Luis, você não estava de férias, digo, suas férias não tinham acabado e você iria abandonar a gente e tudo mais?
Calma, jovem, menos drama. Afinal, eu disse que eventualmente iria aparecer aqui e acolá antes da season 2 do canal programada para dezembro.
Nossa, mas você voltou tão rápido! Não deu nem pro morto esfriar. Isso tudo era uma grande jogada de marketing pra você ganhar ibope. Sabia!
Menos, jovem, menos. Por outro lado, algumas coisas são certas: eu gosto muito disso aqui, gosto de escrever esses textos e gosto muito de jogar. Se você reparar pela hora da minha postagem, uma madrugada de quarta pra quinta feira, dá pra sentir um certo caráter de "urgência" ao escrever esse texto.
"Por que essa urgência toda?", o jovem perplexo me questiona. Bom, é porque eu gostaria de relatar todos os fatos na íntegra, antes que eu adormeça e me esqueça de algum detalhe.
Nossa, então o negócio foi bom mesmo! Fala mais!
Pensando bem, que tolice a minha. Eu certamente não me esquecerei desse dia assim tão fácil. Eu poderia ter deixado esse texto para outra hora, mas já que estamos aqui...
Essa análise será um tanto diferente do habitual. Hoje não teremos piadinhas, hyperlinks com memes, fotos engraçadas, ou nenhum tipo de imagem sequer. Você que está acostumado com meu formato tradicional de textos bastante apelativos e cheios de gracejos, talvez estranhe. Hoje será só o texto pelo texto mesmo, preto no branco, de cara limpa. Não vou insistir pra você ficar, lhe oferecendo um doce ou qualquer coisa do tipo. O que posso oferecer dessa vez é um relato diferente. Hoje venho falar do porquê estarmos aqui reunidos nessa comunidade abraçados a esses artefatos coloridos, essas composições de papelão, plástico, madeira e lógica que chamamos de boardgames.
Era uma quarta feira de pandemia como qualquer outra. Isolados nessa casa, isolados do mundo e de nós mesmos. Cada um no seu canto, no seu quarto, no seu celular, computador, no seu refúgio pessoal, na sua ilha. Minha mãe, professora da educação infantil, desempregada, voltou ao seu posto de dona de casa. É a terapia dela no meio desse caos. Meu pai, funcionário público, trabalhando em escala reduzida. Esses dias ele tem passado em casa. Extremamente ansioso, não consegue ficar parado. Se ele não está consertando alguma coisa, está quebrando para quem sabe consertá-la em seguida. Meu irmão, estudante universitário, fazendo aulas a distância e totalmente sugado por uma empresa júnior da qual ele participa. Certamente o mais isolado dos quatro. Eu nunca vi alguém se reunir tanto online em nome de uma empresa júnior. Imagine se fosse de verdade. Bom, pra ele é mais do que de verdade. Ele dá o sangue por aquilo, espero que não literalmente. Ele quer ser o novo Jorge Paulo Lemann. Deixemos o jovem sonhar. Eu continuo seguindo minha carreira acadêmica na eterna condição de estudante, vivendo de uma promessa cada vez maior, uma expectativa cada vez maior. Razão essa que inevitavelmente reduzirá drasticamente minha participação aqui em meio ao semestre letivo. Mas hoje é especial, jovens. Celebremos.
Em meio ao tédio, possivelmente intensificado pela ausência da televisão. Ontem tivemos mais uma daquelas chuvas homéricas que assolam o Rio de Janeiro, como de costume. Eu sou uma pessoa extremamente privilegiada e tenho ciência disso. Algumas pessoas por aqui perdem casa, perdem tudo, perdem a vida com a chuva, às vezes metaforicamente, às vezes literalmente, e aparecem na televisão por razões que a gente não gostaria. Eu fico sem luz, sem internet, mas nada muito além disso. A antena da TV quebrou e meus pais, que ainda transitam entre o estágio de assistir a TV aberta no mesmo canal de sempre e o de recém graduados em whatsapp da meia idade, passando aquelas correntes, mensagens de "bom dia" das mais espalhafatosas e constrangedoras possíveis, os vídeos... ah, os vídeos... (fico feliz que eles ainda não saibam atualizar os vídeos de status do zap zap), estavam completamente entediados ao ponto de recorrerem a um apelo extraordinário:
"Filho, você quer jogar alguma coisa?"
Frase rara, poucas vezes pronunciada nesta instituição familiar. Procedamos com cautela. Eles continuaram:
"É, vamos jogar alguma coisa... Pode ser o "jogo da vaquinha" (Pega em 6) ou alguma coisa que a gente saiba jogar (Código Secreto), mas nada muito difícil (qualquer coisa acima de Ticket to Ride)".
Não me levem a mal, eu adoro Pega em 6 e Código secreto, inclusive pretendo fazer review no canal algum dia. São dois jogos que têm lugar permanente na minha coleção. Meus pais são daqueles que ficam jogando buraco em sites da internet, Buraco Canastra, essas coisas. Buraco definitivamente não vai ter review no canal. O problema é que eu já estava um pouco saturado. Não dos jogos em si, mas de jogar sempre os mesmos jogos com as mesmas pessoas. Estava quase abortando a missão e respondendo algo do tipo "ah, hoje não estou muito no clima... (de jogar sempre os mesmos jogos, como se eu não tivesse outros 40)", mas num surto de rebeldia eu ousei:
"Queria apresentar um jogo novo para vocês"
Spoiler: Quacks of Quedlingburg
AHHH, NÃO ME DIIIIIIIGA, FERA! (Ah, que vontade de botar um meme aqui, mas hoje o papo é sério... voltando)
Meus pais são daqueles que se enrolam por completo ao contabilizar os campos no Carcassonne (não são tão intuitivos assim, vamos dar um crédito aos coroas). Quacks seria um desafio enorme, mas eu tinha a inocência deles ao meu favor. Como diria um professor espanhol boliviano que eu tinha: "iQuien no sabe, no teme!" ("Quem não sabe, não teme") (AAAAAAHH, JUUUUUURA?!). Falo da "inocência" deles no sentido de não terem ideia do que se trata o jogo, logo eles não ficariam com medo de ser algo extremamente complexo, algo como "aqueles jogos malucos que você joga com seus amigos por horas". Não havia grandes expectativas senão "ele falou que é um jogo fácil, ele conhece a gente". Operemos com muita cautela aqui, senhores.
Quacks pode ser fácil pra você, pra mim. Nós que já estamos carecas de ver essas coisas todas. É só falar que é um "Bag Building" com "Push your Luck" que já resumimos o grosso do jogo em duas expressões para um entendido no assunto. Para os meus pais seria algo do tipo "Bag o quê?!, filho, fale português com a gente, que mania!".
Minha mãe se sentou primeiro à mesa, meu pai estava tomando banho.
"Filho, vai me ensinando!".
Normalmente esperaria o velho para podermos fazer tudo numa tacada só, mas sabia que minha mãe era naturalmente mais devagar para esse tipo de coisa, então um supletivo cairia bem.
Eu ensinei de um jeito muito diferente do que eu normalmente faria com meus amigos. Anos ensinando jogos para pessoas diferentes, com curvas de aprendizagem diferentes, históricos e aproximações diferentes nesse mundinho mágico de meeples, minis e cubinhos que nos cercam me ensinaram que eu tinha que adaptar meus métodos. Se eu cuspisse todo o livro de regras na cara da minha mãe, no melhor estilo "Hadouken!", ela entraria em estado de choque. Se fosse com meus amigos, eles responderiam tipo "Ok, vamos jogar!".
Começamos "jogando" de forma muito limitada. Não usei as cartas de eventos, não usei o dado, o token de rato, a gotinha, nada. Só o básico do básico do básico, "saque umas fichas aí da sacola e vá colocando conforme a numeração"... "você não quer que a contagem de brancas passe de 7 e estoure!"
"só as brancas?"
"só as brancas, as coloridas não contam"
"sete fichas brancas?!"
"não, 7 é o valor da soma dos números que estão nas fichas..."
"ahh tá..."
(Eles crescem tão rápido, senhores. Que orgulho!)
"tá, e agora?!"
(que bonitinho, tomando a iniciativa)
"Você não quer sacar mais nenhuma ficha?!"
"Não, acho que vou explodir!"
(Prudente, mãe. Bom trabalho. Ela nem sabia quais eram as fichas na sacola. Intuição de mãe vale mais que as estatísticas (...ela ficou em último depois que meu pai chegou))
"Agora você ganha dinheiro para comprar novas fichas coloridas e pontos"
Depois de alguns ajustes, pouco a pouco ela foi entendendo o que era dinheiro, o que era ponto. No começo ela mal sabia para que serviam as fichas que ela estava comprando, só sabia que "as brancas não podem passar de 7", e tudo bem, ela estava pegando pouco a pouco o jeito da coisa.
Meu pai chegou e reiniciamos o jogo na metade. Comecei a explicar tudo de novo pra ele, minha mãe prestando a atenção como se fosse uma aluna que já tinha cursado aquela matéria e estava ali só pra tirar onda. Dali comecei a adicionar novos elementos, coloquei o dado na jogada e o baralho de eventos. Meu pai não manja muito de boardgames, mas é uma pessoa extremamente competitiva. Ele jogaria um campeonato de par ou impar. Ele só tem um pouco de dificuldade entendendo regras. A idade pesa. Um dia chegaremos nesse patamar, respeitemos.
Imaginem o meu orgulho ao começo do turno quando meus pais falaram "EI, VOCÊ ESQUECEU DE LER A CARTA DA RODADA!". Meus pais estavam me cobrando regras. Eles crescem tão rápido. Eu estava lendo todas as cartas porque o inglês do meu pai não é muito diferente do inglês do Joel Santana. O da minha mãe é pior que o dele.
Eu estava fazendo todas as pequenas operações do jogo, atualizando os pontos, pegando as fichas pra eles e principalmente movendo os tokens de rato. Eles tinham uma grande dificuldade em enxergar isso. Talvez conceitualmente, talvez literalmente. Minha mãe não estava usando óculos. Meu pai estava, mas ficava triste porque o rato dele não andava. Pai, isso significa que você está na frente! "Ah tá... hahaha, eu tô ganhando!" (tá, talvez eles não cresçam tão rápido assim). Ele de fato estava ganhando. Aproveitei pra correr todos os riscos possíveis, foi bem divertido. Estourei meu pote várias vezes em meio às rodadas.
Eis que chegamos na nona rodada (estourei lá também hahaha, tsc. tsc.). Meu pai ganhou fair and square. Ficou rindo igual a um idiota e então soltou a frase do dia. Uma palavra, uma interrogação, uma enxurrada de satisfação tomava conta do meu ser e a vida por uma fração de segundo fazia todo o sentido:
"Outra?!"
Topo, por que não? "Agora vamos jogar com o outro lado do tabuleiro". Ele estava com um pouco de dificuldades em decidir se andava com a gotinha de cima ou de baixo. Particularmente, às vezes acho a de cima mais forte, começar a colocar as fichas lá na frente rende muitos benefícios e vantagens competitivas, mas acho a de baixo tão mais satisfatória. Quem não gosta de ganhar recompensas progressivas? Eu tenho uma tendência forte a avançar com a gotinha de baixo.
Jogamos uma segunda partida. Só eu e ele dessa vez. Mano a mano. Ou melhor, pai e filho. Dessa vez eu não pude deixar o coroa ganhar. Mals aí, pai. Ele respondeu "1 a 1". E ele queria revanche. A cereja do bolo "jogo legal, gostei!".
Agora estou aqui escrevendo isso para vocês.
Quacks of Quedlinburg é um Bag Building + Push Your Luck. Isso já pode ser mais que o suficiente para algumas pessoas gostarem ou desgostarem desse jogo. Nunca fui muito chegado ao "bag" building, mas sempre gostei de push your luck. Gosto mais do conceito em si do que da maioria de push your luck que já joguei. Tenho a constante impressão de que muitos push your luck exploram o conceito de forma errada. Quacks não é um jogo perfeito, longe disso, mas certamente me agrada. Sabemos que não existe tal coisa como a perfeição, mas imperfeições certamente existem.
Eu sou uma pessoa meio 8 ou 80, minha mãe já dizia. Eu gosto muito de jogos com pouco ou nenhum elemento de sorte. Vendi quase todos os jogos que têm dados na minha coleção por pura implicância. Só tenho dois jogos que têm dados: Mage Knight (que ainda não parei pra jogar) e Teotihuacan (que já joguei muito e adoro o fato de você não rolar os dados... toma essa, sorte!). Por outro lado, eu mantenho na minha coleção um jogo como Quacks. Jovens, Quacks é muita sorte, beirando ao caos. Eu sou um cara estranho. Eu faço questão de deixar isso bem claro nos meus reviews para vocês terem noção dos vieses. Todo review tem viés.
Quacks é um jogo que não agradou muito meus amigos de mesa. Alguns deles falaram "Ok", aquele que ficou em primeiro com uma sorte estupenda achou o jogo maravilhoso e o que mais explodiu falou "curti não". Eu, mesmo sem ter ganhado a partida com meus amigos (fiquei em terceiro e mais perto do último do que do primeiro) pensei "vejo potencial nesse jogo".
Quacks é um jogo que a meu ver beira mais à roleta russa do que ao gerenciamento de riscos propriamente dito. O jogo tem fichas sendo sacadas de uma sacola, tem um dado pra quem mandou melhor (como se só as fichas já não fossem aleatoriedade o suficiente), tem cartas para diversificar os eventos com mais uma pitada de sorte (como se as fichas e os dados não fossem o suficiente) e por aí vai. Acontece que eu adoro essa miscelânea de aleatoriedades. Quacks na minha coleção em meio a vários euros sérios e respeitados me parece aquele cara que faz o maior carnaval na festa de fim de ano do trabalho, sobe na mesa, tira a camisa, vomita no vestido da mulher do chefe e dá um beijo cinematográfico no Jorge da contabilidade. Você foi demitido, Carlos, mas o Jorge quer falar com você no almoxarifado.
Tá, e por que eu gosto tanto de Quacks?
Esse jogo me faz me sentir vivo.
Esse jogo me faz esquecer por um momento de toda a seriedade dos euros. Por 9 rodadas eu só quero ter uma bag cheia de fichas coloridas. Quero sacá-las dessa sacola e ver até onde eu consigo ir. Quero olhar pro tabuleiro dos meus coleguinhas e ver se eles estão mais longe. Devo sacar mais uma? Ah, vai, só mais uma. Quais são as probabilidades? 2 em 5? Ninguém se importa. YOLO. Booooom! Totally worth it! ("filho, já falei pra você falar português, que mania!") (Vai dormir, mãe, está tarde!).
Você não vai gostar de Quacks se você leva esse jogo muito a sério. Se você é super competitivo. Se você quer calcular todas as probabilidades e se lamentar que a vida é injusta porque você tinha menos de 10% de chances de explodir e assim o fez enquanto o Manoel, que tinha 70% de chances de explodir, puxou 2 fichas seguidas e tudo certo. Se você está mais preocupado com o placar do que com as fichas bonitas e coloridas que você tem.
Quacks é o jogo que eu termino e não ligo pra quem ganhou. É como se eu estivesse jogando no meu mundinho particular e todas as fichas cantassem pra mim em uníssono "Até onde você vai?! Até onde você vai?!".
Quacks é um jogo que tem um mecanismo de catchup muito evidente pois é fatídico que quem começou tendo muita sorte vai ter muito mais chances de continuar essa maré de sorte. O mecanismo é perfeito? Olha, se tratando de um jogo naturalmente tão caótico, eu acho que ele até faz um ótimo trabalho e se você tá criticando isso, seguramente Quacks nunca foi um jogo pra você desde o início.
As fichas são desequilibradas? Sinceramente? Estou ocupado demais me divertindo para me importar. "Ah, as fichas azuis são as melhores!", "Não, as amarelas que são!", "As verdes são mais fracas", etc, etc. Minha bag parece uma salada de frutas. Eu não estou preocupado em "Uh, tenho que comprar mais dessas pra fazer um combo mais eficiente". Eu jogando Quacks sou mais assim "Hmm... eu ainda não tenho nenhuma ficha roxa".
Não tem certo nem errado. O importante é se divertir. A meu ver, para se divertir com Quacks você não pode levá-lo tão a sério. Isso vindo de um eurogamer convicto é muita coisa.
Quacks não deve ser levado a sério, mas não significa que o jogo é bobo. Essa é a diferença entre os push your luck que eu gosto e os que eu não gosto. Separando o joio do trigo. Não é uma das minhas mecânicas favoritas, mas eu certamente preciso parar e fazer um tributo quando eu vejo um trabalho bem feito. Você pode até não gostar do jogo, mas convenhamos que o designer conseguiu fazer muito mais do que muitos de seus antecessores sonharam em alcançar ao desenvolver mais um jogo no melhor estilo "force a sua sorte".
Quacks não é um jogo sobre gerenciamento de riscos simplesmente. Quacks é um jogo sobre tensão, alívio e satisfação. Eventualmente "frustração", preferencialmente seguida de uma risada. Já falei, se levar a sério, não é pra você.
É uma linha tênue entre "puxo mais uma?" e "Ah... explodi kkkkkkkk" ou então "UFA, tá, agora eu parei mesmo!".... "puxo mais uma?".
O designer sabe disso tudo, então ele preparou uma série de elementos para tornar a frustração da perda a menor possível. A diferença entre quem verdadeiramente se diverte com esse jogo e quem não quer ver esse jogo nem numa promoção de loja de departamentos está contida na crítica a esses métodos.
"Ah, por que só posso comprar até duas por vez fichas e elas têm que ser de cores diferentes?"
Porque, caso contrário, aquele que teve "mais sorte" vai se destacar muito mais jogando de forma ultra competitiva priorizando certos combos, sua vantagem vai aumentar e as outras pessoas podem se ver desencorajadas a continuar.
"Ah, então porque o primeiro em cada rodada rola um dado e ganha mais bônus?"
Quacks é como uma série de minigames em um grande pacote. Cada ficha que você saca, cada interação vem acompanhada de uma pergunta à medida em que o risco vai ficando cada vez maior: "devo parar por aqui?". Essa pergunta fica cada vez mais rica e interessante à medida em que sua sacola fica mais diversificada. O dado nada mais é do que mais um desses minigames. Agora você tem um incentivo maior para ser o melhor. Você pode não ser o melhor no placar final, mas você foi o cara que rolou o dado. Você ganhou ali, jovem. Você é um campeão. Aqui está sua estrela dourada.
Quando você estoura, não é o fim dos tempos. É só um leve tropeção. Daqueles em que você quase cai, mas pega um embalo, continua na inércia do movimento ainda um pouco desajeitado, mas volta ao passo normal e continua a andar como se nada tivesse acontecido. Ninguém viu.
Muitos criticam que a decisão é óbvia. Se você explode, você tem que decidir entre ganhar pontos ou ganhar dinheiro. No começo do jogo, dinheiro vale mais do que ponto, no final, ponto vale mais do que dinheiro. It's a no brainer. Meu querido jovem, todo jogo que envolve uma certa economia voltada para a fabricação de pontos é assim. Fora que, convenhamos, você precisa de um "estímulo negativo", uma espécie de ameaça, mesmo que branda, para você não ignorar completamente o risco de explodir o pote. Qual é a graça de jogar um jogo se você tem vidas infinitas? Não tem aquela tensão da ameaça, o perigo iminente, a adrenalina. O fato de você poder decidir entre pontos e dinheiro, por mais que a decisão seja mais do que óbvia na maioria dos casos, mesmo não jogando de forma competitiva, é uma mera flexibilidade. Se estivesse estipulado nas regras "no começo você ganha só dinheiro e no final só pontos", teríamos gente reclamando igual, se não mais.
Quacks consegue fazer o que meu deckbuilder favorito (Dominion) não consegue fazer. Com Quacks eu consigo relaxar. Meus amigos de mesa sabem que eu sou o "cara do Dominion", "o cara que jogou mais de mil partidas"... eu tenho um cinturão pra zelar. Quando ganham de mim, é uma euforia generalizada seguida de muitos OOOOOOOOHHH!!!! Com Quacks eu posso comprar aquela ficha idiota porque eu achei bonita e porque sim. Com Dominion eu também "posso" fazer isso, mas no Dominion é frustrante. Não pelo meu histórico competitivo da coisa, mas porque eu sei que a cada volta no deck, hora ou outra aquela carta que é tecnicamente inferior vai aparecer para me lembrar que eu tomei uma decisão equivocada. É tipo um fantasma do natal passado todos os meses do ano.
Em Quacks você decide o "tamanho da sua mão" (a menos que você estoure, mas foi por sua conta em risco e tudo bem, não é o fim do mundo mesmo). Se aquela ficha tosca aparecer, beleza, tudo certo, você continua comprando mais. Ela não conta para a checagem se o caldeirão (Salgueiro) explode. Você não vai sacar aquela ficha laranja e se questionar "ah, podia ter adquirido uma amarela no lugar dessa....". Você simplesmente vai sacar outra e segue o baile.
Pode acontecer de você sacar todas as fichas ruins e estragar sua alegria juvenil numa taca só? Óbvio que sim, mas é tão rapidinho. O jogo só tem nove rodadas. Cada rodada é um jogo novo, totalmente fresh. Dentro daquela sacola você não está se preocupando se a sacola do jovem ao lado tem fichas mais maneiras, você só tem aquele fluxo contínuo de tensão, como se estivesse desarmando uma bomba relógio, "devo sacar outra ou não?", "qual é o fio que eu corto pra desarmar a bomba?". Quacks é um daqueles jogos que fazem sentido ter um número limitado de rodadas e é o tamanho ótimo. Não é longo demais ao ponto de você ficar saturado e a bola de neve da sorte (ou do azar) ficar evidente, mas também não é curto de modo que seja um pocket game efêmero, onde cada partida passa como um suspiro, você joga 10 vezes numa mesma noite e enjoa. Você de fato joga 9 rodadas ou 9 micro jogos de uma vez só, mas há um senso de progressão muito orgânico. Isso também dá muita satisfação além de todas as recompensas que o jogo oferece e os combos.
Mesmo que você não jogue de forma super competitiva, o que seria até um tanto contraditório se tratando da essência family caótica do jogo, sempre que um combo acontece, aquela pecinha foi colocada na hora certa no lugar certo, ah... meu jovem, que satisfação, aspira.
Quacks tem defeitos? Sim, muitos, mas a expressa maioria deles não me incomoda, menos um. Esse defeito pra mim é crucial. Pra falar a verdade, caso não tivesse corrigido esse defeito, provavelmente não estaria escrevendo esse texto hoje. Eu quase vendi o jogo antes mesmo de experimentá-lo por conta disso.
Acontece que as fichas do jogo são bem finas, sem graça e frágeis. A arte é linda e super colorida, mas falta consistência e resistência. Vi muitos relatos no BGG de pessoas dizendo que a tinta das fichas sai depois de poucas jogadas. As fichas ficam encardidas e feias. O próprio Tom Vasel mostrou suas fichas desgastadas no review dele em vídeo. Uma solução bastante cara seria comprar as Geek Bits do BGG por uma enorme bagatela de muitas doletas. Pra piorar a situação, dizem que essas pecinhas de acrílico de luxo também perdem a tinta com o atrito. Eu sou um cara muito fresco com a durabilidade dos componentes dos meus jogos, jamais compraria um jogo legacy destrutivo. A solução que encontrei está nas capsulas de moeda. Mandei importar da China, saiu por pouco menos de 100 reais e chegou em cerca de 1 mês na pandemia sem taxação. Todos os problemas citados anteiormente foram resolvidos e as fichas ficam com uma consistência e um pesinho ótimo. A melhor parte é o barulhinho ao chacoalhar a bag que você não tem só com as fichas originais de papelão.
Finalmente, Quacks não é um jogo barato, não tão fácil de encontrar por aqui e saber que você vai ter que desembolsar mais 100 reais e esperar cerca de um mês pra poder jogar seu jogo com a tranquilidade de quem não vai ter seus componentes danificados tão facilmente é um baita banho de água fria. Por isso, antes de todas as críticas à mecânica do jogo tecidas anteriormente, eu não lhe recomendo Quacks. O jogo é lindo, arte linda, ele proporciona sensações maravilhosas se você estiver disposto a ingressar na zona desse jogo, mas ele não é único e insubstituível. Eu não conheço outros push your luck + bag building, mas não é disso que estou falando.
O fato é que o que me motivou a escrever essa bíblia numa madrugada de quarta pra quinta não foi a sensação de tensão gostosa que esse aspecto roleta russa não letal pode proporcionar. Foi o momento família raro que esse jogo me proporcionou hoje e que será inesquecível, mesmo eu querendo falar sobre ele agora. Esse e outros momentos do tipo podem ser encontrados com qualquer outro jogo, Pega em 6, Código Secreto, etc. Você não precisa de Quacks. Os momentos é você quem faz.
Se você estiver disposto a comprá-lo mesmo assim, com ou sem capsulas de acrílico, com ou sem geek bits, vá adiante, é um ótimo jogo se você se identificou com esse texto, mas reitero, ele certamente não é único nem insubstituível. Os momentos que temos com nossos melhores amigos e família certamente são.
Se cuidem, cuidem daqueles que amam e divirtam-se antes de mais nada, não importa como, o mais importante é a companhia.
Abraço,
Luis Perdomo