O primeiro grande problema a ser enfrentado não ocorre apenas com boardgames, afeta a crítica de todas as áreas. Trata-se do paradigma pós-moderno da supremacia das subjetividades. Algumas pessoas defendem que não é possível criticar de modo técnico nenhum objeto, sejam filmes, livros ou boards. De fato, nesse cenário sequer existiria o “objeto” (e consequentemente a objetividade), existiriam apenas opiniões sobre os objetos que revelam informações apenas sobre os gostos e preferências dos opinadores.
Por mais que a verdade por correspondência esteja superada, acredito que noções como “não existem mais verdades e objetividade” são um tanto quanto exageradas. O conceito de verdade através de um consenso racional, por exemplo, nos permite resgatar tais ideias e construir críticas baseadas nelas.
De modo mais prático, essa dificuldade se manifesta através de declarações do tipo “não existem jogos bons ou ruins, apenas jogos que determinado público gosta ou não”. Protege-se o jogo sob um escudo contra críticas e análises. O interessante é que algumas pessoas não estendem tal declaração a filmes ou livros, que apontam como excelentes ou ruins sem maiores problemas. São os jogos que são colocados, de maneira especial, sob o escudo citado. Ou seja, ainda que o problema afete todas as áreas, me parece que afeta os boardgames de maneira mais significativa.
Para a crítica em geral, por mais que essa questão seja bastante discutida, é possível supera-la. Se até em gastronomia onde, literalmente, é o gosto do alimento que se sente, foi possível construir técnicas de análise, por que não seria possível em boardgames?
Uma possível resposta para essa pergunta é o fato de que jogar um boardgame costuma ser uma experiência eminentemente social, salvo as sessões solo. Dessa forma, a qualidade do jogo e da experiência social atrelada a ele podem se misturar muito.
Em geral, em relação a filmes e principalmente livros, essa situação não é tão evidente. A leitura é, via de regra, uma atividade solitária. E por mais que assistamos filmes em conjunto, é uma experiência individual que temos no mesmo momento. A diferença com boards é que, geralmente, trata-se de uma experiência predominantemente coletiva e consequentemente o impacto social da experiência sempre está muito presente.
Isso não é uma particularidade dos jogos, apenas. Assisti ao filme “O apanhador de sonhos” acompanhado de alguns amigos e conhecidos. O filme é pavoroso. Entretanto, provocou tantos risos e comentários que serviu como elemento de união em meu grupo, sem dúvida. É um momento de que me lembro com muito carinho. Mas, não muda o fato de que o filme é muito ruim. Acredito ser muito importante distinguirmos a qualidade do jogo que jogamos da qualidade da experiência social que ele nos proporcionou.
Não se trata de valorizar a qualidade do jogo em detrimento da experiência. Particularmente, eu não preferia ter visto nenhum outro filme, por melhor que fosse, ao invés de “O apanhador de sonhos”, a alegria que me proporcionou transcende a qualidade do filme. Mas, o filme é ruim. E não há problema com isso. Algumas pessoas entendem declarações como “esse jogo é excelente e aquele jogo é horrível” como “você só deveria jogar tal jogo e aquele jogo não vale a pena ser jogado”.
Mas, isso não é verdade. Não é função da crítica dizer que produtos o público deve consumir. Que cada um consuma os produtos que quiser, pelos motivos que desejar. Leio livros ruins só para poder comentar sobre eles, vejo filmes ruins que acho que gerarão momentos engraçados, jogo boardgames ruins que criarão uma situação social divertida. E ninguém ou crítica alguma pode julgar as opções que fiz. Entretanto, não posso impedir que as pessoas debatam sobre esses produtos e se argumentarem de que são produtos ruins dentro dos seus campos, não é, de modo algum, uma ofensa a mim ou qualquer um que faça uso deles. Se discordar, posso inclusive trazer meus próprios argumentos para enriquecer a discussão.
No tocante a crítica, é necessário focar mais no objeto e menos em nossas experiências individuais que o transcendem, como a que descrevi. Não posso dizer “o apanhador de sonhos é um ótimo filme, aumentou a união do meu grupo de amigos”. É uma frase que se refere mais ao meu grupo de amigos do que ao filme em si. Da mesma forma, dizer “Ticket to Ride é um board game péssimo, odeio trens”, se refere mais a aversão a trens do autor da frase do que ao jogo em si.
No fim das contas, por mais que gostemos e as vezes desenvolvamos até mesmo afeto pelos nossos jogos, acredito que tentar coloca-los num patamar diferenciado, imune a críticas, não ajuda a comunidade. Como mencionei no texto "A importância do estabelecimento de uma crítica de boardgames" acredito que criticar nossos queridos boards mais profundamente trará grandes benefícios para o cenário.