O que se espera de qualquer obra literária, independentemente do gosto pessoal vigente, é que ela se projete no tempo e no espaço e seja lida com frescor e prazer muitos séculos depois pelos leitores de qualquer sociedade. Não importam quais tenham sido as intenções do autor, e muitas são possíveis, do entretenimento puro e simples à retaliação, uma obra literária só se conserva interessante e imprescindível se seu assunto e sua forma tiverem alguma relevância. Um dos maiores exemplos é “Édipo Rei”, de Sófocles. Mesmo que determinada sociedade não admita que seu assunto (incesto e parricídio) seja importante, não há como negar que é a forma como esses temas comparecem à peça que a insere em qualquer tempo e lugar.
Na vasta obra de Jules Verne (1828-1905), um romance de destaque é, sem dúvida, “Michel Strogoff” (1876). Se Verne se notabilizou como uma espécie de visionário da tecnologia futura, não foi menos eloquente (e irônico) quando imaginou essa história em que, pela falta momentânea de uma tecnologia (o telégrafo, cortado pelos tártaros), um correio humano é acionado para levar uma mensagem urgente à capital da Sibéria Oriental, de modo que esta se prepare para enfrentar os invasores. Romance da urgência e do patriotismo, “Michel Strogoff” será sempre lido, não importa a época, nem o lugar. E o mesmo devemos dizer do jogo de tabuleiro “Miguel Strogoff”, de autoria do espanhol Alberto Corral, com belíssima arte de Pedro Soto. Porque podemos jogá-lo com muito mais frequência que o normal, estará fadado a ser um clássico? Talvez, mas somente se for compreendido (e jogado) “no e para o que se propõe”. Avaliar um jogo pelo que ele não é ou conforme nosso gosto pessoal ou pelo que pretendemos alcançar enquanto jogadores será sempre um equívoco, uma falácia. Cada jogador deve procurar “seu tipo de jogo” e deixar seguir em frente, sem interferência do seu juízo de valor, o jogo que despreza.

“Miguel Strogoff” foi de todos os jogos que conheci recentemente aquele que mais joguei num prazo de poucos dias. Um dos motivos é que ele não enjoa, pois, a cada partida ganha ou perdida (para alguém ou para o próprio jogo), temos a sensação de que poderíamos ter feito melhor… Mas há muito mais a dizer sobre ele.
Primeiro, não é popular, e não sabemos por quê. Joga-se em 60 minutos, e até cinco pessoas participam. É muito fácil de explicar, muito embora, devido ao seu caráter orgânico, de transformação constante, tanto ao longo da partida quanto de uma partida para outra, não se consiga, de forma alguma, dominá-lo. É um jogo sempre novo, e impressiona que isso se mostre ao mesmo tempo com tal economia de meios, alguns poucos componentes: tabuleiro, três baralhos (trajeto, eventos e aliados), seis meeples, cinco pequenos tabuleiros individuais, quinze marcadores, dois dados, o token do traidor Ivan Ogareff e a carta de sua cúmplice, a cigana Sangarra.

Segundo, não é um jogo de corrida, como muitos apregoam. Um jogo genuinamente de corrida pressupõe que quem chegar primeiro vence. Não é o caso deste, que é mais um jogo de jornada. A jornada do herói, do “executor de ordens”, como o define o narrador de Verne. Cada jogador é o mensageiro de Miguel Strogoff, rumo à capital da Sibéria. Plenamente de acordo com o entrecho do livro, ele tem urgência em chegar, mas os percalços não serão poucos. Consequentemente, administrar o percurso é bem mais importante, muito embora tão importante quanto isso será se manter próximo aos demais jogadores e à altura da movimentação do traidor Ivan Ogareff, que também vai em direção à Sibéria, com a carta do Czar interceptada, se fazendo passar por Strogoff.

Terceiro, é originalíssimo. Promove três movimentos, o de Strogoff e o de Ogareff, cada um numa trilha distinta, simultaneamente, de modo que, no fatídico encontro na casa 12 (Irkutski, capital da Sibéria Oriental), os dois duelem. Se o primeiro jogador a se bater com Ogareff perder, outro o sucede, até que alguém vença ou todos percam, sendo que, enquanto isso, os tártaros marcham para Moscou (terceiro movimento) e, se eles chegam à capital do império, o jogo vence, não importa se há ainda jogadores capazes de alcançar a capital da Sibéria e duelar com Ogareff, o triador.

Quarto, poucas vezes se verá um jogo que simule com tal perfeição o assunto e a forma de um livro! Obviamente que, para se perceber isso, é preciso ler o livro. E, inclusive, para jogá-lo melhor, na sua plenitude temática. Mesmo assim, pode-se prescindir do livro para jogá-lo. O jogo se basta. Tudo nele está em harmonia, num funcionamento que, sem exageros, beira a perfeição. Horas depois de terminada a partida, continuamos pensando no jogo, em como jogá-lo melhor da próxima vez, nos seus pormenores, sempre novos, em circunstâncias que não se podem prever com exatidão, porque, como no livro, o mundo a nossa volta não pode ser dominado, sempre estamos à mercê de alguma coisa, vulneráveis ao acaso e à pressão que outras forças, alheias à nossa vontade e ao nosso destino, exercem. E isso, no jogo, fica a cargo das cartas e dos dados. As cartas introduzem novos eventos a cada rodada, mudam os aliados, disparam os dados, fazem o traidor avançar, nos permitem novas habilidades, nos oferecem bônus, renovam nossas energias… Elas são, assim, as circunstâncias e as contingências. Como no livro, que é uma representação da realidade, as cartas e os dados são a representação de todos os percalços que envolvem qualquer viagem, e ainda mais esta, rumo ao desconhecido da guerra.

Quinto, é um jogo inclassificável. Uns dizem que é competitivo, outros que é cooperativo… Também que é semi-cooperativo ou duplamente competitivo. Não creio que tais classificações o definam, penso que na verdade o reduzem e afastam novos jogadores de uma diversão possível e uma experiência mais aberta. O certo é que, a despeito da ausência de classificações, ou mesmo apesar delas, é um jogo que funciona formidavelmente, que diverte, impõe desafios, obriga-nos a pensar e nos oferece aquela segunda experiência, para além do ato de jogar, que é estar no bojo do que o jogo propõe, como no coração de uma violenta tempestade. E eu já passei por isso, sei o que é estar à mercê das contingências de clima e eventos indomáveis.

Sexto, não são poucos os jogadores que reclamam do fato de que não têm domínio sobre o jogo, que as cartas e os dados o deixam por demais “aleatório”. Ora, se os jogadores tivessem pleno domínio sobre o jogo, ele seria “outro jogo”, jamais o jogo inspirado no romance citado e que é, em suma, uma das mais perenes obras do autor francês. E é por isso que devemos julgá-lo pelo que é: uma imersão, uma inserção perfeita dos jogadores numa aventura em tudo completa. A experiência que ele proporciona é incomensurável, e só ao jogá-lo se percebe. Tanto é difícil jogá-lo com pleno domínio quanto é difícil vencê-lo, e isso não é defeito, é mérito. Há jogadores que se jactam de ter vencido inúmeras partidas no modo solo ou com outros jogadores… Lamento dizer, mas ou estão se vangloriando ou então trapacearam com o jogo, pois, se em boa parte deste estamos à mercê dos eventos, a exemplo de Strogoff no livro, como poderemos então formar previamente uma estratégia vencedora? Na verdade, não há. O que há é uma adaptação constante do jogador às contingências e, talvez, se o Cosmos assim quiser e as cartas permitirem, a vitória no final. Este é o tipo de jogo que nos leva no fluxo das coisas, como na vida. Diga-me que você tem pleno domínio sobre sua vida pessoal, que eu lhe responderei que isso é só discurso, autossugestão. O fato de termos nascido em famílias, épocas e lugares distintos, destes ou daqueles pais, nestas ou naquelas condições, é a evidência mais concreta de que a estratégia, e ainda mais a perfeita, de controle absoluto, é uma utopia, um delírio. A própria existência é o segmento de um jogo.
Veneremos, pois, “Miguel Strogoff” por sua confluência com o Universo: por ser essa mistura de Acaso, Homem, Deus e Destino. O que não é pouco para um jogo.
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas e gestão de mão.
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