Na virada do século XIX para o século XX, surgem nos EUA, especialmente em Nova York, os grandes edifícios, consequentemente, os arranha-céus. Tal escalada rumo às nuvens culminaria, nos anos 1970, com a inauguração das Torres Gêmeas, postas abaixo em 2001, no atentado terrorista que sepultou o último cadinho de inocência do mundo e que, doravante, ficaria marcado pelo epíteto “11 de Setembro”, revivido anualmente por toda a mídia e que rendeu muito dissabor entre os EUA e outras nações, culminando com desastrosas ações bélicas e, por conseguinte, mais terror.
Nesse ínterim, três filmes e pelo menos um importante jogo de tabuleiro, baseados nessa moderna “arquitetura do exagero”, vieram a público: o “King Kong” (1931), cujo desfecho é no Empire State; outro “King Kong” (1976), agora nas Torres Gêmeas e que, por causa dos terroristas, ficou anos fora de catálogo; outro King Kong (2005), remake do primeiro, mas anódino e cheio de falhas, e o jogo “Manhattan” (1994), de Andreas Seyfarth, o mesmo criador de “Puerto Rico”. Evidentemente que este, em popularidade, ofusca aquele, que é, no entanto, um excelente jogo e mereceu recentemente uma nova edição, com nova arte, mais vistosa e colorida, agora sob o peculiar traço da artista Jacqui Davis.

Nos dois primeiro filmes citados, o macaco-gigante chega à cúpula dos referidos prédios e é abatido; a mocinha chora, e o público se emociona, lamentando a morte daquela fera apaixonada pela bela. No jogo “Manhattan”, nada de trágico acontece: é um jogo econômico, de escalada da construção civil, que põe os jogadores à frente de uma empreiteira em expansão horizontal e vertical numa das cidades mais badaladas do mundo. Analisado friamente, parece um jogo abstrato; mas, quando mergulhamos no fluxo do jogo, sentimo-nos realmente responsáveis por construir e nos expandir numa competição sem limites tanto rumo ao céu quanto ao horizonte de uma grande metrópole.

Um dos aspectos mais impressionantes desse jogo é a sua economia de meios e regras. É preciso deixar claro que os eurogames ainda não existiam, ou pelo menos não desfrutavam desta denominação. Costuma-se demarcar o aparecimento dos eurogames com a chegada de três jogos célebres, pelo menos: Catan (1995: gestão de mão, construção de rotas, negociação, rolagem de dados, tabuleiro modular), El Grande (1995: ação simultânea, gestão de mão, controle e influência de área, leilão, memória, movimento de área, seleção de cartas) e Carcassonne (2000: colocação de peças, controle e influência de área, memória, construção de rotas). Manhattan surge um ano antes de Catan e é possível notar, na sua concepção, características de jogos anteriores aos eurogames, como a busca de uma efetiva originalidade em detrimento da repetição, tão comum atualmente, muito embora seja possível, por virtuosismo, criar algo novo a partir do que já existe, o que é, afinal, um mérito.
Manhattan compreende um tabuleiro, cartas de terreno e peças de construção de edifícios em quatro tamanhos diferentes. As cartas determinam o terreno onde se construir, conforme o ponto de vista do jogador. O tamanho do prédio, tanto no início quanto no fim, fica a critério do jogador, de acordo com a sua estratégia, sua ambição e a orientação das regras. É um jogo muito simples, facílimo de aprender, mas de competição acirrada, pois ninguém é proprietário dos prédios, que podem ser surrupiados pelos outros jogadores a qualquer momento. As estratégias diferem: você pode optar por se expandir verticalmente (andar por andar) ou horizontalmente (conquistando mais terrenos), aspecto que simula com grande efeito visual o desenvolvimento de uma cidade moderna. Pode ser mais agressivo ou mais contido. Pode investir nos seus próprios prédios ou se guardar para abiscoitar os prédios alheios. É um jogo muito orgânico, que muda a cada rodada ou se conserva quase em suspensão, como se os jogadores se estudassem em busca de uma cartada final, incontornável. Numa das partidas que joguei, um dos prédios logo atingiu a altura de 14 andares, constituindo-se no mais alto em jogo e que conferia ao seu proprietário 3 pontos de vitória ao fim de cada rodada, até que algum jogador legalmente tentasse tomá-lo…

“Ir para cima sempre mais e mais” era o lema da construção civil americana no século XX. Mas aqui, no jogo, não é bem assim: equilibrar-se nas duas frentes básicas é mais importante, se pretendemos ganhar. E esse é um dos desafios de Manhattan, conter a empolgação pelo visual e não construir freneticamente, rumo ao céu, como o fizeram as construtoras americanas. Manhattan é um jogo, sim, mas em tudo baseado no que a realidade nos impõe. “Nem muito nem pouco”, “nem 8 nem 80” são ditados que não perdem força e nos chamam a atenção para o fato de que é preciso adotar cautela e exercitar mais a consciência. Nesse aspecto, bem como em outros, Manhattan é um excelente exercício de equilíbrio, e que nos remete ao maravilhoso ensaio do franco-argelino Albert Camus, “O mito de Sísifo” (Rio de Janeiro: Guanabara, 1989): “não existe punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”. Muito do que fizermos em Manhattan, e que podemos chamar de trabalho, poderá resultar em perdas ou frustração, se não nos guiarmos com prudência, contrapesando arrojo e contenção.
Em Manhattan, devemos jogar para construir e construir para vencer. Tudo o mais é excesso, exagero ou frenesi inútil. De entropia o Universo está cheio o suficiente. Não aumentemos o que já é pleno.
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas, controle de área e gestão de mão.
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