A exemplo do que ocorre no mundo, a representatividade é um debate que tem tomado uma evidência cada vez maior no universo dos jogos de tabuleiro. Nesse sentido, podemos citar os diversos eventos digitais que ocorreram na Gen Con 2020 sobre a temática, abordando questões importantes como negritude, racismo, gênero, inclusão, dentre outros (
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Tivemos também, recentemente, o polêmico episódio do bloqueio feito pelo Twitter à conta de Erick M. Lang, um brilhante designer negro e dos mais bem sucedidos da sua geração, que, ao denunciar e defender-se de ataques de contas que disseminavam discriminação, preconceitos e assédio, passaram estas a fazer sistematicamente denúncias vazias para que sua conta fosse bloqueada, o que de fato ocorreu (
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O episódio grotesco foi marcante para o próprio Lang, que decidiu, a partir de 1º de setembro de 2020, deixar o seu cargo de diretor executivo/criativo de game designer na CMON, que ocupava desde março de 2017, para focar seu trabalho na criação de jogos independentes e também se envolver mais diretamente com o ativismo nos jogos de tabuleiro, notadamente, relacionado ao movimento do Black Lives Matter (
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Em comentário à um dos tweets de Lang, Elizabeth Hargrave, a talentosa designer do multipremiado Wingspan, publicou, inclusive, um interessante post no blog da Stonemaier Games, chamado “Inclusão, diversidade e representação nos jogos de tabuleiro e muito mais”, em que narra as dificuldades de inserção, representatividade, invisibilidade e produtividade de pessoas que não sejam homens brancos no universo dos jogos de tabuleiro (
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Hargrave apresenta dados bem concretos sobre o assunto, no sentido de que, por exemplo, entre os 100 melhores jogos no BGG em 2018, 94% dos designers eram homens brancos, e que, quando você conta todos os números na arte da capa, 46% eram claramente homens brancos, 20% eram animais ou alienígenas, com todas as demais pessoas restritas ao último terço (5).
Sobre Wingspan, representatividade e a questão de gênero, a designer norte-americana ainda assinala o seguinte: “
Para cada comentarista em posts como este que diz: ‘Não vejo o gênero/raça dos designers de jogos de tabuleiro’, provavelmente já ouvi de 10 mulheres ou pais que querem me dizer o quão importante Wingspan é para eles, apenas pelos nomes na frente da caixa” (
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Toda esta introdução serve para destacar a importância e atualidade de ‘Afro-Históricos: Jogo de personalidades negras’, um card game desenvolvido e lançado de forma independente pela designer Polianna Silva. O jogo é indicado para 2 a 4 jogadores(as), a partir de 7 anos de idade, com tempo de jogo de cerca de 15 minutos. As ilustrações foram assinadas por José David Medeiros e o projeto foi selecionado e apoiado pelo Rumos Itaú Cultural 2017-2018 (
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O jogo resulta do trabalho de conclusão de curso de Polianna Silva na faculdade de Design da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia e se propõe a divulgar, de forma lúdica, as personalidades negras que contribuíram para a história do país e assim, fortalecer a representação positiva dos negros na sociedade brasileira, conforme descrito na cartilha que integra o lançamento.
Segundo a designer, o seu público alvo é o infantil e a juventude negra, tendo por objetivo “
permiti-los enxergar seus assemelhados étnicos por uma perspectiva positiva, representando nas cartas engenheiros, geógrafos, médicos, escritores dentre outras áreas de conhecimento, para mostrar que o negro não é intelectualmente inferior como afirma o racismo científico e assim contribuir com o fortalecimento da sua identidade racial e um possível aumento da sua autoestima” (
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‘Afro-Históricos’ pode ser entendido enquanto pluritemático, pois, além da cultura afro-brasileira, explora o conteúdo de diversas disciplinas, como história, literatura, política e ciências, e, muito embora, a narrativa não se faça presente enquanto estrutura do jogo, os materiais suplementares destacam as narrativas de vida de 20 personalidades negras representadas nas cartas, dentre outras.
Uma das minhas cartas prediletas é a do imortal Machado de Assis, o escritor negro internacionalmente reverenciado, fundador da Academia Brasileira de Letras e tido por muitos críticos como o maior nome da literatura do Brasil de todos os tempos e um dos maiores da língua portuguesa (
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Sobre os aspectos técnicos, podemos destacar que os componentes são alocados em uma pequena caixa de material cartonado e trazem, além das 20 cartas de personalidades negras e 1 dado de seis faces personalizado, 2 materiais suplementares interessantes: 1 mapa e 1 cartilha com diversas informações históricas, geográficas, científicas, etc., sobre as personalidades retratadas nas cartas, inventores negros, racismo, representatividade e cultura negra, dentre outros pontos.
A cartilha, além das informações suplementares acima citadas, serve de manual e apresentada as regras do jogo. As regras são descritas também num folheto à parte, o que pode ajudar os(as) jogadores(as) durante a partida. Quanto à sua mecânica, ‘Afro-Históricos’ é um pequeno jogo de vazas/truque, ao estilo de Super Trunfo e outros do gênero, em que os jogadores disputam os turnos com o objetivo de esvaziar as suas mãos.
No entanto, temos uma inovação quanto à escolha do critério de comparação entre as cartas, já que o mesmo é definido pela rolagem do dado, em que as cores de cada um dos seus seis lados correspondem à um dos atributos presentes nas cartas de personalidades negras. Assim, os(as) jogadores(as) escolhem uma carta da mão com a maior numeração (representada por estrelas) daquele atributo para comparação.
Por conseguinte, definido o(a) vencedor(a) da rodada, por ter escolhido a carta com o maior atributo, o(a) mesmo(a) deve, apenas ele(a), descartar a sua carta e uma nova rodada se inicia. Os empates são decididos em favor daquele(a) que tiver um segundo atributo mais alto, conforme uma nova rolagem do dado. Enfim, ganha o jogo quem esvaziar as mãos primeiro.
Um detalhe temático importante é que a designer do jogo chamou a atenção, no manual, para o fato de que a distribuição desigual do número de estrelas em cada um dos atributos dos personagens (estratégia, empoderamento, carisma, liderança, autonomia e força) ocorreu de maneira aleatória e não tem relação com a narrativa de vida das personalidades retratadas nas cartas.
Enfim, apesar de ser um jogo mecanicamente simples e da baixa rejogabilidade, ‘Afro-Históricos’ chama a atenção, para além do seu caráter lúdico, por configurar-se enquanto importante ferramenta de combate ao racismo e valorização da história das pessoas negras no país. Além disso, pela possibilidade de ser jogado por crianças, utilizado como material didático, pedagógico e/ou educativo, apresentar um bom custo benefício e ser um jogo de cartas feito na Bahia, Estado onde, infelizmente, ainda são raros os lançamentos de jogos autorais.
Referências