Em 1959, a gravadora de Elvis Presley lançou o disco “50,000,000 Elvis Fans Can’t Be Wrong: Elvis’ Gold Records”. O título era uma jogada de marketing irresistível: se cinquenta milhões de pessoas adoram o “The pélvis”, quem ousaria discordar? Mais de meio século depois, essa lógica sobrevive firme — só trocamos os discos de vinil pelos tabuleiros e miniaturas.
Visitar os rankings da Ludopedia ou do Boardgamegeek (BGG) é como passear por uma vitrine de “só podem ser bons”. Diante de tantos números e medalhas douradas, a frase se transforma: de “não podem estar errados” para “não devem estar errados”.
Mas… será mesmo?
O BGG usa uma fórmula que mistura nota média, número de votantes e um ajuste matemático misterioso (que até hoje ninguém parece compreender completamente). Em outubro de 2025 – mês em que decidi mergulhar no tema, entre uma tarde de sesta e outra de leitura - o top 10 estava assim:
1. Brass: Birmingham
2. Pandemic Legacy: Season 1
3. Ark Nova
4. Gloomhaven
5. Twilight Imperium IV
6. Dune: Imperium
7. Terraforming Mars
8. War of the Ring II
9. Dune: Imperium – Uprising
10. Star Wars: Rebellion
Um cardápio eclético de euros pesados, campanhas cooperativas e guerras espaciais. E, mesmo com tanta diversidade, a comunidade “geek” trata essa lista quase como um cânone. Afinal, mais de cinquenta mil votos não podem estar errados, certo?
Por aqui, em solo brasileiro, a Ludopedia apresenta uma fotografia parecida. No mesmo outubro, o top 10 nacional era:
1. Brass: Birmingham
2. Projeto Gaia
3. Gloomhaven
4. The Castles of Burgundy – Special Edition
5. Terraforming Mars
6. Terra Mystica
7. Ark Nova
8. SETI: Busca por Inteligência Extraterrestre
9. Gloomhaven: Presas do Leão
10. Brass: Lancashire
O ranking brasileiro mostra o amor duradouro pelos euros clássicos, e, assim como Elvis, que embalava corações em escala global, esses jogos também se transformaram em ícones de devoção local. Contudo, a lista não se resume à reverência aos veteranos do gênero: ela abre espaço para novidades como SETI: Busca por Inteligência Extraterrestre. Mas a ascensão de SETI no ranking nacional desperta uma pergunta incômoda: será que sua presença reflete, de fato, uma apreciação genuína pelo jogo ou apenas um efeito de concordância coletiva?
A ascensão de SETI talvez seja só um ensaio daquilo que o hobby faz em escala maior: transformar o aplauso coletivo em métrica de excelência.
É curioso perceber como essa necessidade de concordar ou, pelo menos, de não destoar, se repete geração após geração.
Elvis já havia provado que basta o coro ser alto o suficiente para que qualquer melodia pareça boa.
Afinal, o título do disco de Elvis já explorava o mesmo raciocínio, o “argumentum ad populum”: se milhões aprovam, é porque deve ser bom. E é essa mesma lógica que continua a ecoar, agora entre meeples e cartas: se muitos jogadores votaram determinado jogo é top 10, quem sou eu para contestar?
Mas eis a ironia: décadas depois, o próprio Elvis entra e sai de listas de “melhores discos da história”. A crítica amadurece, o público muda, e o consenso se dissolve. Nem mesmo os cinquenta milhões permaneceram unânimes.
O mesmo acontece nas outras artes. O cinema consagra O Poderoso Chefão e Um Sonho de Liberdade como obras máximas do IMDb, enquanto clássicos como Cassino (outro filme de máfia) e Os Imperdoáveis (outro filme de vingança e redenção) ficam fora do radar popular.
Na música, as listas da Rolling Stone mudam de ano em ano - ora Beatles, ora Led zeppelin, ora Beyoncé, ora Annita (brincadeira) - mostrando que o gosto é volátil, histórico e, claro, influenciável.
Por que seria diferente com jogos de tabuleiro?
O problema não é gostar de jogos populares; é acreditar que popularidade é sinônimo de qualidade universal.
Nem todo mundo que ouvia Elvis realmente gostava de rock’n’roll, muitos apenas sintonizavam naquilo que tocava sem parar nas rádios, embalados mais pela repetição do que pela afinidade estética.
O mesmo acontece no nosso hobby: boa parte dos jogadores não chega aos títulos por descoberta pessoal, mas por exposição constante. Os algoritmos do youtube, do spotify ou do instagram fazem as vezes do rádio e decidem o que “deve ser bom”, entre uma live vibrante do Covil, uma análise espartana do Sandro do Boards & Burgers (contém ironia), ou o entusiasmo quase litúrgico do Bruno do Tipo War gritando “GENIAL!” como quem batiza um novo clássico.
O hype vira um farol, e o jogador, um marinheiro em busca do porto seguro da aprovação coletiva.
Esse comportamento cria uma curiosa dinâmica cultural: não jogamos apenas o que nos atrai, mas o que o meio nos ensina a desejar. As mesmas engrenagens que transformaram Elvis em mito (rádio, marketing e repetição), hoje movem o hype boardgameano. Jogos viram eventos antes mesmo de serem jogados, e a opinião formada nasce de segunda mão, moldada por vozes carismáticas em negrito. Gostar deixa de ser um ato espontâneo e se torna uma adesão ao consenso.
Nas rodas pós jogatina, essa tensão é frequente: quando alguém afirma “Brass Birmingham é o melhor jogo de todos”, está descrevendo uma preferência ou exigindo concordância?
E nesse aspecto, os rankings funcionam como instituições do gosto. Para o novato, o top 100 do BGG parece um panteão objetivo. Contudo, cada nota é uma média de experiências individuais, moldadas por hype, nostalgia e até pela complexidade do jogo (afinal, quanto mais pesado o euro, mais “séria” parece a diversão e, provavelmente mais alta a nota).
Essa “sabedoria das massas” é filtrada por um recorte específico: majoritariamente masculino, ocidental e, no caso brasileiro, com poder aquisitivo para importar caixas de 3 kg. Chamar isso de consenso universal é, no mínimo, ingenuidade.
Por isso, a comparação anterior com cinema ou música ajuda a perceber que ranking não é selo de qualidade, mas termômetro de tendência. Ele mostra o que está sendo jogado e discutido, mas não define o que você deve amar.
O verdadeiro gosto, no nosso hobby, nasce de convivência, das mesas de amigos, das derrotas por 02 pontos ou vitórias acachapantes, da jogada interminável (e muitas vezes retornada), do take that injustificado, mas também dos vídeos de canais, das discussões dos fóruns, e/ou dos posts exaltados jurando ter sido a melhor partida em décadas.
Cada nota é uma tentativa de registrar uma emoção, e não uma verdade. Por isso, os rankings se tornam uma espécie de retrato coletivo da comunidade, com todos os seus vícios, paixões e modas. Há quem avalie alto por gratidão à diversão compartilhada, e há quem baixe a média por frustração com uma partida mal explicada.
As editoras conhecem bem essa lógica e alimentam o ciclo. Investem em marketing, influenciadores e lançamentos cercados de expectativa, para garantir que as primeiras avaliações – as mais decisivas – sejam generosas. Quando Ark Nova surgiu no BGG, foi alçado ao top 10 em algumas semanas graças a vídeos que o chamavam de “o novo Terraforming Mars”. Depois de meses, muitos jogadores reclamaram do tempo de setup, a dificuldade de acessar as cartas e, por isso, de modificar um estratégia no meio da partida (todas características que o design do TFM apresenta com boa qualidade). Entretanto, o placar já estava definido: o hype havia transformado opinião em estatística e os terrenos no zoológico superaram os de Marte.
Os grupos de what’sapp e fóruns completam o circuito de validação. Se todos elogiam SETI como o “melhor jogo do ano”, é provável que você também dê uma nota alta, não apenas por convicção, mas por empatia social. A avaliação se torna um ato de pertencimento: dar 10 é, também, concordar com o grupo.
E há mais um ingrediente extra nessa matemática das notas: o preço. Jogos caros, especialmente importados, recebem médias elevadas, talvez porque admitir que não valeram o investimento seria doloroso. Já os títulos nacionais, mais acessíveis, tendem a ter menos votos e menos visibilidade, mesmo quando entregam experiências notáveis. Assim, os rankings deixam de medir apenas qualidade e passam a refletir também o poder aquisitivo e o contexto de quem vota.
Para arrematar, voltemos a Elvis. Cinquenta milhões de fãs não estavam “errados”: apenas reagiam ao contexto, ao som e ao momento histórico que os cercava. Da mesma forma, dezenas de milhares de votos no BGG e centenas na Ludopedia não ditam verdades absolutas, apenas refletem tendências, afetos e bolhas.
Gosto é pessoal, uma mistura de contexto, vivência, mecânica favorita e humor do dia.
Rankings são úteis como curadoria, mas tomá-los como escritura sagrada é empobrecer a pluralidade do hobby. São úteis como bússola, mas não como dogma, afinal, toda nota carrega mais emoção do que exatidão.
Portanto, sinta-se livre para venerar Brass Birmingham (como eu) sendo sua ‘I need your love Tonight” (primeira fixa do disco do Elvis) e ignorar Gloomhaven se caixas gigantes e campanhas eternas não te seduzem.
Só se lembre: na próxima atualização, novos títulos surgirão e talvez, quem sabe, cinquenta milhões de jogadores ainda sejam incapazes de errar… ou não.