Primeiras Impressões
Para quem jogava os livros da coleção “Escolha sua aventura”, nos idos dos anos 80/90, deve se lembrar como eram fazer escolhas impossíveis. Consigo voltar facilmente para aquela menininha de 9 anos, com o “A Casa Mal-Assombrada” na mão, não resistindo a curiosidade de seguir, mas com medo terrível de encarar a escolha. Esse é o exato sentimento que voltei a ter quando, 10 anos depois, fui jogar RPG e, 27 anos depois, Tainted Grail.
Em uma história longa, de 15 capítulos, Tainted Grail é um jogo cooperativo (ou solo) de até 4 jogadores, lançado no Kickstarter pela editora Awaken Realms, que já lançou os bem-avaliados: Lords of Hellas, This War of Mine e Nemesis.
O jogo tem o que mais gosto no RPG: encontros de combate e diplomacia, corrida contra o tempo, magia, saques e subir de nível (muitas vezes!); e, claro, a sensação de pertencer a um grupo de aventureiros desajustados que tem uma missão única e dependem cegamente do outro. Tudo isso com escolhas individuais em uma narrativa bem contada.
Análise de Primeiras Impressões (sem spoilers):
Escolha! Já se passaram quatro dias que você e seus companheiros estão vagando por uma região abandonada de Avalon. O cheiro de putrefação e o forte nevoeiro ficam mais intensos, e você sabe o que isso significa: em horas toda a região será engolida pela morte e escuridão. Com o cantil quase ao fim e o corpo cedendo ao cansaço, você pode entrar na floresta e caçar… mas, exausto como está, essa luta pode te destruir ou te dar comida ou a magia que precisa para trazer a luz de volta a região – e Kamelot agora está tão perto. A seu lado, seu amigo está mutilado e desmaiado e você pode gastar o resto de sua energia para salvá-lo. E agora? Devo descansar, salvá-lo ou tentar caçar?
Narrativa – o jogo é isso: explorar as profundezas de uma Avalon destruída e abandonada pelo rei Arthur, na tentativa improvável de salvá-la da escuridão. O desenvolvimento é só um: explorar lugares, interagir com personagens, fazer combates e sobreviver. Então, o que realmente avança é a história. Por enquanto, em mais ou menos 4h de jogo (estamos no 2º capítulo), a narrativa teve uma boa evolução e gerou um leve vício, mas separou o grupo. Como o livro que narra encontros é um só, estamos gastando muito tempo (downtime) e isso deixa o jogo bem paralisado e, para agilizar, nem sempre compartilhamos tudo – comprometendo o que deveria ser a essência do jogo: a história. Além disso, as escolhas individuais dependem muito do que já foi descoberto, então as vezes não existe muita escolha de fato. Você faz o que dá, então pega o que precisa em outro lugar e volta para fazer outra opção.
Personagens – São heróis improváveis, pessoas normais, inaptas para o desafio e com traumas, vícios, maldições e feridas incuráveis que você terá que lidar por toda campanha. No jogo base temos: o Druida, o Ferreiro, a Curandeira, e o Agricultor. Eles interagem bem, dado que cada um sabe trazer recursos a seu modo, e são balanceados entre si. A história individual é contada aos poucos, então só temos dicas superficiais por enquanto.
Encontros – Como um bom RPG, você não ficou na aventura pelo bolo do final, certo? Você quer – e merece! – muitos itens e outras recompensas. Aqui elas são possíveis em todo encontro e lugar e mesmo assim nunca parece demais. São 2 tipos de Encontro: Combate e Diplomacia. A solução de mecânica foi muito bem resolvida e é esperta! Você tem um deck de cartas e vai resolvendo em uma longa sequência de eventos que podem facilmente se transformar numa bela narrativa: de repente, você caiu numa emboscada de um forte guardião (nível 8). Para o dano inicial ele diz que você precisa ter atributo Praticabilidade. Você compra três cartas e monta sua melhor sequência: usando uma faca (carta), você consegue dar um de dano e, aguentando a dor (outra carta, que te dá ação de repetir) você consegue dar outro golpe usando toda sua Agressão (atributo), desferindo +3 de ferimento. Já bastante ferido ele revida (de acordo com o dano que você deu) e agora é sua vez de contra-atacar. Você analisa suas cartas, que pedem Coragem – atributo que você não tem – e seus ferimentos estão graves, então decide que é melhor fugir, mesmo que tomando um último ataque de oportunidade. Fim do Encontro. Poderia durar uma longa sequência de cartas porque muitos oponentes se recuperam. As recompensas são: Comida, Riqueza, Reputação, Magia – usadas tanto para sobreviver no dia a dia, como ativar menires (que previnem o sumiço de toda região) e Experiência, usada para subir de nível nos atributos. Nos encontros de Diplomacia os atributos de negociação são: Empatia, Alerta e Espiritualidade. O que notei é que enquanto somos fracos, sem dúvida é melhor ir com seus companheiros. O deck da Ailei, que é a curandeira, definitivamente não é para combate!
Arte – pense rápido: como você acha que é retratada a única personagem feminina do grupo? Pensou barriga (chapada) de fora, pernas de fora, decotão, cabelão no rosto (“loirona”), olhar penetrante e boca carnuda e vermelha? Acertou! Preguiça disso…. Mais uma de biquíni, embora, devo admitir, está longe se der tão ruim quanto vários personagens de HQ com seus formatos impossíveis. Feito esse comentário necessário, a arte do jogo, desde personagens, como cartas dos encontros e até a caixa é toda esfumaçada e com cores opacas, o que nos remete imediatamente as brumas escuras de Avalon. É realmente incrível, feito com extrema competência e a impressão é realmente boa. Além disso, o cenário por onde andamos é construído por cartas que abrem novas regiões e a arte delas, predominantemente verde escuro, mas com detalhes como castelo, mercado, fazenda, trazem um efeito realmente realista quando montadas juntas. A carta também sinaliza se você terá sonhos (ou pesadelos) e outras coisas importantes e mesmo com todas as informações que são visíveis, não compromete o todo.
Componentes – As miniaturas (uma de cada personagem + 3 “menires”), embora poucas (para mais minis, teria que dar upgrade no Kickstarter), são muito bem acabadas e mesmo sem pintura, são únicas. Demais: dados, moedas de tempo, mapa e ficha e board dos personagens são de alta qualidade. O board individual, inclusive, tem espaço em relevo para cada componente! Além de deixar mais organizado, torna o jogo mais gostoso de jogar. Vale ressaltar que a moeda de tempo é linda, mas ela dá uma das informações mais importantes do jogo e é muito ruim de visualizar. Tiramos de “dentro” dos menires (lugar original) para poder jogar, e mesmo assim ainda não está bom. Ah, o jogo vem com um Almanaque de Avalon que é um livro ilustrado (item surpresa do KS).
Impressões Gerais (até então): Fazer parte da história de Avalon e seus personagens emblemáticos é, para mim, a parte mais legal. Junte isso a encontros espertos, “heróis” interessantes e arte e minis fantásticas e voilá… temos um belíssimo jogo!
Aliás, ele tem um tutorial que deveria ser regra para jogos assim: pegamos mecânicas muito fácil e rapidamente.
No entanto, me preocupa o downtime por existir só um livro e a desconexão entre os players que isso gerou. Além disso a mecânica de “sobrevivência” é muito cruel porque você compromete o desenvolvimento da história para arranjar comida OU recurso para o Menir – cuja magia que previne a escuridão da região dura muito pouco tempo. Nós morremos e tivemos que jogar todo capítulo de novo. Não foi legal…
Faremos alguns ajustes, como compartilhar mais a narrativa, fazer mais encontros juntos e aumentar o tempo que a região fica “acesa” pelos menires (house rule que muitas pessoas estão usando). Ah, e eles estão prometendo um app do livro – o que irá facilitar muito!
Volto para contar as impressões finais
Mais informações:
Avaliação: nota 8,8 no BGG. Ainda não conseguimos formar nota do grupo.
Onde comprar: Campanha Kickstarter encerrou e ainda vão chegar as duas expansões em junho/2020, totalizando incríveis 90-120h de jogo. O jeito é:
1) pedir para um amigo que já comprou, pois ele pode dar um late pledge;
2) esperar a venda nas lojas;
3) esperar usados, já que é um jogo que não tem rejogabilidade (diz que tem, mas poucos vão querer repetir 40h do mesmo jogo-história…).
Valor: Jogo de alto desembolso, mas não chega a Gloomhaven. O KS base +2 expansões saíram por US$90 (+ frete + imposto – que mais que dobram o valor). Não espere pagar menos de R$800 num usado, por enquanto…
Tempo de jogo: Promete entregar 30 a 40h de jogo (que deve cair se fizerem o app)
Extra: tem também um jogo no Steam, que se passa no mesmo cenário:
https://store.steampowered.com/agecheck/app/1199030/