No ano de 192 depois de cristo, Roma era governada pelo imperador Commodus, que entre as muitas controvérsias de seu reinado, criou os jogos plebeus onde lutava como Gladiador (e vencia todas as lutas) e forçou o senado a proclamá-lo um Deus vivo, filho de Júpiter, tendo estátuas megalomaníacas espalhadas pela cidade à semelhança de Hércules. Chegou a renomear a cidade de Roma para
Colonia Lucia Annia Commodiana e os meses do Calendário com cada um dos seus 12 nomes. Nem as legiões romanas escaparam de sua "humildade" passando a se chamarem de
Commodianae.
Não é de se estranhar que tamanha prepotência deixasse a galera de saco cheio e logo tentassem tirar a coroa de louros de Commodus, após sua concubina Márcia falhar na tentativa de matá-lo envenenado, os conspiradores mudaram de estratégia enviando seu companehiro de treino de luta Narcissus, que foi bem sucedido em um estrangulamento durante o banho do imperador.
O ano seguinte, 193 AD, foi caótico e mergulhou Roma em uma guerra civil sem proporções, com uma alternância no titulo de imperador que gerou 5 "Ceasars" diferentes no mesmo ano. Bastava subir ao trono para se tornar um alvo e ser assassinado, enquanto Roma e os territórios adjacentes do império sofriam com invasões bárbaras e o desafio de boas colheitas para manter o povo minimamente satisfeito.
Visão Geral
É nesse cenário absolutamente caótico que se ambienta
Donning The Purple (Vestindo o Roxo em tradução livre, nome devido a túnica roxa que os imperadores usavam na época). Um jogo assimétrico para 3 jogadores (apesar de haver variações para 2 e solo) onde um começa no papel de imperador romano com interessantes bônus e poderes mas também com as responsabilidades de conter o avanço das invasões inimigas e alimentar o povo, sendo que seu trabalho pode ser bastante atrapalhado pelo senado que está sempre conspirando pelas suas costas ou pela ganância de seu herdeiro espreitando o melhor momento de vestir a cor púrpura.
E é esse mecanismo assimétrico não permanente que faz Donning the Purple ser tão bacana. Para deixar mais claro, no início da partida um jogador assume o papel de Imperador, outro de líder do senado e outro de herdeiro. São assimetrias sutis, porém que podem a qualquer momento se alternarem entre os jogadores e guinarem o rumo da partida. Disse que as assimetrias são sutis, mas o imperador é um papel que todos irão querer assumir em algum momento, e a beleza está fundamentalmente nessa busca pelo poder.
Isso pois Donning é um jogo de apenas 4 turnos (divididos em 8 fases) e pouquíssimos pontos. E o imperador é o único jogador que invariavelmente pontuará em todo turno. No entanto, parafraseando Uncle Ben, com grandes poderes vem grandes responsabilidades. Primeiro pelo fato de pintar um alvo em suas costas. Ao virar imperador o jogador se torna passível de assassinato pelos outros à mesa. Além disso, também assume a gestão da produção de alimento para as províncias do império, bem como a contenção das invasões bárbaras. Tudo isso influencia no nível de felicidade do povo romano que se for mantido em níveis elevados até o final do ano, irá gerar muitos pontos a quem controlar o imperador, mas se chegar a zero causará a morte do César pelas mãos de uma população em revolta.
As mecânicas são extremamente simples, porém com uma dose de aleatoriedade e caos bem elevadas. Vou passar de uma forma bem geral e sem entrar em detalhes pelas fases para que fique mais fácil a compreensão do jogo.
O Funcionamento do jogo
- Nas fases iniciais do ano/turno, através de uma rolagem de dados, inimigos entram nas quatro regiões do tabuleiro e se movem em direção as capitais. Vale ressaltar aqui que o jogo tem duas condições de final de partida onde todos perdem. Se todos os 28 tokens de inimigos entrarem no tabuleiro, ou se as 4 capitais forem invadidas pelos inimigos. A entrada e avanço desses inimigos pode ser contida ou pelas legiões romanas (gerenciadas pelo imperador) ou pelos peões de cada jogador que podem combater numa ação de movimentação. A decisão de limpar forças inimigas do território é extremamente importante para os jogadores, principalmente para o imperador. Pois ao mesmo tempo que regiões ocupadas pelo inimigo não geram receita para o império, elas também não demandam custo de alimentação e equilibrar essa balança é uma tarefa extremamente inteligente e divertida.
- Em seguida há a fase de colheita, onde se confere províncias que geram grãos em regiões que não estejam com token de fome para ver quanto de safra o império terá para alimentar cada uma dessas províncias (que não estejam invadidas pelos bárbaros). Dificilmente haverá uma safra grande suficiente para isso, porém o império poderá comprar o alimento que falta de acordo com o preço dos grãos em uma trilha a parte do tabuleiro
- Então entram as cartas de evento, e aí que o caos impera. O imperador saca 5 cartas e resolve elas em ordem. Essa fase é curiosa pois gera um fator que geralmente não me agrada em jogos, mas que aqui se torna um sistema de adequação sem precedentes pro tema. Que é a aleatoriedade. As cartas contam com Conspirações, tentativas de assassinatos, invasões inimigas, escassez na colheita e até erupções vulcânicas que tornam completamente imprevisível o desenvolver do turno. Desde elevar o preço dos grãos a um nível quase impraticável para abastecer todo povo, até provocar a morte do imperador.

- A partir daí, os jogadores devem decidir como reagir aos eventos do ano, entrando na principal fase do jogo que é a de seleção de ações (em um sistema simples de "workerplacement" nos playerboards individuais) iniciando sempre pelo imperador que pode selecionar até 3 ações e seguindo em sentido horário os demais jogadores com 2 ações cada. As ações são simples como construir propriedades e monumentos para obter fontes de receitas e bônus, mover seu peão para combater invasores ou posicioná-los para proteger suas construções, subornar o senado para tomar seu controle, ou tentar assassinar o imperador ou o senador influente gerando alternância nesses postos. Um parêntese importante: Tirando o assassinato todas as ações podem ser copiadas pelos jogadores não ativos fora de seu turno diminuindo pra quase zero o downtime do jogo e gerando escolhas extremamente estratégicas, pois o mecanismo de seleção de ação também significa "gastar pontos de vida"
- Vamos então para a fase de construções. As ações de construção não entram imediatamente no tabuleiro, quando um jogador resolve desenvolver algum monumento, propriedade ou aqueduto, esses entram numa fila de construção, somente após as ações dos jogadores passamos pra fase onde entram no tabuleiro as quatro primeiras edificações dessa fila. Sendo que o jogador com influência no senado pode efetuar a troca de duas construções na ordem da fila.
- Em seguida há a alimentação do povo romano, responsabilidade do imperador de pagar para cada uma das 25 províncias um token de comida. Sendo que para isso ele contará com a produção da colheita na fase 2 mais a compra dos alimentos para cada província restante. Para cada território não alimentado, o grau de satisfação do povo romano desce um nível. Lembrando que esse grau de satisfação define a quantidade de pontos do jogador que controla o imperador (1 a 5) e que se chegar a zero o imperador é assassinado pelo povo faminto e revoltado.
- Por fim, uma fase de income (pagamento de impostos) onde cada jogador com uma propriedade construida (em uma região não faminta) ganha 5 moedas por propriedade e o imperador além disso ganha 1 moeda por provincia sem invasões bárbaras e também sem token de fome na região onde se localiza.
O Final do ano (ou turno) é marcado apenas pela conferência das condições de fim de jogo (e derrota de todos os jogadores) e pela pontuação do imperador de acordo com a trilha de felicidade do povo.
Impressões finais
Antes de mais nada, Donning the Purple é altamente indicado para jogadores que curtem jogos temáticos, com uma interação alta em um ambiente competitivo e cruel, seus esforços podem não só irem por água abaixo como também recompensarem outro jogador.
A interação altíssima temperada com um caos de aleatoriedade dos eventos e com um sistema de cartas que podem ser jogadas a qualquer momento (mesmo fora do seu turno), provocam mudanças constantes de cenários que traduzem para os jogadores uma necessidade permanente de se ajustarem a todo momento, pensando em cada movimento e escolha durante a partida.
O sistema de assimetria é simples (ainda mais se compararmos com jogos como root, vast e piorando ainda mais subindo para os COINs) mas suficientemente bem desenvolvido para promover um estado de tensão elevadíssimo, pois esse é um jogo onde todos irão querer ser o imperador, já que é nesse papel onde se encontram o maior número de pontos, porém saber a hora certa de promover a sucessão é fundamental, e assumir o império sem ter a capacidade de lidar com todas as responsabilidades que esse papel traz pode ser devastador. E como Imperador, manter Roma em ordem é fundamental, mas nem tanto ao ponto de seu sucessor que espreita às sombras planejando seu assassinato, tirar proveito de todo seu trabalho árduo e receber os SUADOS pontos de glória por seus feitos.
A pressão das invasões bárbaras que podem triggar o fim do jogo com derrota da mesa e a linda escolha que todos tem em combater os invasores é outro sistema genial, pois limpar o tabuleiro desses bárbaros, podem gerar bônus imediato para o jogador (através de dados de bonificação para cada inimigo combatido) mas também aumenta a felicidade do povo gerando mais pontos para quem for o imperador, esse por sua vez precisa pensar bem o quão limpo quer o tabuleiro dos inimigos, pois apesar de fazer mais pontos, aumenta sua responsabilidade de alimentar mais provincias, e caso não seja bem sucedido não chegará vivo ao final do turno para receber esses pontos que alguém recebrá no seu lugar após todo árduo trabalho.
DtP é mais um ótimo exemplo de que para ajustar um tema ao jogo não é necessário uma super produção ou miniaturas mirabolantes e de como Euros podem ser simples e temáticos. Não chega a ser um jogo feio, mas com peças e arte comuns nos tranporta para um período histórico com maestria, nos jogando no meio de uma Roma colapsada e caótica tentando se reorganizar em meio de invasões inimigas e um sanguinário bastidor na disputa pelo poder de vestir a túnica Roxa.
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