Aviso: Como de praxe, eu falo adoidado nos meus reviews. Se você não estiver interessado na (longa) introdução e quer saber apenas do que se trata o 18Rhl, pode pular direto para logo depois da foto da capa do jogo.
Em entrevista pouco antes de sua morte, Francis Tresham conta que, quando criou o primeiro jogo econômico de trens, ainda nos anos 70, a ideia de que as empresas tivessem “acionistas”, ao invés de cada uma ser controlada por um jogador, foi a forma de resolver um problema óbvio: num mapa realista em que cada empresa pudesse partir de uma dada cidade, com outras cidades distribuídas pelo mapa, obrigatoriamente haveria empresas "piores" e "melhores", e assim o jogo ficaria desbalanceado. Surgiu assim o primeiro jogo econômico de trens, onde jogadores não apenas criam rotas mas compram ações de empresas pensando em como elas vão valorizar (ou desvalorizar) à medida em que o jogo se desenrola. Hoje há muitas centenas desses jogos, divididos em sub-gêneros, dentre os quais o que mais tem títulos é o dos 18XX, do qual faz parte 1829, o primeiro jogo de Tresham.
Depois de um pouco mais de uma década (intervalo em que Tresham criou mais um gênero de jogos de tabuleiro que renderiam centenas de títulos – seu Civilization, de 1980, inventou o conceito de "árvore tecnológica" e deu início aos "jogos de civilização"), a gigante americana Avalon Hill teve acesso ao 1829 de Tresham (lançado em tiragem muito pequena) e viu que havia algo extremamente promissor ali. Com desenvolvimento do pessoal da editora num novo mapa nos EUA, viria 1830: The Game of Railroads and Robber Barons, que imediatamente se tornou um enorme sucesso para a empresa.
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Antes do 1830, a Avalon Hill vendeu bem um jogo de trem chamado Rail Barons (teve impressões em 1977 e 1980), que fez sucesso na época mas hoje é consenso não ter envelhecido muito bem.
Essa nova versão do sistema criado por Tresham, porém, ressaltou drasticamente uma característica que faz jus ao subtítulo do jogo. Robber barons era a forma nada elogiosa de se referir aos magnatas de caráter duvidoso, pra dizer o mínimo, que enriqueciam a partir de todo tipo de manobra questionável para manipular mercados. 1830 ainda é um jogo de trens e rotas, mas mais ainda um jogo de esvaziar cofres de empresas e jogá-las no colo de outros jogadores, de comprar ações não pensando em capitalizar companhias, mas em vendê-las para desvalorizá-las ou manipular a ordem em que empresas operam, de destruir quase completamente o valor de uma empresa para que ações dela não contem para o limite de papéis de um jogador, etc.
Aparentemente, Tresham achou que a dose foi muito alta, e talvez por isso lançou, três anos depois, o jogo 1853, anunciado como "A game for engineers who`ve had enough of the financiers!" - um jogo para engenheiros que ficaram de saco cheio dos financistas. Aqui, o que chamava a atenção era o fato de haver duas bitolas de trilhos, montanhas, uma quantidade enorme de tiles para trilhos e os desafios de construir a rede ferroviária. Com dezenas de novos 18xx aparecendo nas décadas seguintes, popularizou-se a ideia de classificá-los em jogos "para engenheiros" (ou no estilo do 1829) e "para financistas" (no estilo do 1830).
Não existe um consenso entre o que faz um jogo ser de um estilo ou de outro (nem há nada que evite que sejam um pouco das duas coisas), mas como toda classificação, ela é útil desde que se especifique o que exatamente está sendo discutido.
Definir o que seria típico de um jogo "para financistas" é mais fácil – no 1830, vendas de ações podem causar mudanças drásticas em seus preços, fazer um "dumping" (jogar no colo de outro jogador uma companhia em maus lençóis) não é difícil e comumente é vantajoso, e o escore final do jogo acaba dependendo mais de como você manipulou as ações do que das rotas que você construiu. Outros jogos levaram o lado financista a patamares ainda mais altos – no 1817 por exemplo pode-se fazer vendas a descoberto (vender uma ação que você ainda não comprou, sendo obrigado a comprá-la no futuro), no 1841 companhias podem ser donas de outras companhias, etc.
Não, não é o capeta! Trata-se de Hermes guiando uma locomotiva.
No lado "engenheiro", pode-se tanto se referir ao fato de que o mapa e a construção de rotas apresenta complexidade maior (bitolas diferentes, rotas especiais, desafios devido aos diferentes terrenos) como ao fato dos escores finais serem mais determinados pelos dividendos que pelo que se fez no mercado de ações. Em um jogo como o 1846, por exemplo, o valor de uma ação no mercado pode valorizar uma, duas e até três vezes dependendo de quanto ela paga, e dessa forma se dar bem no jogo acaba dependendo mais de investir nas boas companhias que em tentar aprontar no mercado: ao contrário do 1830 ele não incentiva grandes reviravoltas, o valor das empresas só cai com vendas se essas forem feitas pelo dono e ainda assim um único espaço – nada de destruir o valor de uma empresa jogando um monte de ações no mercado. Desvalorizar uma empresa de propósito também não traz nenhuma vantagem para o seu dono, já que não há o equivalente da "região amarela" do mercado de ações em que elas não contam para o limite de papéis.
Meu primeiro 18xx "de verdade" (isto é, descontando o simplificado Poseidon) foi o 1846: The Race for the Midwest. Já escrevi sobre ele aqui, e continuo gostando bastante do jogo (devido a atual situação fico restrito a jogar via 18xx.games), mas com o tempo, e depois de apanhar muito, acabei gostando mais de jogos que permitem mais manipulação do mercado, e que acabam gerando partidas com mais reviravoltas. Escolhi o 1889: History of Shikoku Railways como o próximo 18xx da minha coleção por ser um excelente jogo nesse estilo sem ser tão longo quanto o 1830 (pra quem quiser ouvir mais sobre ele e o 18Chesapeake, falamos deles nesse episódio do podcast Mercado de Ações), e como não tinha um grupo fixo por aqui (e que não jogava com frequência suficiente pra encarar os mais longos), resolvi que minha coleção ideal seria manter um jogo "pra engenheiros", um "pra financistas" e algum "diferentão".
Sim, há todo um mundo de coisas difíceis de enquadrar nessa classificação mais simples. Sempre ouvi muito falar no 1860: Railways on the Isle of Wight, que subverte um monte das regras do gênero e dizem ser ótimo, mas dificílimo de achar, tenho muita curiosidade em relação ao Harzbahn 1873 em que se investe não só em ferrovias mas também em companhias de mineração (que têm suas próprias regras sobre como rendem dinheiro e flutuam de valor no mercado), etc.
Embora atualmente exista uma quantidade cada vez maior de 18XXs publicados pelas vias "normais" (uma pena que isso tenha acontecido só agora com esse câmbio proibitivo), a grande maioria deles ainda é produzido de forma semi-artesanal, por pequenas empresas de uma pessoa só, funcionando na garagem ou no porão de um cara que vive de outra coisa e que monta esses jogos no seu tempo livre. É o caso da Marflow, empresa-de-um-homem-só cujo responsável é o Wolfram Janich, que produz manualmente jogos criados por ele mesmo (seu primeiro 18xx foi 1847: Pfalz, de 1990) e por outros designers. Os jogos de lá não são tão conhecidos como os da Deep Thought Games, Golden Spike Games e All-Aboard Games, que ficam nos EUA, mas quando apareceu a oportunidade de comprar alguma coisa que fosse entregue na casa de uma amiga no exterior uns anos atrás resolvi então tentar descobrir qual jogo do catálogo deles seria mais provável de me agradar. Perguntei por algo que não tivesse uma duração muito longa, um conjunto enxuto de regras e que fosse complementar ao 1889 e ao 1846. Me indicaram o 18Rhl: Rhineland. Acertaram na indicação.
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18Rhl: Rhineland - a capa da primeira edição
18Rhl é um 18xx criado por pelo próprio Wolfram, o dono da Marflow. Ele é um desenvolvimento de um jogo anterior, 1838: Rheinland, e se passa na região da Alemanha próxima ao rio Reno. O que é uma informação relevante, pois o rio é parte importantíssima do jogo. Aqui, ele não é apenas aquele custozinho adicional pra construir trilhos como em tantos outros 18xx – você simplesmente não atravessa o rio em praticamente todo o mapa. Apenas nas três metrópoles à beira do Reno e num quarto ponto específico do mapa pode-se ir de um lado para o outro, o que sozinho já permite travar os amiguinhos com mais eficiência que em outros jogos da série. Mas não é só nisso que o jogo se destaca em relação aos quebra-cabeças envolvendo rotas. Há dois tipos de rotas especiais: uma leste-oeste, representando uma importante rota de comércio de ferro da época, e a rota turística do Rheingold Express, o ultimo trem do jogo, que duplica os valores de rendimentos das metrópoles (que já são os lugares que mais pagam) quando a região noroeste do mapa se liga a sudeste. Agora imagine brigar por rotas como essas com um rio que corta o mapa de cima a baixo e só permite passagem por quatro lugares e fica óbvio que pra quem gosta de briga no mapa, 18Rhl é uma maravilha
Ah, e não é só isso: rotas que ligam uma mina de carvão a uma siderúrgica (há algumas fixas no mapa e no inicio do jogo sorteia-se a posição de uma de cada) ganham um Montan Bonus que vale uns bons trocados, e o uso das áreas externas (aquelas regiões que geralmente são representadas em vermelho nos 18xx) podem ser usadas como passagem - e bloqueadas com estações!
Ah, e como se não bastasse, essa região vermelha ainda paga de acordo com o numero de conexões.
E como seria a parte "pros financistas"? A movimentação de preços das companhias ainda é muito parecida com a do 1830: não há "saltos múltiplos" (se uma empresa distribuir dividendos de pelo menos o valor atual da ação ela valoriza uma posição, mas nunca mais que isso), e quando se vendem ações de uma empresa seu valor cai independente de quem esteja vendendo – porém, a queda é de apenas uma posição por venda, independente do número de ações vendidas.
Também não é possível brincar com "estratégias amarelas" (desvalorizar de propósito uma companhia para que suas ações não contem para o limite de papéis), já que não há região amarela no mercado de ações. E ao contrário de jogos com mercado baseado no 30 em que vender todas as ações de sua empresa e ficar só com a ação de 20% do presidente pode ser uma estratégia interessante, aqui isso não vale tanto a pena pois quem paga dividendos são ações no IPO e não no pool.
Uma diferença em relação ao padrão dos jogos no estilo 1830 e o que determina quem vai ser o primeiro jogador na próxima rodada de mercado (o "priority deal"): ele vai para quem terminou a rodada de mercado anterior com mais dinheiro na mão. Isso cria uma dinâmica interessante, já que, em geral, "dinheiro parado" não é uma boa ideia em 18XXs. Aqui, porém, segurar dinheiro numa rodada pode ser interessante para ser o primeiro a começar a próxima e abrir aquela empresa antes de todo mundo, ou ser o primeiro a vender ações antes que outros o façam e ela já esteja desvalorizada quando chegar a sua vez. Nesse jogo portanto faz sentido traduzir PD como pão-duro (obrigado, Mamoru!). Não conheço os detalhes do desenvolvimento do jogo, mas essa regra parece ter sido pensada conjuntamente com outra que não é comum nos 18xx: a empresa que acabou de flutuar sobe uma posição no mercado. Assim, cria-se incentivo para os dois lados - comprar ações numa empresa que acabou de ser aberta pode não render dividendos imediatamente, mas ao mesmo tempo não leva a uma desvalorização (a andada pra esquerda causada pelo fato de que uma empresa que acabou de abrir obrigatoriamente desvaloriza por não ter trens ainda é compensada pela posição que ela subiu ao flutuar por conta dessa regra).
Em relação a capitalização, o jogo também é um pouco diferente. No começo, companhias precisam vender 50% de suas ações para flutuar, mas recebem apenas o valor relativo à venda dessas ações iniciais – recebendo mais dinheiro depois que vender as demais ações para o mercado (agora pelo valor atual). É como na "capitalização parcial" do 1846, mas com a diferença que ainda é preciso vender 50% da empresa para que ela receba o dinheiro e opere, enquanto no 1846 basta que haja a venda da ação de 20% do presidente para que isso aconteça.
Só que nas fases finais do jogo (a partir da venda do primeiro trem 5), o sistema muda para capitalização total ao vender 50% de suas ações, a companhia recebe dez vezes seu valor de ação na abertura, e as 5 ações remanescentes vão para o pool – e quando são compradas pelos jogadores o dinheiro vai para o banco, ao invés de ir para a companhia.
Como não
chega a ser raro no mundo dos 18xx, algumas empresas têm características especiais: a CCE, por exemplo, já começa com duas estações no mapa. A KKK só abre com 60%, porque os primeiros três certificados vendidos são de 20% cada (e ela começa "travada", num hexágono verde sem conexões). E a RhE, que já abre logo após o leilão das privadas (seu certificado de presidente faz parte desse leilão), já opera com 20% de ações vendidas – três vão pro mercado e o dinheiro equivalente a elas e deixado separado num canto do tabuleiro para lembrar que quando a empresa se conecta àquele ponto, recebe esse dinheiro para seu tesouro – algo parecido com jogos como 1856 ou 1870 em que há bônus quando companhias chegam em seu "destino".
É, colega, pra sair daí só quando liberarem os tiles marrons. Ninguém mandou comprar uma empresa chamada KKK.
Em relação às privadas, há coisas não muito diferentes do usual (aquelas que travam algum lugar do mapa, ou que dão uma ação de uma companhia), e duas que podem ser usadas como "teleporte"- o que é particularmente interessante pra quem abrir a KKK, que, sem isso, só consegue se conectar a rede ferroviária quando o primeiro trem 5 e vendido. Uma dessas duas vem com um tilezinho que parece fuleiro, até você ver que é ótimo pra travar as rotas dos amiguinhos: a companhia permite colocá-lo mesmo se já houver algum lá e imediatamente colocar uma estação que trava a passagem bem do lado de duas das metrópoles - que não só são os locais que mais pagam por rotas como é por onde é possível passar de um lado pro outro do rio. E a propósito, devido ao número de companhias no jogo e ao fato de que boa parte delas têm como estação inicial uma das metrópoles, quase sempre uma ou duas delas terminam o jogo completamente bloqueadas, pra alegria de alguns e tristeza de outros.
Outras particularidades do 18Rhl são que jogadores podem ter até 100% de uma companhia e privadas nunca são vendidas. São os jogadores que podem usar seus "poderes", e recebem aqueles pequenos rendimentos também até a fase 5, quando elas saem do jogo.
Se até agora as maldades do jogo são mais focadas no mapa que no mercado (dumps são benvindos, mas o estrago para quem o recebe é um pouco menor pelo fato do valor da ação cair sempre só uma posição), há uma maldadezinha adicional em relação ao "train rush". Como de praxe, a chegada de trens mais modernos enferrujam os antigos, sem aquela rodada de misericórdia do 1846, mas no 18Rhl, basta que o primeiro 5T seja comprado para que já fiquem disponíveis os 6T, que enferrujam o 3T; e comprando-se o primeiro 6T já ficam disponíveis os 8T, que enferrujam o 4T. Isto é, nas fases finais do jogo, pode ser que você pisque e se veja sem trens tendo que pagar um do próprio bolso – e dependendo de como jogarem antes de você, talvez um dos mais caros. 18Rhl, aliás, é daqueles jogos que não são encerrados por falência – o jogador sai do jogo e a partida continua.
Quando entrei no mundo dos jogos de tabuleiros modernos, eu reparei que gostava muito de jogos com mapas. Mais tarde percebi que isso não era apenas uma questão estética e se devia muito ao fato de que boa parte das vezes, ao menos entre os jogos que eu conheci quando entrei no hobby, tratavam-se de jogos em que as coisas eram decididas em um tabuleiro central e comum a todos os jogadores. Rapidamente passei a gostar também de construção de rotas, tendo gostado imediatamente do Steam (até hoje não consegui jogar o original Age of Steam). A isso se seguiu toda uma paixão por jogos de trem em geral e econômicos em particular, e mesmo que hoje eu seja um fã inveterado das manipulações mercadológicas possíveis em jogos como 1830 ou 1889, construir e disputar rotas num mapa nunca deixou de me interessar.
Dessa forma, eu meio que me encontrei no 18Rhl - um jogo que traz, ao menos para mim, um excelente equilíbrio entre o mundo da construção e disputa de rotas num mapa, sem eliminar a parte econômica. E se não está entre os mais curtos, dura menos que um 1830. Acho que posso afirmar que, atualmente, é meu 18xx preferido.