The Crew: Fogo de palha no espaço?
Se você bem lembra, no
meu review sobre The Grizzled, eu havia comentado o quanto detesto jogos co-ops, e que ele tinha sido o único jogo que eu havia realmente gostado do segmento. Muito tempo passou, até já o vendi, e joguei tanto ao ponto que hoje ele é apenas um
nota 6 (
leia mais aqui), acho que já extraí tudo que poderia dele, ficando só a memória das batalhas vencidas ao lados dos meus amigos.
O jogo tem seus méritos, mas não foi “aquele para vida inteira”.
Depois desse breve episódio da minha vida de "coopzeiro" eu continuava dizendo que detestava co-ops, ao menos na maioria esmagadora das vezes. Foi então que apareceu
The Crew, mais um jogo co-op com comunicação restrita e artigo definido “The” no título. Eu já havia ouvido falar desse jogo, afinal, os vencedores do
Spiel de Jahres acabam sempre tendo os holofotes… mas peraí, deixe-me corrigir, na verdade ele ganhou o
Kennerspiel, já que supostamente é o jogo “Pesado/Expert”. Peraí, um jogo de
cartinha de baralho normal foi o campeão,
e do expert ainda? “É mais uma loucura tipo aquele The Mind”, eu pensei. Claro que ignorei completamente.
Peraí, The Mind começa com The e é co-op… será que estou perdendo algo?
Pois bem, por um acaso do destino, como o @
red_djow explicou no
Retorno de Jow, acabamos vendo uns vídeos e tentamos forjar uma cópia PnP com cartas de baralho normal em Janeiro. E isso é muito fácil de fazer,
sim é só um jogo de baralho normal com tema do espaço. Onde diabos poderia estar a magia do jogo? Pois bem, deixe-me tentar explicar, com mais de 64 missões no meu histórico, acredito ter alguma propriedade para tal.
Regras: Edição Turbo
Só tem imagem off-topic nesse post, aproveite essa que será a única.
Normalmente não explico regras, mas dessa vez vou abrir uma excessão já que é estupidamente fácil. Se já sabe, pode pular. Lá vai:
- O jogo tem 40 cartas, 9 cartas de 1 à 9 para cada naipe (verde/rosa/azul/laranja) e 4 Foguetes de naipe “preto” que vão de 1 a 4.
- Todo o baralho é dividido entre cada jogadores. Ou seja, numa partida com quatro, cada um fica com 10 cartas.
- Cada “missão” é composta por um número variável de rodadas, onde o jogador vencedor da última começa a jogar primeiro. A primeira carta jogada define o naipe a ser respeitado, o jogador que jogou o valor mais alto vence o “bolo” (ou a vaza, trick em inglês para os especialistas). O Foguete, sempre vence a vaza, a menos que exista outro foguete de número maior.
- O jogador na sua vez é obrigado a jogar uma carta do naipe correspondente se possível. Caso ele não tenha, qualquer outra carta pode ser jogada: se for um Foguete, ele provavelmente vai vencer a vaza, se for outro naipe ele já está perdendo independente do número dela.
- Jogadores não podem se comunicar durante a partida, com excessão do sinal de rádio, que pode ser usado uma vez por missão. Você baixa uma carta da sua mão e coloca um token que irá indicar se ela é: a maior, a menor, ou a única carta daquele naipe. Foguetes não podem ser utilizados na comunicação.
As condições de vitória são definidas pelo livro de campanha, mas em geral usam um deck auxiliar, com o mesmo setup de cartas do deck principal, sem os Foguetes. Existem alguns outros detalhes, mas basicamente as partidas serão algo como:
“Fulano deve vencer uma vaza com que possua um 9 laranja, o Ciclano um 5 verde, e o Beltrano um 1 azul. O 1 precisa ser feito antes do 9, mas o 5 em qualquer ordem.”
E é basicamente isso, omiti alguns detalhes, pra não estragar seu prazer em ler o manual que tenho certeza que você o fará.
Afinal, ler manuais é a única maneira correta de aproveitar o hobby não é mesmo? #IrôniaOuNãoÁcida
O Bom
A Campanha altamente temática que ninguém se importa
O jogo possui um livreto que conta a história sobre uma expedição em busca do 9o planeta do Sistema Solar. Essa aventura é contada através de uma campanha com 50 missões diferentes, e por missão diferente, quero dizer condições de vitórias distintas. Ela é construída de forma que a dificuldade vai aumentando e os elementos do jogo vão sendo revelados aos poucos. Você anota seu progresso nesse livro/manual, o que é uma baita heresia, então você pode usar
um que eu fiz para não profanar seu jogo.
Ta-dá! Usei como referência, um trabalho muito bem feito no BGG.
Esse sentimento de progressão é algo muito viciante, e na prática, você está recebendo 50 formas de se jogar o jogo. Como aqueles Brickgames da década de 90 que diziam ter 999 jogos, mas eram todos variações de um mesmo princípio. Você e sua tripulação vão com certeza terminar uma partida e mandar a célebre frase “vamos jogar mais uma!”. Além disso, se um dia a campanha chegar ao fim,
certamente terão motivo, para querer jogar de novo e fazer a pontuação perfeita (fazer todas as missões de primeira), algo digno de streams no Twitch.
Agora perceba que nessa campanha existe a tal “Narrativa da busca pelo Planeta 9”, mas na minha percepção, com mais de dez pessoas diferentes com quem já joguei, só uma pessoa pareceu interessada ao ponto de perguntar “Cara, pode ler de novo o finzinho da história que não ouvi?”. De resto tenho a impressão que o dono do jogo, o cara que vai narrar o
briefing de cada missão, é o único engajado na narrativa. Não que seja um problema, e talvez varie com a mesa de jogo, mas funciona pior que a campanha do
Maracaibo onde eu realmente via os outros engajados no o que iria acontecer. Não cheguei até o fim do jogo (tenho múltiplas expedições em andamento) e talvez isso mude em algum ponto.
Dito isso, vou dar um pequeno spoiler de uma das missões iniciais. Em dado momento o painel de controle da sua nave vai ficar danificado com detritos metálicos, e para conseguir retirar isso, vai ser necessário uma mão firme, numa operação quase cirúrgica. Isso é modelado no jogo através de uma missão em que alguma carta de valor 1 (menos Foguetes) deve vencer uma vaza.
É absurdamente temático, considerando que é um jogo de carteado safado. Não só essa, mas outras missões também fazem um elo bem interessante com a narrativa, pena que
só o meu nerd sci-fi cabuloso interior, que de fato aproveitou.
Na minha mente, era assim que os tripulantes estavam. Fica a sugestão do narrador tentar valorizar esses momentos no pós-partida.
Animais à Bordo
Acho que
uma das grandes vantagens do jogo, é que ele é
altamente inclusivo. Sério. Sua maior fonte de preconceito, ser um jogo de baralho normal, é ao mesmo tempo seu grande trunfo. Qualquer um pode jogar. Até gente que normalmente não gosta de jogos modernos, mas que sabem, e jogam magistralmente bem, coisas como Pife, Canastra, Buraco e todas as variantes de carteados. De alguma forma para esse público, o jogo tem um sabor especial, acabam fisgados, e fazendo comentários que
ignorante típico (como eu) não faz a mínima ideia do que se trata. E o melhor (ou pior): eles
vão dominar o jogo.
Veja bem, quem joga esses jogos, normalmente já vem com as habilidades básicas
bem afiadas: entender naipes, contar cartas e ler os oponentes. Então você pega esse pessoal e mistura com
animais como eu,
que fazem uma sequência composta por 7, 8 e 10, você
pode ter certeza que o jogo vai pegar fogo. Mas a beleza é que, como ninguém pode falar e gesticular nada, não vai haver o
Alpha Player de Carteado Tradicional tomando conta da partida. As
derrotas são quase sempre divertidas, seja por um erro grosseiro, ou porque cada um tentará explicar o que estava fazendo depois da missão. E isso, ter todo mundo na mesa, juntos, interagindo, é o motivo de jogarmos boardgames no final das contas, não é mesmo?
Multisoloplayer “com-op”etitivo
Um outro elemento sutil, e que talvez até esteja presente em outros coops com comunicação restrita, mas é que na prática você pode assumir que está jogando um jogo solo. Um jogo solo, em que você tem que fazer um bando de
robôs imbecis seguir seus comandos rumo a vitória. O jogo tem um pequeno detalhe de regra:
quem vence a rodada é o primeiro a jogar a próxima rodada e isso é absolutamente importante. Com isso você consegue armar os lances para as jogadas vencedoras muitas vezes, porém não será incomum ver seus oponentes, digo, tripulantes, vencendo as rodas enquanto você fracassa em ser o primeiro para
executar o plano perfeito. E nada mais gratificante que conseguir conduzir a vitória sem falar nenhuma palavra. E nada mais engraçado que
destruir a missão nessas tentativas ao descobrir que
você era o robô imbecil no final das contas.
Já disse como perder nesse jogo é divertido? Pois então. Em uma partida de 2 jogadores, minha “oponente” chorou de rir com tamanha imbecilidade da minha parte,
eu era o NPC traidor da narrativa.
Ash fazendo escola.
2 Player você disse? Aqui tem.
Depois que você sabe as regras do jogo, você deve se perguntar: como diabos isso funcionária em dois? Ao descobrir que você precisará de um “Dummy Player”, seus índices de preconceitos devem ir ao teto. E veja bem, preconceito na vida real e nos jogos normalmente é um caminho pouco lucrativo.
O negócio aqui funciona muito bem. A “vibe” do jogo muda um pouco, já que 7 cartas ficam abertas e 7 em em baixo escondidas, o capitão da missão vai controlar as ações do robô, chamado Jarvis. Isso adiciona um “puzzle” extra ao jogo, que é essa condução do robô para mostrar as cartas escondidas.
O jogo fica mais fácil que a versão tradicional só com humanos, as vezes até sendo uma experiência mais “zen”, porém fique tranquilo,
derrotas grosseiras vão ocorrer. Sugestão para quem quiser mais adrenalina: coloque um cronometro com limite de tempo para cada missão.
Fiquei espantado como um jogo tão simples, em dois, pode ser jogado durante 2 horas, como se fosse um jogo grande tipo Brass.
O Ruim
The Crew é Singular e não Plural
Vendo alguns reviewers, como o do Tom Vasel, eles comentam que a
replayability do jogo é imensa, o manual inclusive faz piada sobre isso dizendo a matemática absurda de combinações possíveis de partidas pra primeira missão. Eu até concordo,
mas em partes. Já tive sessões de
quatro horas que foram excelentes do começo ao fim, outras de pouco mais de uma hora que ficaram só “ok” no final. Qual o problema?
Recomeçar constantemente a campanha.
É comum no nosso hobby, querer mostrar o joguinho novo, mas
eu não acho que aqui seja o ideal. Refazer as missões desde o zero, mesmo que não sejam “exatamente repetidas”, gera algum desconforto, lá no fundo você vai preferir completar a campanha inteira com a sua “equipe de elite da última vez”. Jogar “picado” sem as vezes ter perspectiva de continuar, não é muito legal e vai te deixar com um gosto amargo de alguma forma.
Isso não é uma regra absoluta, e acaba dependendo bastante da sua leitura de grupo ao apresentar o jogo, mas é um ponto de atenção. Veja bem, o jogo se chama The Crew, e não The Crew
s afinal de contas.
The Crews
O Alpha Player do Aprendizado
Como eu disse lá em cima, esse jogo é absurdamente inclusivo, porém ele demanda um tipo de inteligência que as vezes é negligenciado no hobby, como eu mesmo disse, eu que sou supostamente um player hardcore tinha quase 0 experiência com jogos de vaza. Por sorte, acabei aprendendo o jogo com outros ignorantes como o @
red_djow, o que fez ser um processo divertido. O que pode ocorrer, e já vi ocorrer em alguma escala, é alguma pessoa ter
muita dificuldade para entender o que se deve fazer. Isso se mostra em vários níveis como: se comunicar dizendo “já perdemos o jogo” (mas tinha uma série de técnicas pra sair da situação), ou não conseguir entender nada, ao ponto de olhar as cartas e nada fazer sentido. Deixe-me dar um exemplo.
Em uma das partidas, um dos jogadores estava tendo muita dificuldade para entender o que fazer no jogo. O clássico:
Perdidaço. Assim que a partida acabou os demais jogadores bombardearam a pessoa com explicações do que deveria ser feito nessa e naquela situação. Não de forma pejorativa, genuinamente tentando fazer a pessoa entender, mas referente a
didática é uma péssima idéia bombardear um novato com tanta informação. Isso piora ainda mais quando essa metralhadora de explicações acaba gerando uma certa “pressão” para o jogador que ainda
não teve o “click”. No final das contas, tudo terminou bem, mas quero alertar os donos do jogo, para terem uma cautela especial com os novatos para conseguirem conduzir uma experiência agradável de aprendizado.
Note que isso, casado com o problema anterior (começar sempre uma nova partida), pode ser bem desgastante para o dono do jogo, o que reitera a opinião de evitar muitos grupos diferentes.
Não é fácil ser professor afinal de contas.
Procura-se: Sleeves de Aço
O último problema, apesar de leve, é notável pra quem gosta de jogar com sleeves. Como as cartas "não tem lado", na hora de embaralhar é bem fácil elas estarem com orientações distintas e uma acabar entrando dentro da outra. Meus sleeves
RedBox rasgaram
vários. Eu diria que por baixo já perdi uns
10 por causa de rasgarem durante o embaralhar. A
RedBox é famosa por esse problema, mas nunca tinha passado por isso até então. Nesse caso talvez um
Bucaneiros acabe sendo mais vantajoso, mesmo com um acabamento pior, já que tenho a impressão de que eles são mais fortes (mas não testei).
Conclusão
Apesar de achar que os prêmios do
Spiel des Jahres estão meio tortos ultimamente (diferente do
Spiel des Djows que a cada ano se supera), tenho que dizer que
faz todo o sentido este acabar ganhando o
Kennerspiel des Jahres. Como já disse antes,
eu joguei por mais de 4 horas com o mesmo grupo. 4 horas
non-stop. 240 minutos de carteado com tema do espaço. Claro, talvez minha opinião não se aplique para todo mundo, mas era ele na minha mesa e não os grandes
Power Grid ou
Pax Pamir, os tradicionais “jogos da noite”. Se você ja é um meta-gamer, que gosta de falar sobre design e afins, é um estudo de caso incrível, como tanto pode ser entregue com tão pouco. É mentalmente recompensador, simples e profundo ao mesmo tempo.
Talvez
The Crew ainda venha se mostrar como mais um
fogo de palha na minha percepção de coops divertidos, assim como foi
The Grizzled, mas por um investimento de
apenas 89 pilas (como supostamente vai ser a versão nacional) sou obrigado a dar um novo prêmio de
ROI por essa pérola da Indústria.
Selo Spiel Des Djows de Tapa na Cara da Sociedade que Reclama dos Altos Preços de Lançamentos e Parece Subestimar os Grandes Jogos Baratos que já Existem na Nação Tupiniquim
Num mundo que com menos de 300 pilas tu leva
Innovation,
The Crew e
Tigris & Euphrates, só posso achar que o mundo tá loco ao ficar chorando por jogo de R$ 900, muitas vezes de qualidade questionável. Quanto a esse
The Crew, pode comprar, nem que seja pra dar de presente depois.
Nota 9: Faço propaganda, mas sou trouxa por não cobrar nada da Devir.
Chorando de nervoso por ter escrito tudo isso e não ter ganho nem uma balinha da Devir.