Geral
Tapestry é descrito por seu designer como um “jogo de civilização competitivo e assimétrico de média complexidade”, nele os jogadores assumem o papel de civilizações com diferentes aptidões e realizam pequenos turnos cujas ações principais são as de:
(1) explorar o mundo ao redor de seus territórios e dele extrair recursos;
(2) conquistar regiões desocupadas ou anteriormente dominadas pelos adversários;
(3) inventar conceitos tecnológicos e evoluir tecnologias;
(4) investir em avanços científicos que refletirão nas outras ações e;
(5) levar sua civilização a uma nova era, em que novas habilidades especiais surgirão.
As ações dos jogadores irão definir as histórias das civilizações e quando todas chegarem ao seu ápice (ou ocaso), depois de 5 eras, o jogo acaba e aquele jogador com a mais poderosa civilização será o vencedor, tudo isso em uma duração média de 30 a 45 minutos por jogador.
Tema e mecânicas (ou: isso é um jogo de civilização?)
A descrição acima até poderia estar na parte de trás da caixa de Tapestry (e eu não saberia dizer, pois como 98% dos jogadores habituais eu sequer olho para ela) e pode ser muito encantadora.
Acredito que grande parte dos hobbyistas, especialmente eurogamers, depois do deslumbramento inicial com os jogos introdutórios acaba jogando o quesito tema para escanteio, em maior ou menor grau: as ilustrações, flavour texts e miniaturas deixam de ser o principal e tornam-se, quase ou totalmente, desprezíveis, mera perfumaria. No lugar disso tudo surgem a maximização de eficiência, a trituração de números, a análise de mecânicas e o pavor de ter seus planos arruinados por uma azarada rolada de dado (melhor nem chegar perto) ou pela jogada subotimizada de um jogador inexperiente.
E então, Tapestry tem uma mecânica tão amarrada ao tema a ponto de fazer escorrer uma lágrima no rosto de um eurogamer coração de pedra, empurrador de cubo (como eu)?
A resposta é óbvia: não.
Tapestry é tão temático quanto o jogador quiser que ele seja: você pode passar o jogo inteiro sem sequer ler que cada etapa de evolução nas áreas militar, tecnológica, científica e exploratória possui um nome e/ou descrição temática. Evidência: até a minha terceira partida eu não havia percebido que cada um dos espaços dos edifícios de renda também representa algum passo evolutivo, como “escrita”, “agricultura” e “cartões de crédito”.
O problema é que se você quiser que Tapestry seja um jogo temático - se você se atentar para o tempero temático de cada ação que realiza - Tapestry acaba se tornando um jogo de civilização muito estranho.
A descrição temática de cada ação geralmente faz sentido com a sua correspondente mecânica e algumas consequencias da abordagem anacrônica de Tapestry podem ser interessantes e até instigantes: no mundo de Tapestry sua civilização pode ter inventado a viagem no tempo sem sequer ter passado pelo conceito de dinheiro; fazer viagens interestelares sem ter desenvolvido a pólvora. Mas outros desdobramentos podem demolir qualquer tentativa de imersão: desenvolver computadores sem dominar a matemática; produzir drones assassinos antes de se obter vidro, aço, borracha ou plástico.
É por isso que para muitos Tapestry não é um jogo de civilização, não há uma sequencia lógica e linear histórica dos acontecimentos. Afinal de contas as civilizações do nosso planeta seguiram e seguem um certo padrão de evolução que Tapestry, se não ignora, pouco faz para respeitar, enquanto todos os jogos que a comunidade considera pertencente ao gênero retratam a cronologia da história humana real (ou, no mínimo, realística).
A cada um cabe lidar com essa característica do jeito que lhe soar mais adequado, para mim a solução é considerar que o jogo se passa em um mundo quase parecido com o nosso, em que algumas regras da natureza são as mesmas e outras são um tanto mais flexíveis do que as nossas, assim como a mente daqueles humanos não funciona exatamente como a nossa (a irrelevância da religião no jogo é suficiente para provar isso). E, adotada essa mentalidade, uma das diversões do jogo é, ao fim, realizar esse esforço de imaginar como seria um planeta em que uma, por exemplo, civilização militarista saiu da era do fogo, se tornou uma tecnocracia e depois virou uma potência do petróleo e terminar sendo uma teocracia.
Mas, como já dito, Tapestry só é temático se abordado com certa mentalidade e não há certo ou errado: o tema vai surgir, ou não, dependendo do seu perfil como jogador e da maneira como você aborda os jogos de tabuleiro.
Além disso, sei que dentre as inúmeras definições que os jogos de civilização podem receber o tema não é, necessariamente, o fator determinante. Mas aí a coisa fica um pouco mais complicada…
Enquanto existe um consenso nos extremos (Sid Meier’s Civilization: The Board Game é um jogo de civilização; Ticket to Ride não) o BGG coloca na categoria “civilization” jogos como Projeto Gaia, 7 Wonders, Tzolk’in, Race for the Galaxy, o que é bastante discutível.
Em relação às mecânicas utilizadas no jogo a conclusão a que chego é que Tapestry, assim como lida com a temática, não se apega àquelas clássicas do gênero de civilização. Por exemplo, a principal mecânica, a de avanço nas trilhas, não é apenas inexistente em jogos de civilização, mas raríssima em jogos modernos, no geral. O mesmo se pode dizer sobre a forma como o mapa é montado, como as eras se passam e como a capital é construída: nada disso é feito da mesma maneira que em outros jogos de civilização.
A despeito disso eu sinto que o mundo à volta da minha civilização vai sendo descoberto aos poucos, que os recursos dos novos territórios são importantes para o avanço da minha civilização, que a cada etapa nova em uma das trilhas de desenvolvimento as ações vão ficando mais poderosas (com exceções)… ou seja, eu sinto tanto uma progressão espacial (seja no mapa global, seja na capital) quanto um avanço tecnológico da minha civilização. Tudo isso acontece com uma boa dose de abstração, como se o jogador estivesse gerenciando sua civilização a uns bons 500 km daquele planeta, mas está lá e basta um pouco de vontade para ver.
Para concluir, Tapestry não é um jogo de civilização como outro já feito, especialmente por sua pouca ortodoxia temática e mecânica, mas é uma boa revolução do conceito.
Assimetria e balanceamento (ou: esse jogo não foi playtestado?)
Outra das características principais de Tapestry é a assimetria entre os jogadores: das dezesseis civilizações únicas cada jogador inicia com uma, podendo conquistar outras durante o restante da partida.
Antes de continuar a falar sobre o jogo, me sinto obrigado a dedicar uns poucos parágrafos sobre assimetria em jogos, no geral.
Se você conhece um mínimo de game design (e olha que eu sei pouquíssimo) sabe que assimetria é equivalente a desbalanceamento. Os jogos de tabuleiro assimétricos mais aclamados são desbalanceados: Terra Mystica, Root, Cosmic Encounter, As Viagens de Marco Polo são aclamados mas todos, sem exceção, são desbalanceados.
E esse fato não se limita aos jogos de tabuleiro, Street Fighter, até hoje, não é completamente balanceado; League of Legends, por exemplo, recebeu mais de 200 patches de balanceamento nos últimos 10 anos.
A própria assimetria, na realidade, é um elemento inerente a jogos, sejam eles classificados como assimétricos ou não. O simples fato de existir um jogador inicial e uma ordem de turno, por si só, já torna um jogo assimétrico e, por consequência, desbalanceado: é só olhar para Xadrez ou para Puerto Rico; a existência de “poderes” assimétricos apenas deixa essa falta de equilíbrio mais pronunciada.
Então se você acredita que seu jogo assimétrico preferido é balanceado eu te garanto que você apenas acha isso por um motivo: falta de dados.
Voltando para mesa, se o desbalanceamento existe em todos os jogos assimétricos o que muda entre eles é a forma de lidar com isso: enquanto Cosmic Encounter e Root deixam o controle totalmente nas mãos dos jogadores (são jogos altamente interativos), Terra Mystica dá mais ou menos pontos de vitória no início de cada jogo e Puerto Rico dá mais e mais poderosos recursos para aqueles que estão em posição menos favorecida.
Tapestry foi lançado em setembro e já possui uma atualização com vistas a dar maior balanceamento para as civilizações. E eu te pergunto: isso é bom ou ruim?
Nos poucos meses desde que Tapestry foi lançado foram registradas cerca de 2000 partidas. O registro de tantas partidas em tão pouco tempo é algo inédito no hobby: jogos no mercado há anos ainda não chegaram nesses números. Na ponta da língua, o único jogo que ultrapassou essa quantidade de partidas registradas (e num período de tempo muito mais longo) é o Terra Mystica, cujos dados serviram de base para o balanceamento das facções do Projeto Gaia. Então há menos relevância no tempo passado desde o lançamento do que no número de partidas registradas.
Voltando à resposta: se você acha que um jogo assimétrico pode ser completamente balanceado (especialmente logo depois de ser lançado), então vai achar ruim e vai dizer que o jogo não foi playtestado.
Mas você e eu sabemos que um balanceamento perfeito não é possível, então a resposta se torna matizada.
As novas regras de balanceamento são boas: além de deixar as facções mais competitivas (e consequentemente dar maior variabilidade para os jogos), mostram que o designer está mais preocupado em corrigir um problema do que tentar negá-lo com medo de perder vendas.
Mas eu devo concordar, em parte, com quem acha isso ruim: das dezesseis facções existentes no mínimo duas se mostraram desbalanceadas em demasia, em um grau que evidencia que isso poderia ter sido flagrado na fase de testes do jogo.
Ao mesmo tempo, é uma quantidade impressionante de poderes assimétricos que se mostraram bastante equilibrados.
Concluo: se você espera um jogo totalmente balanceado sugiro que fique longe de Tapestry (e de qualquer outro jogo assimétrico), mas a proatividade da comunidade em registrar suas partidas e do designer em lidar com o problema me faz ter certeza de que, em relativo pouco tempo, teremos um jogo que pode ser chamado de balanceado, dentro do que é realisticamente possível.
Fator sorte (ou: o melhor sempre vence?)
Tapestry é um festival de sorte: desde o lançamento de dados (presente em duas das quatro trilhas), passando pelo sorteio das civilizações e até as cartas de tapeçaria, que podem criar ou quebrar o sucesso da sua civilização.
Confesso que meu eurogamer interior se mostrou muito preocupado com a sorte na compra das cartas de tapeçaria e, desde a primeira partida, resolvi implementar a regra de “compre 2, fique com 1” com vistas a mitigar qualquer problema que pudesse surgir da falta (ou excesso) de sorte. Depois das primeiras 3 jogatinas, entretanto, abandonei essa variante.
Em Tapestry a diversão surge da necessidade de se usar os limões (ou, às vezes, as laranjas, bananas e abacaxis) para fazer uma limonada e não da possibilidade de construir a máquina de pontos perfeita. O charme do jogo é exigir de cada jogador que adapte sua estratégia ao que aparece no meio do caminho.
Me parece que a sorte não implica em frustração, mas em desafio. O jogo te entrega um resultado aleatório mas também te dá as ferramentas para lidar com ele: você talvez não consiga bater aquele oponente que recebeu as cartas certas no momento certo, mas o desafio nunca foi esse e isso não vai acontecer com frequencia; ao jogador cabe fazer o máximo com o que o jogo lhe dá.
Entendo que essa abordagem pode ser frustrante se você jogá-lo apenas uma vez, mas a longo prazo essa aleatoriedade deixa o jogo mais emocionante e recompensador: o melhor jogador pode não ganhar 100% das vezes, mas com certeza todos saberão quem jogou melhor, quem melhor se adaptou e, às vezes, quem teve uma baita sorte.
Assim, se você prefere que seus planos não sejam interrompidos por fatores aleatórios (mesmo que o jogo te permita lidar com esse resultado de maneira bastante flexível) sugiro manter distância; se você gosta de aspectos táticos (especialmente de adaptação) tanto quanto do planejamento estratégico, em que seus planos poderão não sair exatamente como planejados mas refletirão as suas habilidades no jogo, Tapestry é um prato cheio.
Fator diversão (ou: o que devo esperar do jogo?)
Tapestry não é um jogo perfeito e se você se propõe a procurar por esse unicórnio a única coisa que posso te garantir é que vai se frustrar eternamente. Mais ainda: ele não apenas não é um jogo perfeito como possui falhas que podem ser consideradas imperdoáveis por alguns.
Da minha parte: todas as jogatinas que tive até hoje foram satisfatórias, em que senti o embrião da minha civilização se desenvolver até chegar ao seu ápice, com uma dose pequena mas suficiente de interação com outros jogadores (positiva e negativa) e sempre terminei com a sensação de querer jogar mais uma vez e poder arrancar uns pontos a mais das oportunidades que o jogo ainda vai me dar.
Independente do resultado final dos meus jogos, se fui o vencedor disparado, se fui o perdedor humilhado ou se fiquei no meio termo, Tapestry sempre teve êxito em contar uma história diferente, curiosa e/ou instigante das civilizações que participaram em cada uma das sessões.
Se você quer um jogo com uma variabilidade acima da média, assimétrico, em que a interação entre jogadores não é exclusivamente negativa e que te force a se adaptar para ter uma chance de vencer ao mesmo tempo em que não garante a vitória mesmo que seja o jogador mais hábil, Tapestry te espera de braços abertos.
Agora se você quer um jogo de informação perfeita, sem sorte, totalmente balanceado, te oriento a testar Tapestry apenas se quiser experimentar algo novo, mas com certeza ele não vai te agradar. Para você sugiro tantos outros jogos excelentes: como Food Chain Magnate, Brass (ambos), Hansa Teutonica e Pipeline, por exemplo.
Componentes (ou: esse jogo vale R$500?)
Tapestry é um jogo com uma produção belíssima que com certeza está entre as melhores que o nosso hobby já viu.
Além das miniaturas pré-pintadas todo os demais componentes estão muito acima da média: desde a arte de Andrew Bosley até o acabamento inédito dos tabuleiros dos jogadores.
Agora você já deve ter uma noção se Tapestry tem o potencial para se tornar um jogo constante na coleção ou se ele com certeza não irá te agradar; se estiver em dúvida, sugiro fortemente testar a cópia de algum amigo antes de adquirir a sua.
Isso dito, valor é um conceito subjetivo enquanto o preço é objetivo.
São inúmeros os critérios que cada um pode levar em consideração ao atribuir valor para um jogo: quantidade e qualidade de componentes; exclusividade; fator “cult”; diversão; designer; arte; características da jogabilidade, entre outros.
Eu, particularmente, aplico aos jogos de tabuleiro algo que aprendi quando era criança: pego o preço que paguei pela coisa e divido pela quantidade de vezes que a utilizei. Quanto menor o quociente, maior é o valor do produto. Para mim, jogos de tabuleiro são bens de uso e não coleção: o valor, para mim, vem de colocar eles na mesa.
Nessa lógica um jogo (exemplo meu, Bohnanza) que me custou 50 reais e que já proporcionou mais de 50 jogatinas é muito mais valioso do que um jogo de 500 reais e que só viu mesa uma vez (outro exemplo meu Twilight Imperium: 4, já vendido).
Tapestry em pouco mais de um mês já viu a mesa diversas vezes e vai continuar vendo, pelo menos em um futuro próximo, então o preço que paguei é compatível com o valor que ele tem para mim, cabe a você, sabendo das características do jogo, prever qual valor ele teria para você e fazer uma aposta, se acha que o jogo vai corresponder às suas expectativas.
Falando nelas, concluo com algo que pode ser muito mais objetivo do que todo esse texto foi até agora: a felicidade que surge de comprar e/ou de colocar na mesa um jogo de tabuleiro depende, acima de tudo, das expectativas que o jogador tem: o jogo pode ser virtualmente perfeito mas ser frustrante se a expectativa era irreal; essa análise pode ter ficado mais longa do que eu planejava, mas espero que ajude os interessados no jogo, que ainda estejam em dúvida, a adequarem suas expectativas e garantir que a compra não vai se reverter em frustração.
(para quem achar pertinente:
meu Top 5; joguei Tapestry 7 vezes antes de escrever a análise, em partidas de 2 a 5 jogadores, na maioria das vezes em 4)