Resenha de wargame sem contexto histórico é biscoito sem recheio, é cerveja sem espuma. Aí vão meus tradicionais dois (“um pouco mais”) parágrafos sobre a história por trás do jogo Sekigahara: The Unification of Japan, nosso convidado especial do episódio de hoje.
Entre 1467 e 1615, o Japão atravessou um século e meio de pancadaria séria. Essa fase da história japonesa é chamada de Sengoku Jidai, ou “o Período dos Estados Beligerantes”. Foram 150 anos de treta. É um dos períodos mais interessantes da história mundial, com episódios como a Guerra de Onin, o cerco do castelo de Inabayama e o massacre de Enryaku-ji, e eu recomendo fortemente que você se informe mais sobre o assunto (vou colocar os links para uma série de vídeos no final do post).
Com um imperador ornamental que não mandava nem na própria sombra e um xogum (uma espécie de supergeneral que efetivamente governava o país) de pulso fraco, o Japão de meados do século XV estava pra jogo. Eu, você, seu pai, minha sogra, o cachorro do vizinho, todo mundo queria sentar na cadeira do xogum em Quioto, então a capital japonesa. O Japão virou um imenso campo de batalha. O primeiro grande protagonista do período foi Oda Nobunaga, um senhor de terras que venceu batalhas importantes e conseguiu conquistar um bom punhado de territórios (tanto que os historiadores o consideram o primeiro “Grande Unificador” do Japão). Um dos aliados de Nobunaga era o jovem daimiô Matsudaira Motoyasu, que anos depois mudaria seu nome para Tokugawa Ieyasu.
"Um velho sábio japonês uma vez disse..."
Em 1582, Oda é traído e morto por um de seus generais, Akechi Mitsuhide, que toma Quioto em seguida, mas por pouco tempo: a capital é retomada, apenas 13 dias depois da morte de Oda, por Toyotomi Hideyoshi – homem de origem extremamente humilde, camponês de nascença, que começou sua carreira no serviço público como carregador de chinelos (literalmente, o trabalho dele era carregar os chinelos) de Oda Nobunaga, mas que foi subindo na admiração do patrão e se tornou um dos grandes diplomatas e administradores do clã Oda. Toyotomi despacha o traíra Mitsuhide desta pra melhor, assume o poder em nome do herdeiro de Oda – um piá de dois anos, que nunca chegará ao poder – e consolida as conquistas de Oda ao longo dos anos seguintes. Toyotomi é o segundo “Grande Unificador” do Japão, e muitos historiadores o consideram o primeiro governante a efetivamente liderar um Japão unificado, por conta das reformas administrativas e tributárias que ele impôs a praticamente todo o país.
Toyotomi Hideyoshi, unificador 2.0 do Japão
Em 1598, Toyotomi morre de morte natural, com um herdeiro de apenas cinco anos de idade, Toyotomi Hideyori, jovem demais pra assumir a posição do pai. A essa altura do campeonato, Tokugawa Ieyasu – um dos cinco regentes responsáveis por tocar o país até Hideyori crescer, veterano das guerras de poder de Oda Nobunaga – havia se tornado o homem mais rico do Japão, à frente de um exército fresquinho que havia sido poupado da campanha desastrosa que Toyotomi havia feito na Coreia.
Pela história contada até aqui, já deu pra perceber que ninguém no Japão daquela época ia ficar esquentando cadeira pra um pirralho. As conspirações começaram. Uns achavam que Tokugawa deveria assumir logo como xogum; outros não queriam dar esse poder todo de bandeja pra ele. Entre os últimos estava Ishida Mitsunari, um administrador de Toyotomi que tentou se aproveitar desse vácuo de poder pra diminuir a influência crescente de Tokugawa sobre o governo. Esquema vai, esquema vem, conspiração aqui, conspiração ali, tudo convergiu para a batalha de Sekigahara, em 1600. E agora, meus três fieis e incansáveis leitores que chegaram até aqui, finalmente vamos tratar de Sekigahara, o jogo.
"Acorda, gente, ele vai finalmente falar do jogo."
Sekigahara é um jogo de guerra sobre a batalha homônima, uma das mais importantes da história do Japão, que decidiu os destinos do país pelos próximos dois séculos e meio. Um jogador representa Ishida Mitsunari e o outro, Tokugawa Ieyasu. Os líderes e as tropas que se aliam a cada lado são representados por blocos de madeira nas cores amarela e preta, e o tabuleiro representa a região central da ilha de Honshu, a maior do arquipélago japonês. O jogo é lindo.
Boniteza em detalhe (crédito: usuário duartec, BGG)
Sekigahara, como boa parte dos wargames com blocos, usa o conceito de fog of war. A ideia é que as forças em conflito não conheciam precisamente o poderio do inimigo. No jogo, isso é simulado pelo fato de que a identidade de cada bloco só é conhecida pelo lado que o controla; os blocos só são revelados ao adversário à medida que vão sendo ativados durante os combates.
Além de ser um jogo de blocos, Sekigahara é um jogo de cartas. As cartas são tudo: elas definem a ordem do turno, elas pagam pelo movimento das tropas, elas recrutam novas tropas pro tabuleiro, elas ativam as tropas durante o combate. Cada carta é vinculada a um dos clãs em jogo, e só pode ativar aquele clã; não adianta nada ter um stack intimidador com 10 blocos empilhados, se você não tem as cartas certas pra ativá-los. Mas seu adversário não sabe que cartas você tem, nem o poderio que você consegue ativar em combate; essa incerteza permanente sobre a força inimiga é uma das principais fontes de tensão em Sekigahara.
Não confie em nenhum deles!
Um tipo de carta é especial: são as cartas de Loyalty Challenge. Na batalha de Sekigahara, a traição do clã Kobayakawa EM PLENO CAMPO DE BATALHA definiu a guerra em favor dos Tokugawa. Essas alianças frouxas e essa ameaça constante de traição são representadas no jogo por cartas que podem trazer um bloco inimigo pra lutar pelo seu lado até o fim daquele combate, forçando os jogadores a terem na manga cartas que impedem essas deserções. Pra quem quiser um jogo com menos incerteza, existe a opção de jogar sem essas cartas.
O jogo dura sete rodadas, mas pode acabar antes disso se Ishida eliminar o bloco que representa Tokugawa Ieyasu, se Tokugawa eliminar o bloco que representa Ishida Mitsunari, ou se Tokugawa eliminar o disco amarelo que fica em Osaka, uma representação de Toyotomi Hideyori, o jovem herdeiro de Hideyoshi – o que, a bem da verdade, estende o tema do jogo até 1615, ano do cerco do Castelo de Osaka, que acaba sendo naturalmente reproduzido em boa parte das partidas.
Na história, os Tokugawa chegaram ao xogunato em 1603 e mantiveram o posto até 1868, quando o imperador Meiji botou o último Tokugawa pra correr e colocou fim ao regime dos xoguns. Fica o desafio de reescrever a história para o jogador que se aventurar como Ishida Mitsunaga neste jogo elegante e leve de regras do designer Matt Calkins, publicado pela editora GMT e disponível online gratuitamente tanto na plataforma Vassal quanto no site Yucata. Pra conhecer em mais detalhes a história do Sengoku Jidai, recomendo os seis vídeos do canal Extra Credits sobre o período:
Parabéns, ficou sensacional. Saber esse contexto faz toda diferença. Você considera ele como um dos melhores introdutórios aos jogos de blocos como muitos dizem?
toledoesilva::Parabéns, ficou sensacional. Saber esse contexto faz toda diferença. Você considera ele como um dos melhores introdutórios aos jogos de blocos como muitos dizem?
É um jogo bastante indicado pra conhecer esse sistema, sim, pela simplicidade das regras e a elegância geral do design, além de ser mais fácil de encontrar do que clássicos da Columbia como Hammer of the Scots e Rommel in the Desert. Estar disponível no Yucata também ajuda, a implementação deles é muito boa.
Ruodrik::Pô, contou essa história maravilhosa e nem pra pelo menos citar Sanada Yukimura?
Resumir 150 anos de história em um texto de 5 minutos é dureza! Não dá pra colocar todo mundo. Além do Sanada, ficaram de fora Hattori Hanzo, Takeda Shingen, os monges guerreiros Ikko-ikki, Miyamoto Musashi e muitos outros mais... fica a dica pro pessoal pesquisar mais sobre esse período tão interessante!
