Logo que comecei a me interessar pelos jogos solitários, o nome GMT sempre aparecia. Intimidado pelos manuais e pelo aspecto muito raiz dos jogos deles, eu hesitava em enveredar por essa seara apesar de serem jogos, via de regra, bem avaliados. Um dia, vivendo meu dia de Sísifo, no qual eu fico eternamente ouvindo podcasts antigos para, numa ridícula e infindável luta, tentar ficar em dia com eles, ouvi de John H. Butterfield, criador de vários wargames solitários consagrados, que ele estava desenvolvendo um jogo de ficção científica espacial para a GMT. Tudo num estágio bem preliminar, mas em andamento. Já sabia do histórico dele e fui atrás disso para descobrir que, não apenas ele já havia desenvolvido outros jogos nesse tipo de cenário, como que SpaceCorp já estava disponível no sistema P500 da GMT, estando em produção porque havia ultrapassado o número mínimo de pessoas interessadas. Eu dei uma olhada no material, nas artes e resolvi entrar no barco.
SpaceCorp é homônimo do primeiro volume da série Galactican, do escritor americano Ejnar Fulsang, que foi militar e, posteriormente, trabalhou numa série de empresas de tecnologia espacial, entre elas a NASA. Na série, a humanidade ruma ao espaço para explorá-lo e colonizá-lo, passando por etapas progressivas, desde a órbita mais próxima à Terra, à distante até os mais longínquos recônditos da via láctea. Dado o background do autor, o livro conta com fundamentos científicos bastante sólidos, o que o torna uma ficção científica plausível. Segundo o próprio Ejnar, a tecnologia é o personagem principal de sua série e sua mensagem é a de que poderíamos nos tornar uma sociedade de fato interessada em explorar as estrelas.
SpaceCorp é um engine builder com gestão de recursos e exploração espacial na linha de Terraforming Mars e Leaving Earth. Conta com um modo solo a base de cartas e algumas tabelas no melhor estilo GMT. O jogador representa uma corporação com habilidades iniciais bem rudimentares que vão sendo otimizadas progressivamente através da aquisição e posicionamento de cartas em um tableau em seu tabuleiro pessoal. Além disso, o jogador pode posicionar construções em pontos estratégicos do espaço para facilitar, por exemplo, a obtenção de recursos ou o lançamento de naves a distâncias ainda maiores. Em última análise, o que se objetiva com estas ações é o cumprimento de objetivos (aqui chamados de contratos) e a aquisição de pontos de vitória.
No modo solo, somos antagonizados pela Competição, uma espécie de automa controlado por cartas e tabelas. Neste jogo, a interação entre jogadores dá-se fundamentalmente nos seguintes pontos: a) disputa por espaços para a exploração e construção de bases; b) a disputa por cartas disponíveis na oferta; c) cumprimento de contratos; d) corrida por pontos. O deck da Competição serve basicamente para selecionar locais no tabuleiro onde suas ações ocorrerão conforme parametrizado pelas tabelas dos excelentes player aids do jogo. Dessa forma, a Competição interfere diretamente nas ações e escolhas do jogador. É uma forma um pouco mais sofisticada de se conduzir um oponente artificial do que, por exemplo, o automa de Viticulture, mas lembra alguma coisa do automa de Gaia Project.
De modo análogo à série de romances, o jogo ocorre em três eras distintas: Mariners, que cobre a exploração do espaço próximo e o desenvolvimento de colônias espaciais até Marte, Planeteers, que cobre a exploração além de Marte até o fim do nosso sistema solar, e Starfarers, que envolve o envio de missões para sistemas solares próximos para estabelecer colônias interestelares. Cada uma destas eras possui um deck próprio tanto para o jogador solitário quanto para seu antagonista. As três eras podem ser jogadas em sequência, como você pode escolher jogar somente uma delas, num modo mais rápido. A condição de vitória é bastante simples: quem atingir o maior número de pontos ao final de uma era, que é desencadeado assim que uma das seguintes condições for atingida: seis ou mais contratos forem cumpridos, todas as pilhas de cartas (do jogador e da Competição) tenham se esgotado, ou se a Competição colocar sua oitava colônia.
Aspecto inicial do tabuleiro de jogo na era Mariners, que abre a partida.
Aspecto inicial do tabuleiro de jogo na era Planeteers, segunda era.
À esquerda nota-se o tabuleiro acessório com algumas melhorias genéticas e tecnológicas possíveis durante a partida.
Aspecto inicial do tabuleiro na era Starfarers, que encerra o jogo completo. Na parte inferior do tabuleiro acessório,
nota-se a presença das colônias interplanetárias que podem ser construídas a partir dessa era.
Tabuleiros ao fim da partida de três eras. Note no tabuleiro de pontuação à direita, que, embora eu tenha
vencido (amarelo), a Competição estava logo ali atrás.
É muito raro que eu coloque um jogo novo na mesa logo que ponho as mãos nele. Preciso ler com calma o manual, ver algum vídeo, montar o jogo na mesa e ficar ali um pouco sentindo qual é a dele. A bem da verdade, faço isso na esperança de que caia um raio dos céus com toda a informação necessária para se jogar, mas isso não acontece nunca. SpaceCorp foi uma feliz exceção a essa rotina. Logo que chegou aqui em casa, fui logo pondo na mesa. Depois da 10ª partida solitária completa (das três eras), resolvi escrever o que eu acho do jogo.
Talvez tenha sido uma questão de inadequação de expectativas com a realidade, mas minha primeira impressão não foi positiva. Ele parecia um eurogame leve demais, meio bobo, mas que tinha algum potencial. Dado o pedigree do designer e da editora, resolvi insistir. Na medida em que fui jogando, fui percebendo uma série de camadas estratégicas e gostando cada vez mais. Diferentemente do que eu esperava antes de adquiri-lo, é um jogo muito simples, acessível, mas altamente temático e que você tem a nítida sensação de progressão ao longo do tempo. Ele faz uma coisa de forma extremamente competente, que é a incorporação progressiva de regras e conceitos. De Planeteers para Mariners algumas novas regras são incorporadas, seus poderes são incrementados e você nota um considerável aumento de suas possibilidades de ação. É como se você estivesse dirigindo a 80 km/h e, de repente, atingisse 1234,8 km/h, equivalentes aos 340 m/s da velocidade do som. De Mariners para Starfarers são incorporadas mais regras, os poderes são catapultados à enésima potência e suas ações tornam-se de fato épicas. Aqui, da velocidade do som atingimos a da luz e, de fato nos tornamos mais que humanos. Para mim, a sensação que SpaceCorp dá ressignifica o conceito de engine building e o coloca em um patamar completamente diferente do que a gente vê por aí.
Uma grande parte da minha má impressão inicial a respeito do jogo deveu-se à forma como a Competição era manejada. Achei-a boba naquele primeiro momento, era muito pouco para um jogo com antagonismo satisfatório. Ganhei as partidas iniciais e achei o jogo fácil. Daí fui jogar outras coisas, coincidentemente da GMT, o Cuba Libre e outros jogos da série COIN. Depois de pegar o jeito com os manuais e os bots daqueles jogos, percebi que precisava rever as regras da Competição em SpaceCorp. O jogo virou outra coisa! Os manuais da GMT são verdadeiras aulas de game design e apresentação de regras, mas eu estava pouco familiarizado com eles, o que talvez tenha me levado a interpretar algumas coisas de forma equivocada. Relendo as regras e novamente jogando, a Competição tornou-se um oponente excelente, desafiador, que torna o jogo muito, muito interessante.
Dois pontos merecem destaque. Primeiramente, o jogo, como é rotina da GMT, tem manuais bem escritos, com regras muito claras e vários player aids que facilitam muito. Em segundo lugar, os componentes são simples, mas bem acabados, conforme o padrão da editora. Não se deixe inibir pela carinha de wargame, achando que são todos counters, porque não são. Embora os tabuleiros tenham boa arte, as cartas tem uma arte meio genérica, que lembra um outro jogo com temática semelhante, um tal de Terraforming Mars. Embora eu me recuse a cair na armadilha de comparar esses dois, pois os rankings e as vendas falam por si, SpaceCorp traz, em relação ao Terraforming, três coisas que eu gostei bastante: a) a sensação de progressão em etapas com ações incrementais de uma era a outra; b) a aquisição progressiva de regras; c) uma espécie de dummy player, aqui representado pela Competição. Numa escala de peso, acho-o mais leve Terraforming Mars.
Este jogo, no entanto, tem alguns pontos negativos. O setup, embora não seja complicado, é trabalhoso e envolve a preparação de decks de cartas, recolhimento e colocação de marcadores e cartas em vários tabuleiros. As ações do jogador e da competição costumam ser simples, o que faz com que os turnos fluam com rapidez, mas as características do setup fazem com que o tempo de jogo possa ser prolongado, sobretudo nas primeiras partidas. Hoje em dia, consigo jogar uma partida completa com as três eras em aproximadamente duas horas. Como ponto negativo final, de modo semelhante a outros engine builders com cartas, pode incomodar a aleatoriedade das cartas. Aqui isso pode ser um pouco mais pronunciado, pois não apenas o jogador pode ser afetado por ela, mas a Competição em si. Isso não me incomoda, acho que isso dinamiza o jogo e impede que ele torne-se previsível e roteirizado. Em comparação com os fluxogramas que controlam bots em alguns wargames, a Competição atua de forma bem mais caótica, pois sua seleção de ações varia conforme as cartas sacadas turno a turno. É uma crítica menor, mas que pode incomodar quem espera um jogo determinístico.
Não cheguei a testar SpaceCorp com outros jogadores, mas pela natureza do jogo, em que a interação se dá fundamentalmente pela competição por cartas, contratos e espaços no tabuleiro e a corrida de pontos, acredito que a experiência solo replicará bem o modo multiplayer, com poucos elementos se perdendo nesse processo.
Concluindo, SpaceCorp é um ótimo jogo com um modo solo que funciona redondo, propondo desafio sem muito trabalho para o jogador. Eu gostei demais. Já há uma expansão em desenvolvimento, o que me deixa ainda mais animado com a possibilidade de que o universo dele continue sendo expandido. Justiça seja feita, a GMT não errou com alguns de seus outros títulos de ficção científica: Space Empires 4X e o Talon 1000, também bons jogos. Se as expansões de SpaceCorp seguirem a mesma linha das desses jogos, teremos mais um título sci-fi excelente na praça.
. O SE 4x nao posso julgar porque nao joguei.