mas parece uma decisão um pouco arbitrária: você ainda pode ter vários do mesmo, contanto que não diretamente adjacentes.
ACESSIBILIDADE:
Super fácil de se pegar e jogar, Cultive tem uma estrutura simples de regras e andamento do jogo, o que pode ajudar a atrair diferentes tipos de público.
Porém, possui pequenos detalhes que, se não levados apropriadamente em conta, podem influenciar bastante ao fim do jogo. Exemplos disso são acabar perdendo uma carta se a escolha do momento para uma jogada foi ruim, ou se suas opções para conectar os Consórcios se atravancaram. Como os jogadores só possuem 3 ações por rodada, um descuido pode ser bastante danoso. Não espere fazer um primeiro jogo perfeito (e orgulhe-se se conseguir)!
Felizmente, estas situações se assimilam naturalmente conforme a partida progride, ao ponto de já ser possível ir bem melhor das próximas vezes, reduzindo o nível de cacas a (quase) zero. Mais sobre isso nos próximos pontos!
ESTÉTICA/COMPONENTES/ARTE (ECA!):
A arte utiliza de traços rústicos e cores pastéis, tendo um charme bastante distinto da gama de jogos da atualidade que focam em tons vibrantes e chamativos. Até mesmo se comparado com outras caixas de jogos com temática de natureza, Cultive acaba se destacando pela simplicidade e apresenta um melhor conforto para se olhar por bastante tempo.
Suas cartas possuem fundos de cores levemente distintas para indicar mais facilmente qual a categoria do vegetal, dentre as cinco possíveis, apesar deste detalhe poder passar um pouco despercebido no início. Inclusive, também é comum confundir-se na primeira partida quanto aos vegetais que precisam ter duas cartas jogadas de uma vez já que, se uma carta destas for jogada sozinha, a regra diz que você deve descartá-la (sim, aconteceu conosco na primeira partida).
Devido à mecânica principal de colheita determinar que as cartas precisam ficar uma ao lado da outra e as cartas de terreno serem do mesmo tamanho das demais, o jogo pode acabar ocupando um espaço considerável na mesa, podendo ser necessário pensar em uma maneira de sobrepor as cartas ao mesmo tempo que não se percam os símbolos de Consórcio de vista (sua pontuação bônus é muito preciosa, afinal).
E bem capaz de que isto aí seria a 4ª rodada ainda.
EQUILÍBRIO ENTRE SORTE E DECISÕES DO JOGADOR:
Constantemente os jogadores devem avaliar se eles trabalham com o que têm em mãos ou se utilizam suas ações para trocar algum vegetal. Isto pode ser perigoso, pois você estaria renunciando um terço do seu turno. Se decidir usar uma ação para refazer a feira, é ainda pior: se nenhum dos vegetais pelos quais você procurava sair na nova oferta, um terço do seu turno foi completamente desperdiçado!
Agora, se optar por trabalhar com o que você já tem acesso, ainda deverá avaliar muito bem onde colocará qual carta, não apenas pelos pontos bônus dos Consórcios, mas também pelos vegetais que gostam de sombra renderem mais pontos brutos do que os que requerem sol. Para estes últimos, basta que não estejam próximos a nenhum vegetal mais alto que eles, portanto são "mais fáceis" de colher. Os de sombra, contudo, devem estar próximos a algum vegetal mais crescidinho; não há outra forma. E para ter estes vegetais maiores, você joga o primeiro e arrisca que outro apareça na próxima feira ou na reposição de sua mão? Afinal, se você acabar não conseguindo colocar a segunda carta no próximo turno, pode ir tudo por água abaixo. Ou talvez você deva jogar seguro e esperar ter um par delas? Decisões, decisões...
Enquanto existe um grau de sorte no tipo de carta que aparecerá em sua mão, o jogo remeterá constantemente ao pensamento de "dançar conforme a música" já que, conforme a partida chega ao fim, você verá menos cartas daquelas que "está esperando" (principalmente se houver mais de dois jogadores à mesa). Tomara que seja uma música que você goste, pelo menos.
ARCO E EVOLUÇÃO DO JOGO:
Durante o início do jogo, todos vão colocando as cartas conforme podem, talvez com o mínimo de ideia referente a qual espaço do terreno receberá um vegetal de nível maior e onde serão deixados os menores. Se muito, os jogadores levarão em conta também um ou dois dos Consórcios visíveis que podem criar mais facilmente dentro das opções atuais.
Um ponto importante a ser notado é que os jogadores são contemplados com cinco cartas de terreno, dentre as quais três podem ser viradas para baixo ao longo da partida (como uma ação grátis!), gerando um dos efeitos a seguir:
1) Mover um vegetal já colocado em seu terreno para outro espaço disponível;
2) Descartar um vegetal do seu terreno;
3) Virar um vegetal plantado para cima para que tenha a chance de ser colhido na mesma rodada.
Polinize a horta ou arranque fora com a pá.
Desta forma, existe uma camada extra de estratégia, concedendo maiores chances de criar combos com seus Consórcios e acelerar a colheita. Ou, ainda, pode ser uma forma rápida de desfazer uma pequena caca da rodada anterior que está atualmente te atrapalhando.
Conforme o jogo progride, estas cartas de terreno se tornam mais atraentes pois podem ajudar a maximizar a pontuação. Parece um pouco estranho pensar que cada uma destas que não for virada ao fim do jogo concede apenas 1 ponto bônus. É um prêmio um tanto pequeno pensando que as partidas de Cultive passam dos 100 pontos totais facilmente por jogador. Talvez a intenção fosse a de não penalizar tanto o seu uso? Difícil dizer. Em todo caso, se precisar delas, ou encontrar um bom uso para seus efeitos, não hesite em usá-las!
GRAU DE INTERAÇÃO ENTRE OS JOGADORES:
Existe pouquíssima interação em Cultive, sendo ela restrita apenas à ação de "refazer a feira". Isto faz com que os jogadores pareçam um pouco distantes uns dos outros, concentrando-se apenas em seu próprio jogo e não exigindo observar o que os demais estão fazendo.
Contudo, em um momento de desespero, é bem capaz que um jogador decida refazer a feira e mandar para o além uma carta da qual você precisava muito, gerando momentos engraçados e transferindo o desespero para a dita pessoa. Porém, tomar esta ação ativamente com o intuito de atrapalhar alguém é muito custoso e acaba não se pagando no final!
A feira traiçoeira.
Então, não vá esperando um jogo cheio de malandragem e bloqueios entre os jogadores, pois aqui você certamente não encontrará muito disso.
TENSÃO E EMPOLGAÇÃO:
Há momentos durante a partida em que você se verá obrigado a plantar um vegetal que não se encaixa tão bem nos Consórcios ou, ainda, que necessite de um par e que ainda não apareceu.
O jogo constantemente gira em torno desta decisão: plantar o que tenho ou tentar garantir uma jogada completa? Porém, o número de ações é pequeno e, quase sempre, compensará mais agir com base no que se tem disponível naquela hora. Embora isto crie um maior dinamismo e necessidade de adaptação do que realmente uma estratégia pré-pronta, o jogo ainda é, em essência, uma experiência muito mais tranquila do que alguns outros títulos que favorecem combos de pontuação (ainda que os Consórcios façam sua pontuação decolar se fizer tudo certinho).
A carta certa pode aparecer na hora certa, mas não desperta uma grande emoção quando acontece. Isto porque o jogo condiciona os jogadores a irem "se virando" conforme o que surge, e o foco acaba recaindo mais sobre onde colocar o quê.
RITMO DE JOGO:
As partidas de Cultive correm geralmente num ritmo constante e, uma vez que todos os jogadores tenham se sentido confortáveis com as ações possíveis, começa a transcorrer cada vez mais rápido.
Apesar disto, ainda pode haver momentos mais travados a partir do meio do jogo caso algum dos jogadores comece a calcular as chances de um determinado símbolo de Consórcio ser revelado numa carta para conectar às já colhidas. Isso fica ainda mais evidente se há alguém constantemente optando por redefinir a feira, já que, por uma única ação, todas as opções dos jogadores mudam, assim requerendo cogitar novas possibilidades na hora.
É interessante notar que as etapas de checagem simultâneas ao final de cada rodada também passam a ocorrer mais depressa após algumas repetições e, pouco depois disso, já estão todos jogando de novo. O processo torna-se bastante natural rapidamente.
A caixa informa que leva-se 45 minutos para jogar e, sim, no início provavelmente será por volta disto ou até um pouco mais. Depois de acostumados, os jogadores provavelmente podem finalizá-lo em menos de 40 com tranquilidade, o que é um tempo agradável para a experiência.
ESCALABILIDADE:
A principal mudança em relação às partidas de 2, 3 ou 4 jogadores é o número de rodadas (10, 9 e 8, respectivamente). Ah, e o tamanho da mesa necessário.
Conforme avança a trilha de rodadas, percebe-se que o jogo passou bem rápido.
Levando em conta que 2 jogadores ao longo de 10 rodadas tomam um total de 60 ações (2x3x10) enquanto 4 jogadores ao longo de 8 rodadas tomam 96 ações (4x3x8), sente-se uma clara diferença no tempo total de jogo em maiores contagens de competidores.
Fora isto... não muda muito. O jogo mantém sua essência de jogadas com um toque de improviso e, o máximo que pode acontecer é um tipo específico de carta acabar antes devido a todos terem, coincidentemente, saído com elas na mão e as usado. Mesmo assim, sempre há alguma opção viável para usar, e você não se sente trancado de nenhuma forma.
PROFUNDIDADE E REJOGABILIDADE:
Os combos a serem feitos entre os Consórcios horizontais e verticais também reforçam o fator rejogabilidade, devido a este aspecto tão tático entre as rodadas. A pontuação dos jogadores na primeira vez foi algo em torno dos 80 a 100 pontos. A partir da segunda vez, a vencedora (Karla) chegou a 160 pontos!
Então fica bem claro que o costume com o jogo faz ele se tornar mais competitivo e, por consequência, mais interessante para partidas subsequentes.
Ao fim do jogo, fica-se pensando muito em que tipos de combinação diferentes poderiam ter sido feitos para maximizar a pontuação e agarrar a vitória (caso tenha perdido) ou humilhar ainda mais seus amigos (caso tenha vencido). É certo que novos planos florescerão para as próximas vezes. Esta é, com toda certeza, a marca de um ótimo jogo!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Gabriel Fosco: 8,0
Mesmo sentindo o cérebro queimar um pouco para conseguir combinar os símbolos de Consórcio devidamente, o jogo ainda mantém um clima bastante tranquilo e com uma pontuação satisfatória ao final quando você vê tudo conectado (ou nem tão bem conectado assim). É ótimo ver autores novos nacionais dando vida a estes projetos com um toque de personalidade e originalidade!
Karla Ruiz: 8,5
Embora possa ser um jogo relativamente demorado e requeira atenção a vários detalhes, o Cultive não esgota o jogador ao final da partida e torna a experiência leve e satisfatória, muitas vezes parecendo ter durado menos tempo.
Ele se torna ainda mais especial por ser resultado de um trabalho nacional e feito apenas por mulheres, o que particularmente me dá orgulho.