Olá, jovens.
Eu costumo receber mensagens me pedindo recomendações de jogos com certa frequência.
Isso me motivou a escrever um guia sobre o que considero as melhores práticas de consumo.
De certa forma, eu já havia pontuado algumas diretrizes no meu texto sobre FOMO, mas aquele texto tem um aspecto mais de desabafo, além de ser um bloco enorme de texto. A ideia aqui é fazer algo mais dinâmico e esquematizado para facilitar a sua vida.
- Antes de considerar a aquisição de um novo jogo, observe os jogos que você já tem. Somos constantemente bombardeados com novas tentações e muitas vezes ludibriados porque tomamos uma atitude no impulso, no calor do momento. Ok, você "quer muito aquele jogo", mas será que você realmente precisa dele? Dê uma boa olhada nos jogos que você já tem. Você verdadeiramente joga todos esses jogos? Será que você não está comprando mais do mesmo? Você precisa de mais um worker placement? Reflita.
- Antes de adicionar mais um jogo à sua coleção, cogite a possibilidade de passar outro jogo adiante primeiro. Tempo é o seu bem mais precioso. Dinheiro você eventualmente recupera, tempo não. Comprar um novo jogo é mais do que um dinheiro investido. É uma promessa. A promessa de que você vai dedicar seu tempo futuro a ele, o que sabemos muito bem que nem sempre se configura como verdade. Que atire o primeiro meeple aquele que nunca comprou um jogo que levou uma eternidade para jogá-lo ou sequer jogou. Mantendo sua coleção num patamar estável fará com que você economize tempo, dinheiro (e possivelmente peso na consciência).
Ok, Luis, já considerei os pontos preliminares, estou seguro e consciente da minha nova aquisição e do tempo demandado pelo jogo novo. Sem mais pregação sobre minimalismo,
que jogo eu compro?
Em uma linha: é você que sabe.
- Pesquise de forma ativa, não deixe os outros definirem o seu gosto. Todo mundo vai falar maravilhas do jogo do momento, dos grandes medalhões sagrados que "todo mundo tem que ter". Se você for fraco de coração, vão tentar te convencer a comprar qualquer coisa. Quem tem que saber antes de todo mundo sobre o que você gosta é você mesmo. Não importa o quanto você se identifique com um certo influencer e o quanto ele aja pra você como uma espécie de oráculo sagrado que aponta os caminhos das pedras, você pode (e deve) sempre que for coerente discordar dele. O influencer não é um mau agente. Ele está somente falando a percepção dele (independentemente da real intencionalidade da coisa). A percepção é dele, não sua. Você tem que filtrar isso conforme a sua própria visão dos fatos. É você que paga o boleto no final das contas.
- Antes mesmo de consumir reviews, aprenda as regras do jogo e veja um gameplay. O melhor jeito de você saber de verdade se você vai se identificar com aquele jogo em questão é vendo como ele funciona na prática. É a forma de conhecer um jogo mais livre de filtros (eu falei mais livre, não completamente). Se você não tem paciência nem de aprender as regras do jogo, nem de ver uma partida completa (mesmo que você jogar o jogo seja melhor do que você assistindo alguém jogando), reflita se você deve mesmo adquirir esse jogo.
- Você não precisa seguir a corrente, nem ir contra ela. Todo ano literalmente milhares de jogos novos são lançados no mercado. Artificialmente e inconscientemente desenvolvemos métricas para justificar nossas opções de consumo. Uma das maiores delas é a popularidade de um jogo. O jogo que todos falam sobre, "que todos estão jogando". Sua mãe já dizia muito bem "você não é todo mundo!". Somos seres sociais e queremos fazer parte de algo maior do que nós mesmos. Fazer parte do hobby nos define no meio da multidão e consumir o jogo x nos define no meio do hobby. Você tem que escolher um jogo porque ele é bom (pra você) e não porque ele é popular. Popular e bom não são sinônimos. (Você também não precisa caminhar na vertente diametralmente oposta e automaticamente desprezar um jogo porque ele é um jogo de massa). Apenas desenvolva sua própria personalidade.
- Não dê um salto maior do que a perna. Enjoou dos jogos de entrada? Aquele jogo não brilha mais como no começo da coisa? Ficou bobo? Ficou chato? Ficou "fácil demais"? Não há nada de errado com isso. Agora, cuidado. Não é porque você pesquisou sobre aquele jogo super complexo e pesado que a galera que gosta de parecer inteligente tanto fala que você vai abrir a caixa do jogo e se tornar o novo Einstein dos boardgames. Existe uma métrica chamada "peso" (weight) dos boardgames. Esse número varia de 1 a 5, sendo 1 um jogo muito simples desses que você abre a caixa já praticamente sabendo jogar e 5 aquele que você precisaria contratar um professor particular pra aprendê-lo de fato. O site Boardgame Geek dá uma noção boa sobre isso. Se você está acostumado a jogar jogos de peso 2, não pense que amanhã você vai sair jogando jogos de peso 4 assim do nada. Ah, mais uma coisa. Não é porque o jogo é complexo que ele é necessariamente bom, tá?
- Você não tem que correr atrás de um Santo Graal. Você achou nos fundos da internet aquele post empoeirado sobre um jogo iradíssimo e raríssimo que só os escolhidos por Deus jogam. Você automaticamente quer se juntar àquela maçonaria e vai procurar o jogo. Descobre que ele não existe no mercado e, quando existe, ele custa dois rins e uma perna (a sua melhor perna). São três letrinhas que atormentam muitos aqui: OOP, que significa Out of Print, ou simplesmente "não estamos fazendo mais esse jogo por tempo indeterminado". Você não precisa desse jogo. Economize tempo, dinheiro e cabelos brancos na caçada pela terra prometida. Tem tanto jogo bom por aí, por que você precisa justamente do mais difícil (leia-se caro) de conseguir? Não se torture com isso, não vale a pena. Cansei de comprar Santo Graal, morrer numa grana e nunca tê-lo jogado de fato. O jogo era a caçada, não o jogo em si.
- Ah, mas isso tudo que você falou dá muito trabalho! Conscientização é a sua maior arma. Isso exige disciplina. A escolha é sua. Ou você segue pelo caminho mais fácil, cai no conto do vigário, fecha o olho, paga o boleto, recebe o jogo pelos correios e deixa ele lá bonitão enfeitando a sua estante sem nunca tê-lo tocado, às vezes dentro do plástico ou o famoso "aberto para conferência". Ou você segue o caminho mais difícil e as suas chances de acertar serão substancialmente maiores, mesmo que às vezes o "acertar" é simplesmente ficar parado na sua e apreciar o que você já tem.
Luis, segui tudo o que você falou, comprei um jogo de forma consciente. E agora?
Agora jogue-o e seja feliz, jovem.
Mas sei lá... não era isso tudo que eu estava pensando, sabe? Acho que a cigana me enganou...
Ok, vamos lá.
- Você não tem como decidir 100% se você gosta de um jogo sem tê-lo jogado. Não uma, não duas, mas várias vezes se possível! Se puder jogar o jogo antes, faça-o, quanto mais, melhor. Você muitas vezes vai encontrá-lo de graça em sites de jogos analógicos na forma digital como Boardgame Arena (também conhecido como BGA), Tabletopia, Yucata.de, brettspielwelt.de (ou BSW), triqqy.com e tantos outros. Se você digitar "o nome do jogo que você está procurando" + "online" no Google, tem uma chance razoável de você encontrá-lo numa versão digitalizada se ele não for um lançamento muito recente. Depois de jogá-lo várias vezes, aí você decide se ainda vale a pena comprá-lo para tê-lo na versão física. Você compra carro sem fazer teste drive? Pode ser que sim, mas não concorda que seria mais interessante fazê-lo antes de assinar a papelada?
- Não gostei do jogo, e agora? Comprar o jogo não é apenas uma promessa, como uma aposta. Você não teve a oportunidade de jogá-lo, mas decidiu assumir o risco mesmo assim (Afinal, os componentes eram tão bonitos, não era mesmo? Pena que o jogo é super sem sal e quebrado...). Passe-o adiante. Por que você vai manter o elefante branco no quarto? Você comprou uma calça que não cabe em você, o que você faz? Ou você troca o produto ou você emagrece. Com boardgames é a mesma coisa. Ou você dá mais umas chances para o jogo e descobre que ele não era tão ruim assim como foi na primeira experiência (vocês ainda estavam muito verdes no jogo, cometeram vários erros de regras e estratégia, etc.), ou simplesmente o passa adiante. As dicas anteriores são para evitar que você perca tempo e dinheiro comprando um negócio e depois revendendo, mas ainda assim, essa é uma opção muito válida. Pior do que isso seria você deixar a calça justa dentro do seu armário sem nenhuma justificativa aparente. Se você não faz isso com a calça, por que você faria com o boardgame? Não coloque dimensões de afetividade onde elas não deveriam existir. Use esse último passo como experiência para evitar furadas futuras. "Lembra daquele jogo que eu comprei e não gostei? Pense muito bem se não estou repetindo o mesmo erro". Insanidade é continuar a repetir as mesmas ações esperando resultados diferentes.
Essa é seguramente a minha análise mais honesta justamente porque eu não estou falando de jogo algum em particular. É possível que eu tenha te influenciado a consumir um jogo e tudo bem. Jogos são maravilhosos, é por eles que estamos aqui. O problema é tomar uma decisão equivocada e se arrepender depois. Ou pior, entrar em negação e continuar tropeçando nos mesmos lugares. Isso ninguém gosta. Você tem todo o direito de discordar de mim e de qualquer outro. Todo review tem viés. A simples escolha do jogo a ser resenhado já carrega com si uma série de vieses que fizeram com que aquele jogo tenha sido escolhido em meio a um universo de dezenas de milhares de jogos existentes. Pode ser um motivo extremamente nobre como "esse é o jogo da minha vida, preciso mostrar para o mundo o quanto essa obra prima é maravilhosa", ou algo não tão íntimo, porém perfeitamente honesto como "é isso que eu faço para pagar as contas no final do mês".
Ninguém está te obrigando a comprar um jogo. Por que muitas vezes temos uma certa aversão ao influencer que não foi "sincero o suficiente com a gente", mas estamos perfeitamente bem com uma série de outros bombardeios de propaganda em massa que recebemos a cada fração de segundo? É porque nós criamos vínculos afetivos inconscientes com eles. Eles são nossos amigos, nossos brothers. Eles não mentiriam para nós. E de fato não o fazem. Eles só estão seguindo a lógica do mercado. É assim que a roda gira, é assim que o jogo funciona. Não misture as coisas. Conscientização é a sua maior arma, lembra? A gente desenvolve essa repulsa depois de fazer um mal negócio porque sentimos como se um amigo nosso tivesse dado uma dica ruim pra gente. Vocês nem se conhecem pessoalmente, jovem.
Eu poderia ter resumido esse texto todo com: "desenvolva sua própria personalidade de consumo", fim de tópico, mas isso seria fácil demais. Tudo que é fácil demais não rende bons frutos.
Obrigado pela leitura, jovem.
Grande abraço,
Luis Perdomo