Enquanto escrevo, estamos em meio a Olimpíada de Tokyo e o grande assunto desta primeira semana de competição foi, sem qualquer sombra de dúvida, a “refugada” de Simone Biles, que era tida como a grande estrela dos jogos, favorita a cinco medalhas.
E para nós brasileiros, quase como um reverso da moeda (ou deveria dizer, da medalha?), temos incrível volta por cima de Rebeca Andrade, que passou por 3 (TRÊS!!) operações de ligamento cruzado, infecção por COVID e classificação aos 48 do segundo tempo para competir individualmente e fazer história como a primeira mulher a ganhar medalha na ginástica para o Brasil.
Rebeca Andrade, um dos destaques do Brasil em Tóquio
Ambas tiveram que lidar durante esse ciclo olímpico com uma dicotomia que aflige a todos que atuam em qualquer atividade competitiva: o prazer em competir versus a vontade de ganhar.
A vontade de ganhar, a busca pela excelência é o que leva alguém aceitar todos os sacrifícios da dura vida de um atleta. E o prazer de competir, o gosto pelo que se faz é o que torna isso aceitável. De alguma forma, foi isso que faltou a Biles, fazendo-a fugir como uma noiva em casamento de início de novela. E foram exatamente essas coisas que mantiveram o espírito de Rebeca durante as provações que passou nos últimos anos.
Achei que isso era um bom gancho para um ensaio sobre a competitividade dos tabuleiristas. Nós jogamos porque gostamos de jogar ou porque gostamos de vencer? Ninguém gosta de perder, isso é fato, mas a frustração da derrota tira o prazer da partida? Qual o limite da competitividade para jogadores sociais (como acredito que a maioria de nós seja)?
O Atleta, o Craque e o Diletante
Cena do filme Carruagens de Fogo
Ainda no clima das olimpíadas, acredito que todos conheçam o filme “Carruagens de Fogo”. O filme é espetacular em vários aspectos, mas o que quero destacar aqui são as personalidades dos três atletas que mais aparecem no filme:
Harold Abrahams, o filho de um bem sucedido imigrante lituano de origem judaica que precisa se provar na esnobe alta sociedade inglesa e que, personifica o que esperamos de um atleta moderno, com sua busca metódica e desesperada pelo resultado.
Eric Liddell, o missionário protestante que é um talento natural e que corre porque, em suas palavras, quando o faz, “sente a glória de Deus” (em inglês é a “i feel His pleasure”, mas eu achei que em portugues a tradução literal não ficava tão boa).
Lord Alfred Lindsay é um nobre, ricaço, companheiro de Abrahams em Oxford que embora tenha algum talento, encara o atletismo como pouco mais do que um passatempo.
Não à toa, é muito fácil reconhecer nas nossas duas ginastas modernas a busca pela excelência de Abrahams mas, sem pelo menos um pouco da paixão de Liddell, é difícil levar a carreira adiante. Me parece que foi essa chama que Biles perdeu e que Rebeca conseguiu manter viva apesar de todo o sufoco que passou.
Bem, caso você não tenha visto, ou não se lembre direito, eu recomendo fortemente que assista “Carruagens de Fogo”. Talvez a linguagem seja um pouco lenta para o padrão de hoje, mas o filme contém cenas belíssimas e conta sua história de uma maneira tão envolvente que eu tenho certeza que você não irá se arrepender.
Jogar x Conhecer
E nós, apreciadores dos jogos de tabuleiro modernos, como nos encaixamos nisso tudo? Como lidamos com a competitividade?
Nos jogos que possuem uma cena mais competitiva, como no Xadrez e no Pôquer, eu diria que o modelo do atleta moderno, competitivo, resultadista, é predominante. Sem uma alta competitividade e constante busca por evolução, a pessoa não se mantém nesses meios.
Essa não é a situação mais comum dos tabuleiristas. De maneira geral, nós não nos especializamos em jogo nenhum. Normalmente nós jogamos o jogo para conhecê-lo e a maioria dos jogos não é jogada mais do que 2 ou 3 vezes.
Na verdade, o “hobby” tem muito a ver com conhecer os jogos, reconhecer suas mecânicas, saber como funcionam com diferentes quantidades de jogadores e configurações e suas semelhanças e diferenças em relação a outros jogos. O ato de jogar em si, normalmente, vale mais como uma forma de explorar as possibilidades do jogo e avaliá-lo do que pelo resultado da partida em si. Então, é natural que valorizemos mais o perfil do diletante do que o do atleta. Somos mais Lindsays do que Abrahams.
O comportamento esperado de um jogador experiente é o de ter paciência com os novatos, explicar as regras e eventualmente dar conselhos de estratégia se o novato solicitar ou estiver fazendo uma jogada muito esdrúxula. Existe uma grande preocupação em tornar a partida em si em uma experiência boa para todos.
É claro que isso não quer dizer que não haja competição. Há, e alguns jogadores levam o desejo de ganhar muito acima do que uma partida amistosa merece.
No livro “Your Move”, Joan Moriarty diz que existe um “contrato implícito” entre os jogadores, que é mais ou menos assim:
Eu concordo em respeitar as regras do jogo, sem trapacear.
Eu concordo em levar o jogo a sério e fazer o meu melhor para tentar vencer a partida. Não vou entregar o jogo de graça para ninguém.
Eu concordo que não vou levar o jogo tão a sério a ponto de levar o que acontece no jogo para a vida real e não vou agir como um babaca.
O problema é que a “zona de competitividade sadia”, a intercessão entre os itens 2 e 3, é muito tênue. Um jogador que joga de forma desinteressada é quase tão prejudicial quanto o cara que rouba, que cria tretas com interpretações heterodoxas das regras ou que pede para voltar a jogada já tendo passado a vez.
Existem diversas “regras de etiqueta” de comportamentos a serem evitados, como o “king making”, que é quando alguém faz uma ação deliberada para ajudar um jogador a ganhar a partida quando há uma ação mais vantajosa para si mesmo.
Normalmente a maioria dos jogadores consegue administrar o seu nível de competitividade em função dos adversários e do jogo em questão.
Um hobby “gamificado”
Porém, se o hobby é relativamente leve na pressão que cria nos jogadores sobre os resultados, ele traz um outro tipo de cobrança, que é o de estar atualizado com tudo que sai no mercado, de conhecer jogos novos toda semana e de conseguir jogar mais os jogos que já tem.
É a tal da maldita “gamificação”, que foi potencializada pelos aplicativos de registrar resultados das partidas.
Seres Humanos adoram cumprir metas. Isso nos dá uma sensação de sentido na vida, de estar aproveitando o nosso tempo. É quase como completar um contrato em um euro, quase sentimos os “pontos de vitória” serem contados no nosso cérebro.
Porém, muito de uma coisa boa pode ser ruim. Quase tudo hoje é “gamificado”, nos deixando num estado contínuo de alerta, buscando produtividade. Pelo menos para mim, isso acabou se mostrando muito ruim. Uma coisa que era um lazer estava se tornando uma obrigação. E isso acabava sendo ruim não só para mim como para os meus parceiros, pois muitas vezes nos obrigávamos a jogar algo que não estávamos tão afim, apenas para cumprir metas.
Larguei todos os aplicativos. Troquei por uma coisa mais criativa, que é escrever reviews. Aos poucos, fui criando um estilo e hoje estou escrevendo aqui para vocês. Jogo menos partidas, mas curto mais.
Treinar para que?
Todos conhecemos um craque. Aquele jogador que mal aprende as regras do jogo, parece que jogou aquilo a vida inteira e ganha a partida por 30 pontos. Ele faz isso aparentemente sem grande esforço, com jogadas que saem quase que da sua intuição. São os Eric Liddell, os Romários e as Beth Harmon do mundo. Não são muitos.
O que esse aparente talento natural esconde na verdade é que essas pessoas têm tal paixão pelo que fazem que treinar, analisar jogadas, pensar em estratégias é algo que ela faz o tempo inteiro, mas faz com tal gosto que o esforço não transparece. Beth Harmon era boa no Xadrez porque era obcecada pelo jogo. Tudo o que ela fazia era pensar em Xadrez, estudar Xadrez, jogar Xadrez. Não é que ela estava se sacrificando para isso: era realmente o que ela queria fazer. O sacrifício era a vida real, da qual ela se desligava drogando-se para pensar melhor no Xadrez.
Para o resto de nós, os normais, se quisermos ter um lugar ao sol, precisamos estudar e/ou praticar. Muito. Abrindo mão de outras coisas. É o que fazem os Abrahams e os Dungas da vida.
O hobby dos board games de novo se mostra um pouco “elitista” nesse sentido. Estudar aberturas é visto como “feio” por boa parte dos jogadores. Para muitos, o jogo deve ser explorado, é um puzzle a ser resolvido pelo jogador. Ler um artigo que demonstra matematicamente a eficiência das jogadas tiraria a mágica da coisa.
Acho que dá para perceber que eu não comungo dessas opiniões. Eu não vejo um jogo como um puzzle, vejo-o como o cenário de uma batalha, ou uma linguagem que vou usar para negociar o meu sucesso com os meus adversários.
Conhecer as tendências do jogo não garante a vitória. Um jogo que permite uma sequência infalível desde a primeira jogada é um jogo muito ruim, mas entender as principais prioridades de antemão e poder trabalhar com isso sem ter que calcular tudo economiza muito tempo de partida, facilita o planejamento e a leitura dos adversários.
O principal motivo de estudar um jogo não é melhorar as chances de um bom resultado e sim permitir uma experiência mais profunda com o jogo.
Você vai ver sutilezas que antes ficavam escondidas, porque você perdia tempo analisando opções ruins. Mesmo que você não vença as partidas, vai extrair melhores lições delas.
A felicidade está no percurso e não no destino
Eu dependo de parceiros para jogar, mas ler e estudar é algo que posso fazer sozinho. Eu não tenho muita paciência para solos, então a minha forma de lidar com o hobby sozinho é lendo, escrevendo ou debatendo sobre eles.
Quando estou jogando ou falando de jogos, como agora, eu não vejo o tempo passar, não tenho fome, se tenho problemas, não me lembro .
Enfim, o importante não é necessariamente competir ou vencer e sim fazer o que se pretende de corpo e alma. Não pelos outros, para provar algo. Para si mesmo!
Não sou religioso como Liddell era, para dizer que sinto a Glória de Deus quando faço essas coisas, mas eu consigo entender o que ele sentia.
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!
"Quem diz que o importante é competir provavelmente perdeu." Martina Navratilova
Brincadeira, hahaha. A frase pode até valer pros atletas de ponta, mas nos jogos de tabuleiro, prefiro outra frase: "Se o jogo for bom, todos venceram."
Como já é rotina neste canal, mais um primoroso texto seu, Eduardo. Parabéns. Particularmente, sou (fui, enquanto era possível rsrs) muito competitivo em esportes, mas nos tabuleiros consigo, como você disse, "aproveitar a jornada". Realmente, explorar o jogo me diverte, e tenho verdadeiro prazer em disputar a partida, mesmo sem a vitória.
Em alguns grupos de chat essa discussão sempre aparece, e quando eu falo que eu "jogo para ganhar" as pessoas acham que não me divirto quando não ganho. Sinceramente, acho que eu não me divirto se eu ganhar muito fácil, da impressão que o pessoal não pegou as regras, ideia, etc do jogo.
Já tive casos de conhecidos que afirmavam que "não jogavam para ganhar, apenas para se divertir". Por mais que eu entenda que eles querem se divertir, e talvez não se divirtam em competições, faz parte do jogo querer ganhar, fazer jogadas que fazem sentido pra ganhar, caso contrário, até estaria estragando a experiência do coletivo.
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Os aplicativos até que nunca me despertaram a competição, eu uso o BGStats para registro das partidas e gosto realmente de ver as estatísticas, qual facção ganha mais, que mais ganhou em determinado jogo, etc, mas não uso para "ter vontade de ganhar tal jogo e passar na frente nas estatísticas".
Por outro lado, quando uso alguma plataforma que tem ranking, e é um jogo que eu gosto, dai me desperta o espírito competidor! Jogar bastante, analisar as jogadas dos adversários, procurar sobre "best scores" e até em alguns casos ler sobre estratégias (como exemplo, Tzolk'in, mas mesmo lendo, nunca deu certo hahaha)
Já fizemos competições de boardgames em equipes aqui, e além da competição em si, se reunir para "treinar", pensar nas melhores jogadas, etc, isso me divertiu muito - e o nosso treinar nada mais era do que jogar o jogo mais de uma vez por ano hahaha
Passando esse período de pandemia quero organizar algo competitivo novamente - juntando vários jogos, fazendo em equipes, tudo fica bem divertido, para quem gosta de competir.
Helton Leite::Como já é rotina neste canal, mais um primoroso texto seu, Eduardo. Parabéns. Particularmente, sou (fui, enquanto era possível rsrs) muito competitivo em esportes, mas nos tabuleiros consigo, como você disse, "aproveitar a jornada". Realmente, explorar o jogo me diverte, e tenho verdadeiro prazer em disputar a partida, mesmo sem a vitória.
Helton,
Obrigado mais uma vez pelos elogios!
É interessante isso. Se a pessoa realmente acredita que o só vale a pena jogar se o resultado for vitória, o que vai acontecer é que ela vai evitar jogar contra jogadores mais fortes e com isso ela não vai evoluir.
Muita gente não gosta de jogar por causa disso (minha esposa é uma delas): a competitividade da pessoa aflora de tal forma que ela não se controla e não gosta disso.
A minha forma de lidar com a derrota é fazer a resenha da partida, tentar entender o que eu poderia ter feito de diferente. Mas o que me faz gostar de um jogo ou não é necessariamente se eu venço nele, mas se ele me dá problemas que eu considero interessantes e que cujas soluções estejam ao meu alcance. Mesmo que eu erre, eu pelo menos consigo ver onde errei.
Porque eu nao gosto de jogo de tiro em primeira pessoa. Porque eu nao consigo nem me situar naquele troço, tomo headshot de cara, não sei de onde, e não sei como melhorar. Aí realmente não tem graça.
Só consigo pensar na famosa frase atribuída ao mestre Reiner Knizia: "When playing a game, the goal is to win, but it is the goal that is important, not the winning".
Já vi essa frase com várias versões diferentes, dita por pessoas diferentes, mas gosto dessa versão do Knizia e acredito que tem tudo a ver com seu texto. "Jogar pra ganhar" é diferente de querer ganhar a todo custo e quando você está numa mesa em que todos os adversários "jogam pra ganhar", o prazer do jogo é muito maior, não importa quem vencer no final.
Eu mais perco do que ganho nos jogos. Há alguns jogos inclusive em que nunca venci, ou que venci bem poucas vezes. Por outro lado, tem jogos que desde a primeira partida as coisas ligaram na minha cabeça e é muito difícil me vencer. Tem muito a ver com quais tipos de inteligências esses jogos evocam. Mas, independente disso, eu gosto de sentar à mesa e tentar, mesmo às vezes quando não há muita esperança (enfrentar minha esposa no Azul é difícil). O prazer do jogo está na companhia, no desafio, ou ás vezes, no simples conhecer um jogo novo (e aqui eu sou um cara que ainda se sente atraído pelo "cumprir metas" que os aplicativos proporcionam porque sou, sem dúvida algum, o cara que quer jogar muitos jogos diferentes - já estou na casa dos 500). Quando jogando solo, o desafio é sim vencer, mas também é sentir o desafio proposto por um designer e, pessoalmente, me sinto muito compelido a gostar de um jogo em que os designers tiveram o "desafio" de criar uma versão para ser jogada por 1 pessoa só.
Parafraseando a frase do começo, o importante não é competir, mas ser competitivo. Não é vencer que importa, mas tentar vencer.
butilheiro::Só consigo pensar na famosa frase atribuída ao mestre Reiner Knizia: "When playing a game, the goal is to win, but it is the goal that is important, not the winning".
Já vi essa frase com várias versões diferentes, dita por pessoas diferentes, mas gosto dessa versão do Knizia e acredito que tem tudo a ver com seu texto. "Jogar pra ganhar" é diferente de querer ganhar a todo custo e quando você está numa mesa em que todos os adversários "jogam pra ganhar", o prazer do jogo é muito maior, não importa quem vencer no final.
Eu mais perco do que ganho nos jogos. Há alguns jogos inclusive em que nunca venci, ou que venci bem poucas vezes. Por outro lado, tem jogos que desde a primeira partida as coisas ligaram na minha cabeça e é muito difícil me vencer. Tem muito a ver com quais tipos de inteligências esses jogos evocam. Mas, independente disso, eu gosto de sentar à mesa e tentar, mesmo às vezes quando não há muita esperança (enfrentar minha esposa no Azul é difícil). O prazer do jogo está na companhia, no desafio, ou ás vezes, no simples conhecer um jogo novo (e aqui eu sou um cara que ainda se sente atraído pelo "cumprir metas" que os aplicativos proporcionam porque sou, sem dúvida algum, o cara que quer jogar muitos jogos diferentes - já estou na casa dos 500). Quando jogando solo, o desafio é sim vencer, mas também é sentir o desafio proposto por um designer e, pessoalmente, me sinto muito compelido a gostar de um jogo em que os designers tiveram o "desafio" de criar uma versão para ser jogada por 1 pessoa só.
Parafraseando a frase do começo, o importante não é competir, mas ser competitivo. Não é vencer que importa, mas tentar vencer.
Butilheiro,
Prazer ter você aqui. Sou seu fã!
Acho que seus comentários complementaram muito bem o que eu quis dizer. A gente joga para vencer porque esse é o objetivo proposto pelo jogo. Mas o que cativa é o processo, não o resultado.