Designer: Matt Eklund
Editora: Ion Game Design
Ano: 2021
“Não havia vivalma em todo o convés: na câmara de descompressão, no depósito de trajes onde passara os últimos oito dias, nem em meia dúzia de outros depósitos. Todos vazios. Pegou uma chave inglesa magnetizada com o tamanho ideal para soltar o capacete de um kit de atividade exterior e desceu a escada da tripulação em direção ao convés de baixo. Depois desceu mais um andar, e mais outro. As cabines da tripulação, em ordem. No refeitório, sinais de luta. O compartimento médico, vazio. Um terror novo deu um nó em suas entranhas. Convés após convés, sala após sala, sem vida. Algo acontecera. Um vazamento de radiação? Veneno no ar? Algo que obrigasse uma evacuação? Entretanto, se todos tinham evacuado os teria escutado saindo pela câmara de descompressão... Chegou à entrada do último convés, aquele que levava à engenharia. Parou. A luz vermelha no painel da trava mostrava que a sala fora destrancada. Pensou mais uma vez em radiação e em outras falhas de impacto. Passara de painel em painel, e nenhum deles mostrava qualquer tipo de aviso. Nada, nem radiação nem outra coisa. Havia mais sinais de briga ali. Sangue. Ferramentas e contêineres bagunçados. O que quer que tivesse acontecido ocorrera ali. Não, começara ali, atrás daquela porta destrancada.”
(Excerto de “Leviatã Desperta”, de James S. A. Corey)
Salve-se quem puder
No fragmento de “Leviatã Desperta” acompanhamos o desespero e desorientação de um personagem ao constatar que a estação espacial onde se encontra está deserta e repleta de indicativos de anormalidade. Tal situação tem um paralelo com Stationfall, mais recente obra do designer Matt Eklund em financiamento na plataforma Kickstarter.
No novo jogo da empresa Ion Game Design, o contexto é ainda mais tenso do que no livro: diversos personagens estão numa estação espacial no limiar do colapso. Eles têm 15 minutos (ou menos) para conseguirem realizar seus objetivos particulares e sobreviverem à destruição da nave. Tentarão a todo custo escapar com trajes próprios para o espaço (EVA) ou embarcar em Pods de emergência e navegar até a Mesosfera.
Porém numa nave cheia e com diversos compartimentos, a luta pela sobrevivência é muito mais complexa do que parece, e a cada turno temos um minuto a menos para executarmos nossos planos de escape. E caso alguém decida acessar a misteriosa caixa-forte X, um outro horror pode ser solto na nave…
Ao final dos cerca de 15 minutos - cada qual representado por um turno de ações - a estação espacial explode e é dada a etapa de pontuação.
Stationfall é por muitos corretamente definido como um party game para heavy gamers. Veremos que sua gigantesca assimetria e complexidade de regras e elementos o fazem uma experiência única e original dentre centenas de jogos já existentes. Trata-se de uma inovação muito bem-vinda ao hobby: mesclar elementos de party game como blefe e dedução social com assimetria e complexidade mecânica.
Lógica maximalista
Todos os elementos indicam que essa é mais uma obra maximalista do que já podemos chamar de escola eklundiana de jogos. Os que já tiveram a oportunidade de estar em mesas de Pax Transhumanity, de High Frontier 4 All ou de jogos da trilogia Bios entenderão com facilidade o que defendo: são jogos que buscam o excesso, onde definitivamente a máxima “menos é mais” não se aplica. Eventos intrincados, exceções diversas, enorme variedade de ações e de formas de pontuação, forte aspecto tático - todas são características das criações dos Eklund pai e filho.
Essa estética do excesso é um terreno traiçoeiro, pois muitas vezes é difícil distinguir um engodo (isto é, algo que está “sobrando” no design e nas mecânicas) de efetivamente uma complexidade planejada de elementos. Não é incomum que numa partida de tais jogos não sejam usadas todas as ações básicas possíveis ou exploradas todas as situações e causalidades previstas no design, o que pode incomodar um perfil de jogadores que apreciem um maior apuro nos caminhos mecânicos e estratégicos.
Mas o que todo esse emaranhado de elementos e possibilidades nos proporciona é uma experiência de rejogabilidade que beira o inesgotável, visto que situações iguais se repetem muito pouco. Enquanto jogadores, nos sentimos por muitas vezes incapazes de traçar um pensamento estratégico, visto que ele exige um mínimo de imutabilidade dos fatores e uma leitura razoavelmente clara do cenário da partida para ser concebido. Quando tudo muda a todo momento, a estratégia dá lugar à tática - estamos sempre reelaborando nosso caminho de jogo, o qual sofre torções a cada rodada.
Tudo isso é encontrado de forma original em Stationfall.
Personagens
Cada jogador recebe duas cartas de personagens e são abertas quantidades determinadas de personagens disponíveis de acordo com o número de jogadores - numa partida de 4 jogadores, por exemplo, são 12 os personagens em jogo. Tais personagens assumem o papel de tripulantes da estação espacial na iminência de sua destruição e possuem determinados objetivos particulares para lidar com o destino inexorável da nave.
Os jogadores podem executar ações com quaisquer dos personagens na estação espacial, desde que tenham influência sobre eles (traduzido na ação de pôr ou possuir a maioria de cubos no tile de tal personagem) e desde que nenhum jogador tenha revelado ser aquele personagem.
O par de personagens atribuídos a cada jogador são uma informação secreta, cabendo ao jogador decidir quando revelará a sua identidade para usufruir de uma habilidade especial e impedir que outros jogadores façam ações com aquele personagem. Cada jogador só pode se revelar como um dos seus dois personagens iniciais. Assim, um dos personagens recebidos representará quem é o jogador, enquanto que o outro apenas conferirá determinada pontuação caso algumas circunstâncias sejam observadas ao final da partida.
Estação espacial
A configuração da estação espacial é um destaque à parte. Matt Eklund elaborou uma enorme nave com diversos setores e conexões. Os dois anéis reúnem os locais de pesquisa (em laranja) e dormitórios (em azul). Como estão em movimento de rotação (sentido horário), possuem gravidade - o que significa que qualquer objeto arremessado pelos personagens a favor do sentido de rotação na verdade volta contra o mesmo (somente no sentido anti-horário o lançamento de objetos é efetivo). O eixo vertical principal da estação espacial engloba toda a estrutura de apoio e funcionamento (em rosa), sendo uma zona sem gravidade. Nas extremidades norte e sul estão os Pods de evacuação (em verde), essenciais para que os personagens escapem com vida de toda essa estrutura em colapso.
Fica evidente uma segunda camada de complexidade do jogo, traduzida em um mapa assimétrico e com setores diversos. A maior parte dos 31 compartimentos possui alguma ação específica disponível e começa com determinados itens - como artefatos e objetos necessários para o cumprimento de missões de personagens, capacetes para enfrentar gases tóxicos, ferramentas para consertar estruturas ou golpear inimigos, entre diversos outros. O setup de tokens de objetos por compartimento varia conforme os personagens em jogo, tornando a jogabilidade ainda mais diversificada.
Ainda é possível ver no mapa que, além de seções e compartimentos diversos, uma rede de caminhos faz com que algumas localidades do mapa sejam facilmente acessíveis enquanto que outras são mais custosas de serem acessadas - o eixo sul do tronco central é uma região relativamente afastada de todo o resto da nave, assim como alguns compartimentos nos anéis principais. É de se esperar naturalmente que num contexto de conflito e disputa para evacuar a nave as regiões contendo os Pods (principalmente o norte da nave) são as com possível maior concentração de interação entre personagens. Alguns caminhos são apenas acessíveis por personagens com certas habilidades - é o caso de todas as linhas tracejadas, que são respiradouros (semelhante ao que ocorre no famoso Among Us) - e podem ser utilizados para cortar caminho ou preparar surpresas agradáveis para os outros.
Um último local que merece menção especial é a misteriosa caixa-forte X. Não sabemos ao certo a natureza dos experimentos científicos que eram conduzidos na espaçonave, porém é certo que dentro desse compartimento isolado e trancafiado algo com grande potencial destrutivo está guardado. Talvez os amantes do caos queiram acrescentar emoção ao stress de tentar escapar de uma nave em destruição e resolvam abrir as portas desse cofre e descobrir quais segredos estão guardados....
Interações múltiplas
A intrincada teia de interações entre os personagens na estação espacial é o fator primordial do êxito de Stationfall. Além da diversidade possível de objetivos, existem conexões das missões de determinados personagens, o que gera reviravoltas inesperadas a cada turno de jogo. A caixa conta com nada mais nada menos do que 28 personagens de distintas naturezas: humanos, animais, robôs e, acreditem, dados na nuvem (que geraram uma ótima comparação na minha mesa com o HAL da obra-prima de Kubrick). Cada classe de personagens possui autonomia e funcionamento completamente distinto. Igualmente variados são os poderes de cada integrante da mesma classe. Somado a isso temos a própria configuração da estação espacial, já discutida em seus pormenores anteriormente. São infinitas combinações possíveis de personagens e localidades.
A assimetria em Stationfall é absolutamente densa, sendo a responsável principal pelo peso do jogo. Além disso, ela transforma a obra de Matt Eklund numa verdadeira space opera de colossais dimensões; é certamente o tipo de experiência que quanto mais vivida, mais apreciada.
A alta interação e variabilidade de personagens na nave conferem ineditismo a cada nova partida, sendo notável a curva de aprendizado para a apreciação do jogo em toda a sua completude de possibilidades táticas. De fato, o número de partidas e o domínio e gosto pelo jogo parecem ser diretamente proporcionais.
Mesmo que os enredos sempre mudem, a sensação de estar jogando um capítulo de uma longa saga de jogatinas fica presente desde a primeira partida: a obra tem tudo para ser aquele jogo que não é uma campanha mas que com o grupo certo se torna fascinante de frequentemente ser revisitado, pois com um maior número de partidas vem um maior entendimento de todos os potenciais de interação.
Experiência rizomática
Alguns definirão Stationfall como um jogo caótico, afinal são muitos elementos distintos em infinitas combinações - personagens, poderes especiais, localidades, objetivos, ações. Todas as etapas mecânicas e temáticas são caracterizadas pelo excesso, ao ponto de beirar o impossível a realização de todas as situações possíveis em uma partida. Com isso, nosso controle e gestão estão constantemente sofrendo baques de diversos lados - se preparamos uma situação no fim de nosso turno, no início do próximo é provável que tudo já tenha mudado e que tenhamos que traçar um novo plano de ação.
Stationfall não é ancorado no caos, pois não somos bombardeados por aleatoriedades mas sim por decisões de outros jogadores. O entrecruzamento dos objetivos dos personagens força uma constante interação (construtiva ou destrutiva) entre jogadores. Nesse sentido, ele se prova não um jogo caótico, mas uma obra rizomática. Há um emaranhado infinito de possibilidades de contornar situações e seguir com planos. Tais caminhos nunca serão lineares, diretos e previsíveis: uma simples ação de seguir com um personagem para pegar um objeto 4 salas adiante demandará por vezes muitas reviravoltas e estará dependente de inúmeras externalidades.
A gestão linear e a programação de ações, muito apreciadas num contexto estratégico, caem por terra nesse oceano interativo comandado pela tática. Se sairá melhor na partida o jogador que conseguir navegar por esse emaranhado e enxergar os diversos caminhos que o possibilitem de realizar uma parte de seu objetivo. Se o caminho mais curto entre dois pontos é a reta, não espere ser o único a visualizar tal situação na partida. Em Stationfall não buscamos retas, mas curvas, derivas e reviravoltas épicas.
As (inter)ações do jogo não obedecem ao pensamento dual do efetivo ou não-efetivo, acerto ou erro, vantajoso ou desvantajoso. Pelo contrário: as situações da partida encontram-se num agenciamento multifacetado, com multiplicidade de implicações e significados - efetivo E não-efetivo, acerto E erro, vantajoso E desvantajoso.
This is the end
Stationfall nos entrega uma experiência lúdica extremamente original e que se sustenta como um jogo diferente de tudo o que estamos acostumados. O tema e mecânicas parecem com Nemesis, a assimetria parece com Root, a interação lembra Among Us, porém tudo combinado de um jeito inteiramente único.
Concebido para ser uma obra apreciada por quem gosta de jogos pesados e densos, ele nos oferece a leveza e sensação de diversão da jogabilidade de um party game. Por conseguir com êxito conectar esses universos tão distintos, merece ser celebrado como um dos mais importantes lançamentos do ano e como grande inovação no design de jogos.
"Experimente o jogo", diz o Rato Telepático.
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Lusorius
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, fico pensando em como é legal ver contextualizada a experiência de jogo para além de falar das suas regras e mecânicas (nada contra, claro, pode fazer parte também). 
