Há certa monotonia nas opções de jogos de tabuleiro, atualmente. De um lado, publicam-se muitos eurogames; de outro, os jogos chamados pejorativamente de american trash ou temáticos. Em geral, os jogadores do primeiro grupo não flertam com os espécimes do segundo (tão cheios de miniaturas!), e os destes desprezam aquele primeiro mundo de meeples-operários e cubinhos representando os mais diversos materiais, como madeira, ouro, ferro, pele etc. e cujo propósito é construir, produzir, plantar, colher, embalar, vender e, ao final, pontuar. Como já deixei claro em outros textos, gosto de jogos diferentes. Não sou de me aferrar obtusamente a um grupo ou outro, muito embora tenha uma leve predileção pelos euros. Com essa dicotomia tão rígida, era óbvio que mais cedo ou mais tarde aparecessem jogos que se aliam aos dois gêneros ─ os quais aí estão a angariar elogios ou malhações. Mas não é sobre eles que pretendo falar…
Nesta minha tendência de buscar o que não se filia necessariamente àquelas duas divisões maiores, tenho descoberto e experimentado jogos cuja complexidade se mescla a uma simplicidade traduzida por poucos componentes, um tabuleiro elementar, mas eficaz e um tema pouco explorado, quando não insólito. Um dos jogos que mais me impressionaram recentemente foi o K2 (2010), de Adam Kaluza.

Em tempo, gostaria de esclarecer que imersões no deserto e em ambientes gelados me atraem. Foi essa predileção que durante minhas pesquisas me conduziu ao K2, como ao Klondike Rush (2017), de Ryan Laukat, outro jogo que aprecio, e ao 1911: Amundsen vs Scott (2013), de Perepau Llistosella, que ainda não joguei e que é bem difícil de encontrar. Há também a nova edição de Stone Age (2018), cujo tabuleiro vira para um cenário de inverno. Percebe-se com isso que tenho certa inclinação por jogos “temáticos”, mas não necessariamente jogos de batalhas ou aventuras, regidos por guerreiros ou monstros. E, se o deserto é uma espécie de labirinto, como propôs Jorge Luis Borges, um descampado gelado também o seria, ambos servindo por natureza à ideia de jogo: um meio sobre o qual se ganha ou se perde alguma coisa, até mesmo a vida.

O K2 é em tudo uma experiência única. Consegue em aproximadamente uma hora nos levar à representação convincente de uma jornada de 18 dias rumo ao topo de uma montanha que, fria e silenciosa, assolada por um clima hostil, é o destino final de muitos exploradores. A escalada é lenta, pouco a pouco, espaço a espaço, como o é numa aventura real sobre aquele monte, chamado não por acaso de Montanha Selvagem. E as intempéries estão em volta, sempre intensas e letais quanto mais os alpinistas se elevam. Como um símbolo evidente destas dificuldades, há a perda gradativa de oxigênio, porque, afinal, é assim. Quanto mais se sobe, mais o ar fica rarefeito, e o frio é mais forte, e há neve e, de súbito, o alpinista está sozinho, ilhado em meio ao nada. O mecanismo de ação do jogo é perfeito, ajustadíssimo ao seu tema. Ouso concluir que ambos são homogêneos, inseparáveis: duas partes que, amalgamadas, não se podem destacar, e que, sendo assim, não poderia ser de outra forma. Quando joguei K2 pela primeira vez, e me deslumbrei com sua funcionalidade, pensei que o escritor João Antônio estava certíssimo, ao sugerir que a forma de um texto literário “é a sombra do seu assunto”: não pode ser outra, está ali como uma extensão do seu objeto, seu contorno. Aplicada ao K2, por analogia, essa assertiva chega ao grau máximo de exatidão.
Outro elemento fascinante em K2 é o uso do fator sorte. Com alguma frequência leio comentários que afirmam que o melhor jogo é aquele cujo fator sorte é zero; aquele cujo desfecho, para o êxito ou o insucesso, é entregue ao próprio jogador, que o vai manipular conforme sua competência para traçar uma estratégia mais ou menos vitoriosa. Ora, nem na vida isso existe, quanto mais num jogo! Estou convicto de que os melhores jogos são aqueles que, lançada a sorte (e nascer já é uma espécie de sorte ou azar), o jogador cria a estratégia conforme o que se lhe oferece. Em tudo é assim. Eu diria que optar por ir por uma rua ou outra não é diferente de se abrir esta ou aquela carta. Teremos que nos virar com o que aquela rua nos oferece, tanto quanto a carta. Mesmo no Xadrez, o Jogo dos jogos estratégicos, há um quê mínimo de sorte a interferir, se não no âmbito do tabuleiro, nas circunstâncias da partida (ambiente, plateia, clima), no ânimo dos jogadores, no estado psicológico em que cada um se encontra naquele dia, porque a noite não foi boa ou simplesmente porque é lua cheia…

Em K2, os alpinistas (manipulam-se sempre 2) começam a subir a montanha… Se o tempo for favorável, cria-se uma estratégia, vai-se mais rápido; se não for, cria-se outra estratégia, cuja escalada é mais lenta, em busca de uma reserva de oxigênio para os trechos superiores, mais hostis, mas que forçosamente se amenizarão, quando abertas as cartelas mais favoráveis, já que as desfavoráveis vieram no início. Ou seja, tudo perfeitamente afinado com o que acontece numa escalada real, com o tempo climático a dançar conforme sua própria vontade e à revelia dos alpinistas. A sorte é, portanto, a par da competência e do talento tanto de alpinistas quanto de jogadores, um elemento circundante que se desdobra em camadas de decisões que podem levar ao sucesso ou ao insucesso. Nem toda estratégia será vencedora, em face da contingência da partida ou, se preferirmos, do clima. Uma das mais profundas experiências que tive neste jogo foi ver meu alpinista correr desesperadamente para baixo, rumo à tenda, onde poderia obter abrigo e ar, e não conseguir alcançá-la… Morreu sozinho, a meio caminho da tenda, longe do companheiro, que estava do outro lado. Vejam: é um jogo, sim, mas que imersão forte, que similaridade com a vida, que realismo! Fiquei olhando meu meeple, tombado e solitário naquele mundo inóspito e gelado… E pensei: a Montanha Selvagem fez mais uma vítima, até mesmo aqui, no jogo.


O tempo cronológico é demarcado pela mesma peça que demarca o tempo climático, que é de dois tipos: verão e inverno. Estes podem ser usados com os dois tabuleiros, um representando o inverno e outro o verão. Joga-se no verão de duas formas: com as cartelas de inverno ou com as de verão. O mesmo se aplica ao tabuleiro de inverno. Sendo assim, temos ao todo quatro tabuleiros! Uma versatilidade pouco comum aos jogos e que nos leva sempre a novas e inesperadas experiências.

K2 é um dos raros jogos que sempre voltarei a jogar e que jogarei com mais frequência que o habitual, porque é um dos raros que, de fato, nos transportam para o seu tema (sobreviver a um meio inóspito) e um lugar (uma montanha cruel), através de ações que bem representam o que acontece na realidade. Muitos jogos temáticos ou euros, grandes e cheios de componentes, nos prometem isso, mas, ao fim, se reduzem a uma abstração enfadonha ou a uma disputa que é só mesmo uma disputa, e assim, se não for possível jogar o K2, é melhor jogar o excelente Flamme Rouge, que é o que é: uma acirrada corrida de bicicletas!
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas e gestão de mão.
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