
Por Michael C. Alves
Gostaria de lhes contar hoje como foi a jornada, da concepção até o início do financiamento coletivo do Triora: Cidade das Bruxas, das dificuldades, decisões de design, os erros e acertos que tivemos durante toda essa jornada que culminaram no primeiro jogo da Arcano Games que será comercializado internacionalmente.
Este Diário do Designer será um resumo dos eventos, onde buscarei focar nos pontos mais importantes que lhes permitam saber mais sobre como desenrolou o projeto no lugar de uma extensiva e cuidadosa análise histórica da produção do jogo, que seria um tanto mais extensa.
1 - Conceito Original
A equipe da Arcano Games havia acabado de sair do seu primeiro financiamento coletivo de sucesso, o Zona Mágica. Aprendemos muito com aquele trabalho, tivemos acertos, como a entrega em prazo recorde e a qualidade do material, mas também tivemos erros que esperávamos não repetir nos próximos lançamentos.
Zona Mágica, lançado em 2016
Como havíamos acabado de lançar um jogo com forte “take that”, onde os jogadores se atacam diretamente, resolvemos que nosso projeto seguinte seria um jogo oposto a isso, um jogo no estilo “Euro”, para podermos por a prova a versatilidade da Arcano Games.
Estávamos pensando em várias ideias, mas uma que ficou martelando forte foi a ideia de um jogo onde os jogadores seriam os vilões da história.
Algumas mecânicas foram pensadas, inicialmente uma ideia de um draft fechado de cubos de diferentes cores, que seriam draftados de dentro de uma caixa. Dai surgiu a ideia de que os cubos poderiam ser ervas, e nós tinhamos os “vilões”: bruxas!
O jogo começou a ser desenvolvido com essa mecânica, foram adicionados alocação de trabalhadores para permitir a seleção das ações, e diversas localidades foram sendo criadas. Nessa época eu estava pensando em diferenciais para as alocações e tentando trazer algo único ao jogo, foi quando pensei no Inquisidor, uma trilha de inquisição, e caminhos por onde ele poderia seguir.
A ideia surgiu porque tenho um amigo que durante um tempo trabalhou com grafos em sua pesquisa acadêmica e eu conversei algumas vezes sobre o assunto. Essa lembrança me trouxe a ideia de uma mecânica onde uma peça poderia ter vários caminhos a percorrer, mas tivesse de seguir uma rota mais curta, mas que dependeria da posição que os jogadores alocassem as peças. Trabalhei nessa ideia e assim surgiu a mecânica do Inquisidor.
Testamos o jogo nesse estado, mas ele não funcionou muito bem. A aquisição de ervas por draft não me agradou, o restante estava interessante, mas a mecânica das ervas estava gerando pouca interação e tornando o jogo lento.
Mudamos a mecânica de geração de ervas para um sistema de ervas que eram gastas, viravam sementes, e sementes eram trocadas por ervas novas no tabuleiro. Também começamos a trabalhar melhor as localidades e poções para gerar a interação nela.
Nesse processo adicionamos a mecânica de set collection e de “cidadãos” que forneciam recursos por rodada, para permitir que os jogadores pudessem ter uma estratégia de investimento a longo prazo.
Montamos um novo protótipo, testamos e estava rodando bem, era hora de começar a levar ao teste público.
Porém, enquanto tudo isso acontecia, estávamos correndo com o
Contária. Como notamos a complexidade que seria lançar um Euro pesado como
Triora, resolvemos que lançaríamos um jogo menor enquanto trabalhávamos o Triora, para evitar desaparecer da vista do público, por um longo tempo, após o sucesso do financiamento do Zona Mágica.
2 - Primeiros Eventos
Essa foi a primeira versão de exposição que apresentamos
Para o primeiro protótipo, a arte havia sido feita de forma bem simples, somente com objetivo de permitir o teste das mecânicas no evento.
Nessa versão já vemos os quatro locais principais de destruição, o castelo, as poções, os cidadãos, a torre do mago e o cemitério. Mudanças ainda seriam feitas nos efeitos dos locais, mas o esquema geral já estava lá.
A inquisição funcionava de outra forma, mas já tínhamos os bônus secundários e primários dos locais.
A grande diferença era a produção de poções! Ao invés de estar ligada ao movimento da Bruxa, havia uma fase no começo do turno onde todos os jogadores escolhiam secretamente e revelavam ao mesmo tempo uma “carta de poção” que eles confeccionariam naquele turno. As poções tinham diferentes “tempos de preparo” e o jogador que fizesse uma poção mais “rápida” de produzir jogava antes no próximo turno.
O jogo funcionava bem, mas ainda não estava completamente polido.
Coletamos Feedbacks a cada evento que levamos o jogo, e continuamente aprimoramos o projeto.
Na foto acima vocês podem ver que a floresta já era diferente, possuindo 6 e não 4 locais de alocação, e seu funcionamento era mais interessante, eram filas de ervas, quando você plantava você empurrava a fila para frente e colhia a que era expulsa da fila, representando o plantio e crescimento das ervas na floresta. Veja que o tema de plantio e colheita sempre esteve presente, mas ainda estava sendo trabalhado.
Estes primeiros eventos que levamos o jogo foram importantes para o desenvolvimento e aprimoramento do projeto. Levar o jogo ao público colocou a prova cada mecânica e a sua facilidade ou dificuldade de ser compreendida e efetivada.
3 - Aprimoramento
As mecânicas que não funcionavam, eram difíceis do público compreender ou deixavam o jogo burocrático foram sendo removidas e alteradas uma a uma.
Trabalhando melhor o projeto, alteramos a mecânica das Ervas e do plantio. Agora ao invés de você trocar cubos com o tabuleiro, cada jogador teria seu próprio jardim de ervas para usar, plantar e colher.
E esse não foi o principal aprimoramento dado ao jogo. Quando eu decidi retirar a “fase de criar poções”, onde cada jogador escolhia secretamente sua poção, e vincular a produção de uma poção ao uso do “meeple da bruxa”, o jogo ficou muito mais fluido e rápido. Era mais interessante tematicamente, funcionava melhor mecanicamente, e abriu espaço para criarmos o sistema de ordem do turno variável que adicionava mais importância aos valores de inquisição e mais estratégia as escolhas possíveis dos jogadores.
Para fechar com chave de ouro as mudanças, adicionamos mais uma peça que se movia no tabuleiro, o Espirito da Bruxa.
O Inquisidor havia sido a mecânica mais elogiada do jogo, e o que de fato tornava ele muito interessante. Se havia uma peça que era ruim para os jogadores, por que não adicionar uma peça positiva e aprofundar a mecânica que todos estão gostando? Fizemos isso e deu muito certo, o jogo ficava ainda mais estratégico e interessante.
O Triora estava praticamente pronto nesse momento. Nessa época tínhamos acabado de lançar o Contária. Vale notar que o desenvolvimento do Triora durou todo o tempo de criação, desenvolvimento, pré-venda, produção e entrega do Contária.
4 - Acordo com a Meeple BR e a publicação internacional
O jogo ainda tinha o nome de Ruína de Terra-Santa. E estava sendo trabalhado graficamente pelo Rafael Leme na época.
Cartaz de promoção que era levado aos eventos, feito pelo Rafael
Esse seria o estilo geral do jogo na época, bruxas monstruosas, tons de cinza, algo lembrando The Witcher, Diablo, Ravenloft, entre outros tanto títulos que nos inspiraram na época.
A ideia temática do “Ruína de Terra-Santa” era basicamente a mesma do “Triora”, mas ao invés de se situar na cidade histórica de Triora, se situava em um reino fantástico chamado “Terra-Santa”. As bruxas eram mais monstruosas, com a arte mais carregada, porém a ideia seria a mesma, as bruxas em busca de vingança contra a inquisição que matou sua antiga líder.
Nessa época estávamos começando a desenvolver o
Anime Saga. Nos focamos em lançar o “Ruína de Terra-Santa” pois acreditávamos que seria nosso próximo lançamento.
Porém, enquanto apresentávamos o “Ruína de Terra-Santa” em um evento, o pessoal da
Meeple BR sentou para jogar conosco e ao final da partida eles pediram para levar o protótipo com eles, pois estavam interessados em publicar o jogo.
Até aquele momento a Arcano Games havia publicado seus jogos ela mesmo, porém a Meeple BR trazia uma nova perspectiva, a possibilidade de levar o jogo para fora do país.
Havíamos conseguido
know how de edição e publicação, mas não tínhamos contatos fora do país. A Meeple BR também tinha interesse em aprimorar a arte e garantir uma produção feita na China, com peças em madeira e uma qualidade nível internacional.
Fechamos esse acordo, que logo mais nos levaria a fechar uma parceria onde os jogos da Arcano Games passariam a ser distribuidos pela Meeple BR. A primeira questão que a Meeple BR levantou para levar o jogo ao exterior seria a adaptação temática e o nome do jogo.
Após algumas reuniões, a Meeple BR trouxe a ideia de situar o jogo na cidade italiana de Triora, que é conhecida por seus diversos festivais sobre as bruxas todos os anos, assim como por sua história de ter sido a última cidade italiana onde a inquisição causou a morte de mulheres com a acusação de bruxaria.
Fizemos um longo estudo sobre o tema, e ele se encaixava perfeitamente ao que havia sido feito até o momento. Havia algumas adaptações a se fazer, mas a arte seria renovada de qualquer forma, então fechamos essa ideia e começamos a trabalhar para aprimorar este conceito no jogo.
Quando recebemos a capa, feita pelo Dudu Torres & Reiner, baseado no conceito das bruxas, agora mulheres reais, inspiradas em diferentes culturas antigas européias, sabíamos que a escolha tinha sido acertada.
Escolhemos manter um aspecto fantástico, com o espírito da bruxa, o familiar “imp” e o cajado brilhante, mas ao mesmo tempo manter um realismo histórico, com bruxas que são mulheres comuns.
Abrimos uma licença poética ao utilizar a imagem de um cavaleiro cruzado como inspiração para o Inquisidor, ao invés de um inquisidor trajado com roupas eclesiásticas da época. Porém era um sacrifício em acuidade histórica necessária para que o público compreenda a cena. Precisávamos trabalhar com figuras e símbolos conhecidos. Apesar disso, vestimentas e equipamentos semelhantes aos do nosso inquisidor eram bem comuns entre os cavaleiros da época, então não somos completamente anacrônicos.
A Meeple BR certamente trouxe para o projeto o que lhe faltava, “Ruína de Terra-Santa” havia se transformado em um produto muito melhor, “Triora”!
Para fechar com chave de ouro, a Meeple BR confirmou o lançamento internacional com seus parceiros fora do Brasil, e ainda conseguiu que diversas figuras conhecidas do Board Game fora do país jogassem o Triora e dessem sua opinião:
Foi uma surpresa inacreditável ter recebido um feedback tão bom do Shane da Grey Fox Games, alguém que tem vasta experiencia na área.
5 - Desenvolvimento da Arte
Quando fechamos o Triora com a Meeple BR, eles trouxeram o Marcelo Bissoli do Vectoria Studio para o projeto. Aproveitamos as ideias que já haviam sido trabalhadas de design gráfico pelo pessoal da Arcano e pelo Rafael e a partir delas o Marcelo refez toda a arte e o design gráfico do jogo.
Tabuleiro das Bruxas Antigo
Tabuleiro das Bruxas – Por Marcelo Bissoli
Durante todo desenvolvimento do design gráfico do
Triora, eu estive acompanhando o trabalho do Marcelo e me reunindo com ele via Skype para discutirmos as soluções para cada problema que ia surgindo. Tamanho de componentes, como deveria ser cada bruxa, a paleta de cores, tamanhos de texto, soluções para as marcações das poções no tabuleiro das bruxas... resolvemos estes problemas um a um enquanto ele produzia toda a parte gráfica do jogo.
Uma das grandes questões iniciais era como representar as localidades de forma a representar a região de Triora, e colocar as informações sobre os benefícios de cada região. Nos protótipos antigos utilizamos uma interface totalmente desconexa ao tema. Foi quando eu tive a ideia das bandeiras, passei para o Marcelo e ele executou de forma brilhante para compor as localidades onde ele inclusive incluiu até mesmo o símbolo verdadeiro da cidade de Triora, o
cerberus, em seu fundo, resultado de pesquisa feita por ele.
Enquanto isso continuávamos a levar o jogo a eventos, anotando o que não estava gerando boa visualização ou compreensão e passávamos para o Marcelo alterar, garantindo assim que o jogo saísse com alta qualidade final.
Foram muitas horas de trabalho no projeto, eu me dediquei por longas horas a auxiliar o Marcelo e ele se dedicou muitas mais em de fato produzir a arte do jogo. Enquanto isso eu estava reescrevendo o manual, preparando para que ele pudesse diagramá-lo.
O resultado foi o jogo completo que vocês podem ver na imagem a baixo. Este é o
Triora: Cidade das Bruxas!
6 - Considerações Finais
Foi uma longa jornada até chegar ao final do Triora, e eu continuo trabalhando incessantemente até agora para polir os detalhes finais, ajustar o manual, corrigir pequenos erros e fazer a divulgação do financiamento coletivo, mas tenho certeza de que tudo que investi nesse projeto valeu a pena.
Durante o projeto tivemos o desenvolvimento, financiamento, produção, entrega e lançamento do Anime Saga, que recebeu duas indicações ao
Prêmio Ludopedia, ficando em segundo lugar no voto popular, ou seja, durante o desenvolvimento do Triora desenvolvemos, testamos, aprimoramos, produzimos e lançamos dois outros jogos de qualidade.
O Triora recebeu um longo tempo de testes e esteve presente por anos em praticamente todos os maiores eventos do Estado de São Paulo, alguns no Estado do Rio de Janeiro, e em duas edições do Diversão Offline. Por isso acreditamos que o Triora é o nosso melhor lançamento até agora. Todos os reviews e depoimentos que recebemos dos jogadores nos mostram que fizemos um bom trabalho.
Não é o Triora só um jogo nacional, mas um jogo que recebeu apreciação internacional e isso faz com que todo trabalho e dedicação que investi nele tenham valido a pena.
Estamos no momento entrando na última semana do financiamento coletivo do Triora e ainda estamos perseguindo a meta inicial. Apesar de alguns temerem que o jogo possa não ser financiado, eu acredito que ele deva bater a meta inicial e alcançar ainda algumas metas estendidas.
Sabemos que os financiamentos coletivos ultimamente estão sendo mal vistos devido a casos de atraso, baixa qualidade ou simplesmente a não entrega do produto, apesar da Arcano Games sempre ter entregue seus jogos com boa qualidade de material e tempo recorde de envio, isso parece estar pesando em nosso financiamento. Soma-se a isso a grande quantidade de financiamentos abertos ao mesmo tempo e os excelentes lançamentos de jogos internacionais de grande renome sendo trazidos por várias editoras para o Brasil, um mercado um tanto árido.
Nós ainda acreditamos na plataforma de financiamento coletivo como um meio de interagir com a comunidade, trazer o jogo a um preço reduzido e conseguir melhorias para o jogo, mas os atuais financiamentos ativos falarão bastante sobre o futuro dos financiamentos no Brasil.
O Triora será lançado internacionalmente de qualquer forma, mas infelizmente a tiragem para o Brasil depende do financiamento coletivo ter sucesso, já que no caso contrário isso nos indica apatia do público quanto ao jogo, o que torna pouco interessante trazer o jogo para cá.
A ideia original, mesmo com o financiamento coletivo obtendo sucesso, já era trazer um lote pequeno ao Brasil, basicamente somente as cópias financiadas e uma reserva de pequena para serem vendidas pela Meeple BR, já que todo o resto da produção será destinada a venda internacional. Seguiremos pelo mesmo caminho caso o financiamento não seja bem sucedido, mas não traremos cópias ao Brasil, infelizmente.
Eu tenho confiança que os últimos dias vão alterar essa situação e acredito que a situação econômica do Brasil esteja contribuindo negativamente para o sucesso dos financiamentos atuais, mas não creio que teremos uma reversão tão cedo deste quadro. Só podemos confiar na qualidade do nosso jogo, mostrar ao público o que as pessoas que jogaram estão dizendo sobre ele, trabalhar para mostrar mais sobre nosso trabalho, pois elas podem confiar em nós para entregar o produto com qualidade e dentro do prazo.
Agradeço a todos que apoiaram o Triora, seja via financiamento, seja ajudando na divulgação do jogo. Sem vocês esse projeto nunca chegaria onde ele está hoje.
Agradeço também a todos que ajudaram a testar o jogo durante os diversos eventos, assim como ao Marcelo Bissoli, e as equipes da Meeple BR e da Arcano Games, pois o jogo só existe devido ao trabalho de todos vocês.
Por fim agradeço a todos que nos ajudaram testando o jogo como playtesters ou durante os eventos, em especial ao Rafael, Zang, Gustavo, Natália, Buda, Bio e Leandro, grandes amigos que ajudaram durante todo processo.
E que o
Triora seja mais um de muitos que ainda publicarei, graças ao apoio de todos.
Obrigado.
Michael Alves
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