Este ano estou completando dez anos no hobby. Tudo começou em 2009, quando após ouvir falar desses tais "jogos modernos" por uma amiga resolvi comprar uma edição já bem usada do
Tigris & Euphrates.
De lá pra cá joguei mais de duzentos jogos, e obviamente ao longo do tempo fui descobrindo do que eu gostava mais e menos em jogos de tabuleiro, e tentando reconhecer padrões.
Entre as coisas que me interessam são jogos em que o conceito de posse é pouco rígido. Não por acaso meus atuais jogos nota 10 são ainda o próprio
Tigris & Euphrates, em que jogadores podem compartilhar reinos (desde que tenham líderes de tipo diferente) entre si,
Imperial e
Chicago Express, jogos com a mecânica de controle acionário - em Imperial "manda" no país o jogador que mais tem títulos comprados dele, em
Chicago Express até mesmo "acionistas minoritários" podem operar empresas de que tenham ações.
Mas há outra coisa que eu realmente admiro em jogos de tabuleiro - os jogos serem determinados pelo que os jogadores fazem. Pode parecer óbvio, mas não é: não são poucos os jogos em que as estratégias meio que já são definidas, ou que há muito mais otimização individual que ação e reação para o que os outros jogadores fazem, e que a interação às vezes se resume a bloquear o que outro jogador pode fazer depois de você.
Container é o contrário desses jogos.
Tendo dito isso tudo, do que se trata então esse jogo?
Container simula uma economia em três níveis, e quando eu falo em "simular uma economia" estou me referindo realmente a todos os jogadores estarem conectados por relações de compra e venda. Sei que existem jogos econômicos baseados em "montar sua maquininha" para ganhar dinheiro de forma mais eficiente que os outros, mas aqui definitivamente não é o caso: é impossível jogar sozinho.
O primeiro nível é o da produção: ao decidir colocar suas máquinas para rodar, o jogador paga $1 pro jogador da direita e produz contêineres de acordo com a quantidade e as cores de suas máquinas. Os contêineres recém produzidos são então colocados na sua área de produção, que tem preços distintos. É quem produz que escolhe quanto cada contêiner vai custar.
O segundo nível é o dos armazéns do porto. Se um jogador decide comprar a produção de outro (nao é possível comprar sua propria produção), ele paga ao jogador o valor que ele estipulou para seus contêineres (e ninguém pode se recusar a vender - lembre-se que quem produziu é que escolheu por quanto está vendendo) e os coloca nos armazéns do porto, que também tem áreas com precos distintos: aqui o jogador define quanto custarão os contêiners para quem comprá-los via barco.
As máquinas na parte inferior da foto produzem os containers de sua cor que estão logo acima (o jogador escolheu vender os dois por $3 cada). Ele possui também dois armazéns, o que permite comprar a produção de outros jogadores e ter até dois containers nos armazéns do porto, na parte superior da foto: ele está vendendo um a $3 e outro a $4, que podem ser comprados pelo navio amarelo que atracou em seu porto. (Foto: richardsgamepack)
O último nível da economia então é um pick-up-and-deliver: ao atracar nos portos dos outros jogadores (novamente não é permitido atracar em seu próprio porto) pode-se comprar contêineres pelo preço estipulado anteriormente pelo vendedor e colocá-los no seu barco, onde cabem até cinco contêineres. Mas o jogador não precisa esperar completar a capacidade do barco - a qualquer momento ele pode ir até a ilha estrangeira com ele, o que dispara um leilão. Cada jogador da um lance escondido por toda a carga daquele barco, e todos revelam os valores simultaneamente.
É nessa fase que há a única possibilidade de "jogar consigo mesmo". Quem vende a carga do barco no leilão tem duas opções: ou aceita o valor mais alto ofertado (e aí os contêineres vão pra área do comprador na ilha estrangeira) e recebe o mesmo valor do banco como subsídio, ou pode se recusar a vender, mas aí deve pagar o valor do lance mais alto para o banco para ficar com a carga do próprio barco. Veja que apesar de haver uma forma de ser "egoísta" no jogo, ela é altamente desencorajada, pois na prática o vendedor fica com 3x menos dinheiro ao recusar uma venda. Pior: fazendo isso ele impede a entrada de dinheiro na economia (e no começo do jogo é desejável que os jogadores queiram que os outros tenham dinheiro - assim todos vão poder competir entre si para comprar os seus produtos e você faz mais dinheiro ainda!).
Finalmente, os jogadores podem também investir em infraestrutura, comprando novas máquinas ou novos depósitos, que vão ficando cada vez mais caros. E sendo um jogo econômico, há também a possibilidade de contrair um empréstimo: isso não conta como ação, dá $10 de imediato ao jogador, mas enquanto ele não quitar a divida, paga $1 para cada empréstimo contraído (cada jogador pode ter até dois) antes de começar sua vez.
Tudo que eu escrevi aí em cima foi de memória, depois de apenas quatro partidas (esqueci uma regra importante quando fui jogar pela segunda vez - agora não erro mais), o que mostra o quanto o jogo é simples em relação às regras.
E aí está o que faz desse jogo algo tão especial: o que é possível fazer com esse pequeno conjunto de regras, em que tudo emerge da interação entre os jogadores. Interação que pode inclusive ser positiva: no começo do jogo, como falei, é ate interessante para todo mundo que haja mais dinheiro na economia, daí valer bem mais a pena dar bons lances nos primeiros barcos que chegam à ilha estrangeira e vender aos outros jogadores ao invés de cobrir o maior lance (o que tira dinheiro do jogo) - mais dinheiro na mão dos outros significa que mais gente vai poder comprar seus contêineres, e o segredo do jogo é saber como equilibrar tudo isso para terminar com mais dinheiro. Sim, a condição de vitoria é também simplérrima: quem tiver mais dinheiro ganha. O resto do jogo se trata apenas de como eles manipulam essas poucas regras a seu favor dependendo da situação e do que os outros estou fazendo: coisas como "vou aproveitar que por enquanto eu sou o único que produz contêiner marrom e colocar o preço lá em cima"; "ih, o fulano está vendendo os contêiners dele a $2, vou vender os meus por $1 mesmo", "opa, vou mandar meu barco no porto do fulano que aí completo um carregamento com todas as cores", e por aí vai.
Não bastassem essas regras que forçam os jogadores a entrelaçarem todas suas relações econômicas, há também um mecanismo que força a variedade da produção: no começo do jogo, cada jogador recebe uma carta que diz quanto vale cada contêiner nas cinco diferentes cores. Os valores vão de 2 a 10, são diferentes para cada jogador (forçando o jogo a fazer com que cada um tenha mais interesse em que circulem cores diferentes), e uma das cores tem dois valores possíveis (5 ou 10). Se o jogador conseguiu juntar contêineres das cinco cores diferentes, aquela cor vale 10, do contrário vale cinco. Ah, e cada jogador descarta os contêineres da cor que mais comprou ao longo do jogo são aqueles produtos que de tanta oferta perderam o valor.
Para o jogador com essa carta, os contêineres bege valem $2, os laranja $4 e assim por diante. O preto vale $10 se ele conseguiu exportar todas as cinco cores, $5 caso contrário. Foto: Firepigeon
Sou um fã inveterado do clássico Arte Moderna do Knizia, e uma das coisas que me fez ir atrás do jogo Chicago Express (hoje um dos meus favoritos de todos os tempos), foi um comentário que li de um usuário do BGG que costuma ter gosto bem parecido com o meu que o descreveu assim:
é como jogar algo como Arte Moderna - o jogo é todo baseado em manipular os incentivos dos outros jogadores para seu próprio benefício.
De certa forma, a mesma ideia se aplica ao Container, e não é nenhuma coincidência que comigo esse jogo foi paixão à primeira partida. É mais ou menos como um Arte Moderna em que ao invés de você ganhar uma mão de quadros no início de cada rodada e fazer dinheiro seja vendendo bem seus próprios quadros ou comprando aqueles que valorizam bem, você é responsável por produzir, vender, comprar e exportar seus produtos, incluindo também um agradável elemento de transporte - o barco que precisa ir dos portos ao mar aberto e de lá até a ilha estrangeira, e fazer o caminho de volta para novas compras e exportações.
Minhas primeiras quatro partidas foram em quatro pessoas, o que já é otimo, mas em tudo que é fórum é praticamente consenso que Container é daqueles jogos "quanto mais gente melhor", sendo o numero máximo de 5 então a contagem ideal. Na mais recente partida joguei com mesa cheia, e de fato fica ainda mais interessante, pela maior variabilidade da economia, com a vantagem de não ficar muito mais longo (mesmo com gente jogando pela primeira vez o jogo durou pouco mais de duas horas - certamente durará menos que isso com mais experiência, e com quatro é perfeitamente possível jogar em pouco mais de uma hora). Justamente o tipo de jogo que eu mais gosto - aquele que consegue permitir variabilidade incrível com bem pouco, e que é uma das maiores expressões de jogo totalmente conduzido pelos seus próprios jogadores, e não por caminhos pré-definidos. Atualmente estou dando 9.5 pra ele. Mas, sinceramente, já ando com a desconfiança de que vai ser o próximo jogo que darei nota 10.