Complicado, cheio de regras e exceções, fiddly. Você já deve ter lido/visto vários desses adjetivos associados ao Feudum, jogo lançado em 2016 via financiamento coletivo mas que só em 2018 chegou às mãos da grande maioria dos jogadores. Desde seu anúncio, muito se esperava do jogo que visualmente já chama a atenção com sua arte bastante inusitada, os componentes que parecem de uma edição de luxo — e olha que há componentes ainda mais “deluxe” para o jogo se você quiser — e aquilo que foi dito sobre sua jogabilidade.

O designer Mark Swanson, que não tinha nenhum outro trabalho até então, colocou no jogo toda a sua ousadia, sem se importar com a complexidade do trabalho e em como os jogadores iriam receber isso. E depois de vários feedbacks até mesmo de outros designer (que ele cita ter recebido na GEN CON em 2014), colocou o jogo pra rodar o mundo. E deu boa, com o primeiro Kickstarter arrecadando cerca de 260 mil dólares (com mais de 3 mil apoiadores) e o segundo, para lançar a expansão que permitia o modo solo, arrecadando outros 65 mil — sem que o jogo tivesse ainda chegado aos apoiadores, tamanho era o hype.

Tendo como base um mecanismo de ação programada muito bem pensado e ainda uma série de outras mecânicas que casaram muito bem com o tema, Feudum envolve os jogadores numa boa trama, num jogo que é sim longo e bastante complexo, mas que agrada e entrega o que se esperava dele depois de vencida a barreira inicial: cerca de 1 hora de explicação. Nada que o excelente player aid não ajude a relembrar ao longo da partida. Controle de área, gestão de recursos, movimento ponto-a-ponto e uma série de outros elementos presente em menor escala ajudam você a se situar nesse mundo novo, repleto de aventuras, histórias de cavaleiros, realeza e camponesas, num euro pesado muito temático.



Expulsos de sua terra natal, os jogadores agora estão em um lugar desconhecido, regido por um rei bastante condescendente, em que as guildas é que realmente comandam tudo. E existem 6 delas, cada uma focada num tipo de ação, todas interessadas na sua participação. Tudo no jogo é feito para você ganhar pontos de veneração, ou seja, para se tornar alguém influente nessa nova terra através de suas viagens, conquistas, batalhas, negociações com mercadores e fazendeiros e ainda suas invenções (que vão desde meios de transporte fantásticos até simples barris de krud). A cada rodada, os jogadores irão escolher 4 cartas de sua mão, de 11 possíveis, e executar, cada um em seu turno, uma dessas ações. O jogo prossegue ao longo de diversas rodadas como essa até que a quinta época do jogo seja desencadeada.

Cada uma das 11 cartas tem uma ação principal e uma ação secundária que pode ser feita junto com a principal ou no lugar dela. Toda a dinâmica do jogo se dá por essas cartas e é primordial se escolher bem as 4 cartas da rodada. Isso porque depois de escolhidas, o jogador pode usá-las em qualquer ordem, ou até mesmo se recusar a usar a carta e passar a vez. Mas ele não pode fazer uma ação diferente da escolhida. Se a situação na mesa mudar, ele precisar lidar com isso. E isso acontece. Muito.



Entre as ações dessas cartas os jogadores podem colocar no mapa um de seus 3 peões escolhendo qual “trabalhador” ele deseja ter no jogo. Os peões se parecem com dados, mas são marcadores com várias faces que permitem aos jogadores focarem numa guilda ou numa ação que desejam fazer com força maior ou com algum tipo de bônus. Outra carta permite mover esse peões pelo mapa e outra ainda pode ser usada para adicionar uma influência num território em que seu peão está. Territórios podem ter influência de vários jogadores, mas só um deles será o governante do local, sendo que os demais podem ser servos ou apenas estarem ali. Cada uma dessas características é importante no jogo.



Há ações para coletar impostos, para atacar um peão adversário em um território, para se defender de um ataque e para repetir uma ação já realizada. Há ainda uma carta que permite coletar recursos em uma fazenda que você controle, recursos esses que você só pode trazer pra você diretamente se tiver um selo de favor real — que são bem disputados no jogo — , caso contrário eles ficam no próprio tabuleiro e podem ser “roubados” por um peão passando por ali ou podem ser usados, futuramente, para negociar com uma das guildas do jogo.

Há também a carta que permite evoluir seus territórios: um posto avançado se torna uma vila, uma vila se torna uma cidade e uma cidade vira um feudo. Toda vez que o jogador faz uma ação de evoluir ele recebe, se disponível, um tile de panorama daquela região. É essa ação que irá ditar o ritmo do jogo. Se os jogadores evoluírem bastante seus territórios, além de pontuar, irão acelerar o jogo para o seu fim uma vez que cada época se inicia quando X tiles desses tiverem saído do jogo. Da primeira para a segunda época é necessário que 4 saiam. Depois 3 para iniciar a terceira, 2 para iniciar a quarta e apenas 1 para desencadear a quinta época e a contagem final do jogo. Claro que muitos dos tiles que saem podem ser de épocas anteriores, o que não causa esse efeito de fim de época, mas ajudam sim o jogo a caminhar para o seu fim. O começo do jogo é lento, mas ele definitivamente se torna mais rápido até o final.



À medida em que você cresce no jogo, coloca seus peões e controla territórios e feudos, você irá ganhar influência numa determinada guilda. Por exemplo, quando controla um feudo da guilda dos cavaleiros, tem um peão cavaleiro no jogo e ainda controla uma vila, você tem cerca de 5 pontos de influência com a guilda dos cavaleiros. O jogador com mais influência se torna o mestre da guilda, o segundo é o seu oficial e o terceiro é o aprendiz (que não faz nada além de ganhar 1 ponto toda fase de pontuação). E saber como lidar com essas guildas é, de fato, a alma de Feudum.

Praticamente metade do manual é dedicado à ação de uma única carta do jogo que permite que você interaja com as 6 guildas do jogo de 3 maneiras diferentes e isso é definitivamente a maior das qualidades de Feudum. Isso porque as guildas funcionam como uma espécie de ecossistema que precisa da interação entre elas pra funcionar. Se uma das guildas é deixada de lado, o jogo morre, as coisas não rodam e faltam recursos para fazer certas ações — pelo menos de forma que elas valham a pena. Claro que eventualmente você pode deixar isso acontecer como uma estratégia para enfraquecer um adversário, mas no geral, isso pode prejudicar a você mesmo lá na frente. Então, pra esse ecossistema funcionar, todos precisam fazer a sua parte.

Fazendeiros produzem recursos que podem ficar no mapa ou na própria guilda, e servem principalmente para alimentar o mercado. Os mercadores, por sua vez, vendem recursos ou os transformam em material para os alquimistas que transformam esses recursos em invenções e barris de krud. As invenções são meios de transporte para se mover no tabuleiro e os barris servem de munição para a guildas do cavaleiros, ou simplesmente seus marcadores de influência que podem vir para a sua mão ou virar monstros no mapa, controlados por você para ficar no caminho dos adversários. Os marcadores podem ser trocados por selos reais com a guilda dos nobres, que vendem os selos ou os negociam com os monges, onde ele se transformam em contas para os terços, basicamente a maneira como os monges exercem sua influência no jogo. Por fim, os monges negociam com os fazendeiros para que as contas se transformem em galinhas (!).



Há três maneiras de interagir com uma guilda. A primeira é negociar diretamente com ela, o que pode ser feito por qualquer jogador. Em tese, quando você negocia, você está adquirindo algo dessa guilda como recursos, invenções, marcadores (que acabam e você precisa de mais pra controlar coisas no jogo), selos reais e até contas de um terço de rosário (sabe-se lá porque o designer decidiu usar isso como o recurso da guildas dos monges). Quando paga por esses itens, acontece outra coisa interessante no jogo que é que quem recebe é o mestre da guilda, junto com o oficial e, por último, uma doação é feita para a caridade. E acontece com frequência de você mesmo ser quem vai receber seu pagamento. É um pouco estranho, e bom ao mesmo tempo.

A segunda ação possível é exercer sua influência como mestre da guilda para passar recursos dela para a guilda seguinte (literalmente empurrar, como diz no manual). Essa é uma das principais maneiras de ganhar pontos no jogo, uma vez que geralmente ela te dá entre 4 a 6 pontos por conseguir realizar com sucesso essa ação. No tema do jogo, você está negociando diretamente com a guilda ao seu lado no tabuleiro, trocando recursos, influências e barris de krud por pontos de veneração.



A última das ações é realizada somente pelo oficial da guilda e, em tese, é o oposto da ação do mestre da guilda. Aqui, ele irá exercer sua influência para puxar itens da guilda ao lado, de uma forma bem menos “forte” que a ação do mestre, ganhando sempre 3 pontos e algum benefício extra relacionado à aquela guilda.

Os jogadores irão pontuar ao longo do jogo por ser influente nas guildas, possuir marcadores em territórios em diferentes regiões do mapa, por vitórias em combates diretos (que são sempre em honra ao rei) — nesse caso eles vão deixar de perder pontos ao invés de ganhar — e por realizar as ações das guildas no momento certo. Ao final do jogo também vai valer ser o governador dos territórios, sendo que o feudos valem mais pontos, além de pontuar pelas viagens épicas, suas moedas restantes e etc. Ou seja, tem que fazer um pouco de tudo pra ir bem. E se focar numa coisa só, pode ter certeza, não vai pontuar tanto porque o jogo precisa que você faça um pouco de tudo.



Mas, assim como é a parte mais interessante, a interação com as guildas acaba por ser uma das partes mais complicadas e difíceis de dominar no jogo. Isso porque existem muitas regras e exceções de como você pode fazer a ação X ou Y, de quanto ganha, como você pode completar as coisas e como isso interage com as demais guildas. Pra se ter uma ideia, ao realizar a ação da guilda dos monges para passar contas do rosário para a guildas dos fazendeiros, existem diversos valores que irão determinar quanto de recursos serão comprados para reabastecer a guilda e, caso ultrapasse 10, esses recursos sobrando irão ainda “respingar” nas guildas dos mercadores e dos alquimistas. Caraca, é muita coisinha. E se isso não bastasse, diversas das cartas de ação do jogo tem o mesmo problema: regras demais, e mais exceções ainda para essas regras.



Para se mover, por exemplo, você pode seguir qualquer caminho do tabuleiro com seu peão. Fácil. Só que não. Se o caminho contiver um barco, você deve pagar 2 moedas para andar por esse caminho. Ok, agora resolveu. Na verdade não. Alguns caminhos só podem ser usados por veículos especiais. Ah, mas isso é legal. Sim, mas tem um porém. Existem 3 tipos de veículos no jogo e cada um deles só serve pra um tipo de caminho. Os submarinos só se movem pelo mar, os navios com velas também se movem no mar, mas também pelos rios. E os balões se movem por cima, mas só de alguns lugares específicos, a maioria por terra. Ou seja, um balão não serve pra ir pra qualquer lugar. E, pra piorar, esses tipos de veículos não estão disponíveis desde o começo do jogo e dependem de serem inventados pela guilda dos alquimistas e, depois, colocados em jogo. Ufa! Aí alguém vai e se move com eles para longe de onde você está e já era, precisa de outro. Precisava mesmo disso? Isso sem contar que você ainda pode usar a carta de 2x pra repetir a ação de movimento e, se fizer isso, andar numa trilha de viagens épicas para ganhar mais pontos por ter se movido mais no jogo.

Assim, se você não está preparado para um jogo de detalhes, Feudum pode não ser para você. O jogo é mais do que um euro econômico com muitas coisas pra se gerenciar. Eu não colocaria ele no mesmo barco de um Food Chain Magnate, por exemplo, onde existe muita coisa, mas o jogo é complexo pelo que ocorre na mesa, e não pelo manual. Com Feudum é o oposto. Na mesa, o jogo é suave, roda sem menores percalços e, fora você precisar recorrer ao manual diversas vezes durante a primeira ou segunda partidas, não existem muitas situações de conflito em que o jogo se complique. Aliás, o manual é excelente e responde a todas as dúvidas. O problema é só achar onde elas estão, na vastidão de regras e caixas com suas exceções.



Mas existem muitos pontos positivos além do jogo em si. A começar pela arte, que muita gente comparou a arte do jogo à animação A Hora da Aventura, o que eu acho particularmente injusto — Feudum é muito mais bonito e bem feito e tem muito mais talento aqui do que lá. No entanto, é inegável que quando você coloca o jogo ao lado de outro qualquer com arte, sei lá, do Klemens Franz, não parece se tratar de um board game, mas de um livro infantil fantástico. E bom, isso é um elogio. Já tem um certo tempo que tenho achado as artes dos jogos todas muito comuns, iguais, sempre com a mesma cara. Parece que todo jogo foi feito pelo mesmo artista, ou mesmo grupo de artistas desde sempre. E quando um cara faz algo diferente, como o caso do Miko, todos correm pra ele e satura do mesmo jeito. Feudum foge do lugar comum na sua arte tanto quanto no jogo.

E os componentes? Esses são outro tipo de deleite visual. Com produção da Panda, mesma fábrica de diversos outros sucessos recentes do Kickstarter, o jogo não deixa nada a desejar de nenhum outro grande projeto financiado nos último anos. Pelo contrário, a produção do jogo é tão incrível que se torna um novo norte pra se seguir. Nesse nível, eu acho que só Mechs vs Minions, da RIOT, seja mais caprichado. Dos dados aos marcadores de rodada, do marcador de primeiro jogador aos maravilhosos tokens dos monstros, tudo é muito bonito. Inclusive o motivo de o jogo ter atrasado cerca de 4 meses foi esse. De acordo com a Panda, o jogo precisou ser meticulosamente montado para não ter qualquer descuido de produção.



Se o manual é ótimo, a produção excelente e a arte do jogo de outro mundo, o que faz então do gameplay tão truncado e problemático? Aqui as opiniões podem variar bastante. Há quem ache que o jogo não recompensa os jogadores por tamanho investimento de tempo e dedicação. Mas minha opinião é de que o jogo simplesmente é ousado demais pro mercado que temos hoje, de grandes produções, de jogos caros e que prometem campanhas, milhares de modos de jogo, miniaturas gigantescas e rejogabilidade infinita. Prometem, mas entregar é outra história.

Feudum não promete uma campanha e nem um jogo pra ir pra mesa todo final de semana. O que ele promete é um jogo divertido e diferente o suficiente pra marcar seu lugar e isso ele entrega. É um euro que pegou o tema mais banal dos jogos de tabuleiro, um reino medieval genérico (50% dos euros tem esse mesmo tema), colocou ideias comuns como alimentar um trabalhador, jogar cartas para fazer ações, andar e pegar itens, controlar guildas com influência e etc, e transformou isso num grande jogo. Ele é complexo? É sim. Ou melhor, ele é complicado — complexo é um wargame desses que você vê os caras mais velhos de guerra (HÁ!) jogando no BGG em 2, 3 semanas de jogo. Mas ele recompensa não na primeira partida que de fato é truncada, mas no decorrer de várias partidas em que se domina cada vez mais as ações das cartas, as exceções, os detalhes da mecânica e o feeling do jogo.



O jogo realmente te passa todo a sensação de crescimento ao longo das rodadas e você aprende a gostar de cada carta, aprende a saber o momento certo de investir em uma ou outra guilda, entende como o ecossistema funciona e que precisa fazer certas coisas pra ele funcionar. Mark Swanson entregou uma obra-prima logo em seu primeiro trabalho e esse posto ninguém tira de Feudum, mesmo com suas falhas.

Vida longa ao Rei!