Direitos autorais: venda de importados, traduções e afins – um pequeno tratado
Com a crescente entrada dos jogos importados em nosso país, muitas dúvidas têm surgido, e diversas discussões são travadas diariamente a respeito, aqui e em outros espaços da internet e fora dela.
Pois bem, eu mesmo já me deparei com algumas dessas dúvidas, e na qualidade de usuário deste forum vejo-me na obrigação de informar, alertar, instruir, visando sempre o correto desenvolvimento e propagação sadia de nosso hobby.
Observo, desde já, que o texto a seguir é longo, porque procuro retratar alguns aspectos envolvendo a importação, comercialização, tradução e divulgação dos jogos importados, e seus reflexos na esfera dos direitos autorais e do consumidor. Portanto, se você está sem tempo, ou se sua paciência é curta, deixe para ler depois, ou simplesmente ignore o tópico.
Observo, ainda, que trata-se de um rápido estudo que eu mesmo fiz, para mostrar a todos alguns detalhes da legislação a respeito, estabelecendo direitos e deveres. Em absoluto o texto é perfeito, e como tudo nesta vida está sujeito a alterações e correções. Peço encarecidamente, portanto, a todos os que se interessarem e conhecerem de perto os temas, que façam intervenções e correções, já que o único objetivo é prestar boas informações. As correções serão sempre bem vindas e aceitas, discutidas e implementadas. As especulações e tergiversações, serão solenemente ignoradas. Passemos, então, à análise.
O primeiro aspecto que quero abordar é a respeito de algo que tenho feito, e que às vezes tem gerado alguns alertas de colegas, ou temores das pessoas em geral. São as traduções de manuais.
Eu compro um jogo, para poder jogar em casa com pessoas que nem sempre dominam as línguas estrangeiras, e que não estão muito acostumadas ao mundo boardgame moderno. Esses jogos muitas vezes têm manuais complexos, quase livros mesmo, com linguagem específica, dificultando muito o entendimento e por consequência o interesse das pessoas. Resolvi então que irei traduzir, um a um, todos os jogos que acrescentar à minha pequena – mas crescente – coleção.
Comecei como todo mundo: procurando aqui e ali na internet, pra ver se achava algum material já pronto. Vi que tinha bastante coisa, mas nada relativo aos jogos que já possuía ou que pretendia adquirir. Fazendo um exame de consciência, imaginei que estava sendo preguiçoso, e que, já que não achei o que queria, deveria contribuir para isso, traduzindo e disponibilizando o material a quem se interessasse. Resolvi, contudo, por respeito aos detentores dos direitos autorais dos jogos, comunicar diretamente a eles minhas intenções, aguardando alguma manifestação, para poder publicar. Foi assim com Archipelago: mandei um e-mail para a Ludically, que é a editora do jogo na França, falando a respeito. Alguns dias depois, recebí um entusiástico e-mail do próprio Chris Boelinger, autor do jogo, não só apoiando a iniciativa como fornecendo todo o material gráfico para facilitar a execução. Mandei um e-mail para a Asmodée, detentora dos direitos do jogo Splendor, com o mesmo fim, e eles encaminharam minha mensagem para a Galápagos, que irá distribuir o jogo no país. Novamente, veio mensagem positiva, apoiando a idéia e fornecendo o manual original deles, para publicação (postei na página do jogo há alguns dias). No mesmo sentido, foram minhas mensagens para outras empresas nacionais e estrangeiras, que até agora não me responderam (salvo uma, que não se opôs à ideia, mas informou que havia outras empresas envolvidas, etc.).
Tenho em mãos algum material já pronto, e estava esperando o aval dessas pessoas/empresas para publicar. Contudo, tendo em vista a ansiedade demonstrada por alguns usuários do forum, que querem ter acesso às traduções, resolvo nesse instante deixar de lado o respeito inicial, em nome do bem comum. Vou publicar, mesmo sem as respostas!
Aqui começa a discussão: estaria eu violando os direitos autorais de outras pessoas, ao fazer as publicações? Não ficarei exposto a reclamações e ações judiciais? E os demais tradutores que encontramos aqui, não violaram direitos de terceiros ao publicarem seus trabalhos?
Afirmo, sem medo de errar, que não!
Meu cuidado, ao solicitar as autorizações, foi simplesmente por consideração e respeito, e por achar que essas pessoas deveriam saber que existe Brasil, que aqui vive um povo interessadíssimo no que se produz lá fora, para quem sabe voltarem suas atenções para cá, em benefício de nós todos. Mas, legalmente falando, não há com as publicações qualquer violação a direito autoral.
A lei Federal 9610/98, que dispõe sobre direitos autorais e outras providências, textualmente diz o seguinte:
“Art. 8º: Não são objeto de proteção como direitos autorais de que trata esta Lei:
...
II- Os esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios.”
Portanto, vemos que especificamente com relação aos manuais, livros de regras, guias, etc., não há que se falar em direitos autorais. Quanto aos jogos em si, estes sim são protegidos pela legislação, e sua reprodução não autorizada representará violação legal, mas não as regras a eles inerentes. E isto por uma questão muito simples: as “regras do jogo” não são consideradas obra artística, e sim um meio necessário para o correto uso e execução daquilo que se vende. Tratam-se apenas de guias, mostrando como usar, mas aos quais ninguém está obrigado: posso simplesmente criar minhas próprias regras para meus jogos, posso alterar as regras originais, etc. , sem ferir a obra intelectual e/ou artística que é o jogo. Num exemplo mais claro, seria o mesmo que se proibir a reprodução de bulas de remédio, sendo que o bem protegido pela lei é a fórmula do medicamento, não seu modo de uso.
Por mais que se diga a respeito, por maiores que sejam as elocubrações em sentido contrário, o texto da lei é bastante claro e taxativo, não comportando interpretações. Não estou - ou estamos os tradutores, portanto - violando qualquer direito. Até porque, para se falar em apropriação de direitos, em violações, etc., precisaria ser perquirido, primeiramente, onde está o prejuízo, e onde está o lucro, e no nosso caso aqui nenhuma dessas questões encontra resposta. Ao contrário de prejuízo, os detentores dos direitos sobre os jogos lucram com a iniciativa: seus jogos são divulgados, e o acesso a eles fica garantido pelas traduções a um número incontável de possíveis compradores, aumentando seus lucros em consequência. E quem traduz o faz de forma gratuita, sem qualquer contraprestação, sem qualquer interesse que não seja o de auxiliar a comunidade. Diferente seria se comercializássemos os manuais, porque aí sim estaríamos auferindo lucro.
Além disso, os próprios editores disponibilizam os livros de regras abertamente pela internet, sem qualquer alerta, advertência ou sistema de proteção. São abertos para quem quiser fazer o download.
As traduções, portanto, devem ser tratadas como o que realmente são, diante da lei: documentos. Como tais, ainda são passíveis de salvaguardas: seus autores podem registrar seus papéis em Cartório (não no Ecad, que é a entidade encarregada de fiscalizar direitos autorais), para conservar-lhes a originalidade e destino. No meu caso específico, tomo o cuidado de registrar em cartório todas as traduções, o que me concede a facilidade de acionar judicialmente quem quer que seja que as utilize comercialmente, desvirtuando seu fim , que é a distribuição gratuita. Mas é só o que se pode dizer a respeito das traduções. Não há violação de direito autoral, quando se traduz e disponibiliza gratuitamente o livro de regras de um jogo.
Entro agora em outra seara, bastante polêmica: a obrigação de traduzir, na verdade, cabe a quem vende, importa, comercializa, aufere lucro com os produtos importados que trazem para o país! No Código de Defesa do Consumidor é bastante clara a exigência, em seu artigo 31, sujeitando o comerciante que desobedecê-la a severas sanções. Ao importar e vender um jogo em território nacional, o indivíduo é obrigado a fornecer, juntamente com o produto, todas as informações necessárias ao seu uso em língua portuguesa. Pouco importa se o vendedor é ocasional, se fez a venda de apenas uma unidade que importou para aliviar o custo do seu próprio exemplar. Ou ainda que seja contrabandista (sim senhores, quem importa e vende sem recolher impostos é contrabandista, na acepção da palavra). Todos têm a obrigação de disponibilizar as informações necessárias para o correto uso em língua portuguesa, sob as penas da lei. E podem fazê-lo sem medo, porque não estarão violando direitos autorais ao traduzirem. Estarão, ao contrário, cumprindo uma determinação legal. Deixo assim o alerta: aos que vendem, procurem fornecer traduções claras dos seus produtos. Aos que compram, exijam sempre a tradução.
Espero ter contribuído com alguma coisa, me desculpo se me estendi muito, e agradeço a atenção de todos. Críticas construtivas, e discussões saudáveis, serão bem vindas.
Por último, um comunicado: ainda hoje devo submeter à apreciação e aprovação da administração do forum o livro de regras e o guia de referência do jogo The Witcher- Adventure Game. Os demais vou publicando conforme encontre tempo, e conforme terminar os trabalhos. Tem um jogo em particular que estou traduzindo, que dizem será lançado em algum momento por uma editora nacional. Como é nacional, tomei o cuidado de enviar-lhes hoje um e-mail, para confirmar a informação, e para solicitar a autorização. Não porque precise, mas porque tenho profundo respeito pelo trabalho deles. Este, então, vai esperar mais um pouco, espero que me respondam .