O que leva um criador de jogos de tabuleiro a transformar um jogo de sua autoria num outro jogo? E ainda mais se o jogo foi mais ou menos um sucesso? Pressão do mercado? Insatisfação pessoal? Exigência do editor? Críticas negativas? Ou um pouco de tudo isso? Este é o caso do jogo The Speicherstadt (2010), de Stefan Feld.

Quando soube que o Jórvik (2016) derivava de outro jogo, eu, com minha natural tendência de preferir o estranho ao comum, me interessei logo pelo “outro jogo”. Claro que o tema, bem como todo o aparato que reveste o Jórvik, favoreceu minha preferência. Não é que o tema viking seja em si vulgar; torna-se vulgar na representação visual que o Jórvik traz. Não quero dizer com isso que devemos escolher os jogos seduzidos pelo seu apelo visual, mas a verdade é que, em alguns casos, isso conta, e muito. É o caso, por exemplo, da feiosa tampa da caixa de Puerto Rico (2004), na edição da Grow: uma das ilustrações mais pífias já criadas para um jogo de tabuleiro sério. Lembro que li na Ludopedia o comentário de um usuário que dizia parecer rótulo de catuaba. Sem dúvida, não poderia existir definição melhor! Com o Jórvik não é muito diferente. Eh, tampinha feia! E também as cartas, cuja arte, como disse um amigo meu, “parece indecisa entre a representação realista e o cartoon”.


Já The Speicherstadt (2010), este é, sob qualquer análise, um refúgio de simplicidade e bom gosto. Da caixa ao tabuleiro, passando pelas cartas e por todos os componentes, é um jogo de visual sóbrio, enxuto e refinado. A ilustração da tampa representa uma cena das atividades diárias num armazém do antigo porto de Hamburgo e deve muito ao estilo de alguns pintores anglo-saxões do século XIX; o tabuleiro é predominantemente azul, em referência ao mar, contrastando com o zarcão das construções portuárias; quanto ao verde, também em contraste, ressalta as colunas de janelas que vão receber os meeples durante a fase de leilão; áreas de cinza e azul escuro fecham elegantemente o conjunto. Essas mesmas cores se mesclam a algumas outras (vermelho, amarelo, marrom, laranja e preto) para formar as cartas e demais componentes, e sempre num tom suave, sem aberrações realistas, com destaque para as moedas, em prata com meio brilho, numa eficiente representação cartonada do metal. Já o marcador de primeiro jogador, bem, é uma moeda real! Em suma, chega a ser uma humilhação colocar The Speicherstadt frente a frente com o Jórvik no quesito aparato estético.

Jogá-los também implica semelhanças e diferenças, uma vez que o Jórvik já vem acrescido da expansão, o que permite um arco maior de ações. Mas, em suma, nos dois jogos, o leilão é a força motriz, o grande atrativo. Daqui por diante, embora tenha gostado muito de ambos, só vou me referir a The Speicherstadt, que é o meu preferido, mesmo sem a expansão.
The Speicherstadt simula o cotidiano de um porto marítimo, especificamente o porto de Hamburgo. Navios chegam e devem ser descarregados. Outros, já vazios, partem. Os produtos, recém-chegados, são armazenados ou imediatamente transportados, com vistas ao cumprimento de contratos comerciais. Nesse ínterim, perdas ocorrem, e alguns produtos acabam descartados. Dinheiro entra, dinheiro sai. Alguns comerciantes o acumulam, outros o gastam excessivamente e recorrem ao banco. Uma minoria enriquece, como na vida; a maioria só trabalha. Como uma ameaça iminente a todos, sem exceção, os incêndios, que, sabemos, já devoraram muitos portos ao longo dos séculos. Se o leilão inicial é a alma desse jogo, pois só através dele podem-se conseguir contratos e recepcionar os navios abarrotados de produtos, é na proteção contra os incêndios que reside muito da habilidade estratégica para se chegar à vitória. Ignorá-los é fatal, mas superestimá-los também. A exemplo de muitos jogos econômicos, em The Speicherstadt manter cautela e parcimônia pode conduzir à vitória ou evitar uma grande frustração no fim, quando, já tardiamente, percebe-se que esta ou aquela falha foram decisivas para a derrota.

O tão falado leilão deste jogo é realmente um mecanismo notável. Isso porque ele não envolve apenas lances efetivos, mas igualmente intenções ─ e, claro, “más intenções”. Aplicadas, nem sempre são em favor do jogador (um item do corpo de suas ações de cunho comercial), mas um golpe contra seus adversários. Poucas vezes deixamos evidente se queremos a carta que disputamos ou se a disputamos tão somente para não deixá-la disponível. Estamos sempre atrás da cortina, maquinando. Ou seja, o blefe é constante e pode ser letal. Não raro um jogador, comerciante nato, compra uma carga apenas para que seu concorrente não a adquira e, com isso, lucre. E assim é na vida ou, se preferirem, no Capitalismo. Há uma lógica tanto de construção quanto de destruição, quando o objetivo é lucrar.

É comum se mencionar o grau de punição de alguns jogos econômicos, e os de Stefan Feld são talvez os mais lembrados. O que pouco se comenta é que esses jogos são aqueles em que o tema segue a implacável lógica da existência humana, erguida sobre o alicerce da sobrevivência e da competição. Ou é a Natureza que fustiga o Homem ou é o próprio Homem. Erupções vulcânicas, terremotos, pestes, guerras, fome, incêndios e jogadas comerciais se equivalem. A punição aqui não é gratuita. É a essência da condição humana. Um dia também desapareceremos “por punição”, não importa o jogo.

Ao que parece, nos jogos do Feld os temas não servem gratuitamente à mecânica, apenas para justificá-la ou exaltá-la. Mas não o posso afirmar categoricamente, pois só joguei alguns jogos dele. Mesmo assim, até em The Castles of Burgundy, que soa mais abstrato, o tema goza de alguma harmonia com o fluxo do jogo: somos aristocratas à frente de um principado e, sob esta condição, o administramos: de longe, detrás de uma escrivaninha, como os generais que, debruçados sobre uma longa mesa, conduzem as guerras, movendo daqui para ali bandeirinhas e miniaturas. Não nos envolvemos no tema, só manipulamos suas peças, como um aristocrata real manipulava seu séquito, seus trabalhadores, arrendados e fornecedores. Ou seja, a abstração do jogo é, de certa forma, a abstração de uma posição, um status, uma regalia.
Tentemos, por fim, responder àquelas questões de início. Não, não sei o que leva um criador de jogos de tabuleiro a transformar um jogo de sua autoria num outro jogo, e ainda mais que aquele jogo é ótimo, sem falhas, coerente com o tema escolhido, funcionalmente perfeito, oferecendo aos jogadores prazer e diversão ao jogá-lo. Cogitemos que foi, de fato, a pressão do mercado, obcecado até ainda há pouco pelo tema viking… (Até o velho War virou War Viking!) Cogitemos também que o editor pressionou o autor em busca de um retorno financeiro e que o próprio Feld, por algum motivo, sentia-se insatisfeito com a sua criação… Críticas negativas, não consigo imaginá-las… O certo é que Jórvik, exceto pelo tema, é praticamente idêntico a The Speicherstadt acrescido da sua expansão Kaispeicher (2012), mas sem as tão desejadas moedas de metal que esta trazia. Bem, provavelmente os vikings as pilharam. Inclusive a moeda de primeiro jogador!
P.S: minha gratidão a Felipe, Lu e Lidi, por me permitirem jogar o Jórvík.
(ara acessá-lo, basta clicar na imagem abaixo:
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas e gestão de mão.
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