Antes de mergulhar nesta análise, gostaria de situá-la em um movimento maior e fascinante: o uso crescente de jogos de tabuleiro como ferramentas em contextos educacionais, profissionais e, o que é o caso aqui, de pesquisa. Essa é uma tendência que venho acompanhando com grande interesse e que mostra a maturidade do nosso hobby. Inclusive, foi a partir de uma postagem anterior que fiz sobre meu desejo de criar um jogo sobre o SUS que tive contato com um movimento acadêmico no Rio de Janeiro que, acredito, dialoga diretamente com a proposta deste "Semeando o Cuidado" (
O que jogar para fazer um jogo sobre o SUS: Discussão e Sugestões).
Mais do que somente uma análise, este texto é uma carta aberta de um entusiasta de jogos de tabuleiro para a ousadia das pesquisadoras por trás de "
Semeando o Cuidado". Enxergo esta avaliação menos como uma crítica e mais como um convite ao diálogo. Admiro profundamente a iniciativa da Fiocruz de pesquisar a potencial dos jogos na educação em saúde e o potencial desse jogo em específico. Para nós aqui é espetacular saber que tem instituições tão sérias e potentes apostando nos jogos de tabuleiro. Espero que esta avaliação seja vista como uma colaboração construtiva. Quem sabe, um dia, eu não possa ajudar a semear novas ideias com vocês?
Destaque para instituições financiadoras do projeto na caida do jogo
Antes de Tudo, o Nobre Propósito do Jogo
Primeiro, é fundamental contextualizar: "
Semeando o Cuidado" não é um jogo comercial que você encontrará na prateleira da sua loja favorita. A própria caixa informa que sua venda é proibida. Seu objetivo principal é ser um recurso pedagógico no âmbito do SUS, uma ferramenta para o diálogo sobre o papel das plantas medicinais e saberes populares na saúde da população em meio à escassez e falta de acesso a recursos tecnológicos e cada vez mais caros da medicina tradicional.
Tive o prazer de jogar algumas partidas com um amigo que também atua com políticas públicas sociais. A experiência foi divertida e rendeu ótimas conversas. Esta análise, portanto, vem da perspectiva de um jogador, pensando em contribuir no "jogo como jogo", ciente de que seu habitat natural são as equipes de saúde e comunidades no âmbito da educação popular em saúde.
Onde o Jogo Brilha e Onde Pode Crescer
O jogo é claramente inspirado nas obras-primas cooperativas de Matt Leacock, como
Pandemic e
A Ilha Proibida – a montagem do tabuleiro com
tiles modulares remete diretamente a este último. E aqui reside o cerne da minha principal observação.
Visão daqs semelhanças na montagem do tabuleiro
O que torna os jogos de Leacock tão eletrizantes é a sensação de um desafio crescente, uma corrida contra um mal que vai crescendo no tabuleiro. Seja a propagação de doenças em
Pandemic ou a inundação iminente em
A Ilha Proibida, há uma força antagônica que pressiona os jogadores a cada rodada.
Em "Semeando o Cuidado", essa tensão é mais branda – talvez brande demais. Existem desafios que bloqueiam espaços no tabuleiro, mas eles não escalam de forma a criar uma ameaça constante ou uma condição de derrota iminente. No
Semeando o Cuidadoa única condição de derrota é não conseguir montar um mínimo de coleção que combina plantas, receitas de preparo e doenças que esses preparos tratam. Para um jogo cooperativo, um desafio mais acentuado costuma ser o ingrediente que garante a rejogabilidade e o engajamento a longo prazo, aqui senti um desinteresse pelo jogo com aquela sensação de "já desvendamos o quebra-cabeça" com poucas partidas.
Uma Faísca Inovadora: A Desinformação como Inimigo
Imagino que a decisão de design foi focar nos preconceitos contra os saberes populares como o principal mal a ser combatido, evitando dar protagonismo às doenças. É uma escolha temática poderosa e coerente.
No entanto, enquanto jogava, uma ideia não saía da minha cabeça: e se fosse incluído como elemento de propagação da "fofoca" ou das "fake news" sobre os tratamentos populares? Imagine um mecanismo em que, a cada rodada, "tokens de desinformação" se espalham pelo tabuleiro, bloqueando o acesso a plantas ou gerando novos desafios. Isso, talvez pudesse ser mesclado com a propagação das doenças que já estão nas cartas de forma informativa, com certeza criaria uma tensão temática e mecânica incrível. Seria a luta do Cuidado contra a Desinformação e a Doença, algo tão atual e potente!
Sei que o desenvolvimento de um jogo dentro da academia tem suas particularidades. Os prazos de projetos de pesquisa são, digamos, "maravilhosos” – só quem fez pós-graduação entende. O que estou sonhando aqui talvez exigisse mais tempo e recursos.
O Ponto Forte Inquestionável: O Set Collection e A Semente Pedagógica
Onde o jogo absolutamente triunfa é em seu mecanismo de set collection. É elegante, temático e incrivelmente pedagógico. A satisfação de coletar as plantas certas para tratar uma condição específica é real. Você termina a partida genuinamente curioso, querendo saber mais sobre aquela plantinha que tem ali no seu bairro que pode aliviar a dor de barriga que você às vezes sente. De quebra, no final do manual traz uma sessão sobre cada planta do jogo e seus usos medicianais. O trabalho de pesquisa e design para montar essas combinações deve ter sido trabalhoso, e o resultado é excelente.
Agora, imagine essa mecânica de set collection atrelada a um sistema de propagação inovador como o da desinformação. Acredito que o resultado seria tão único que poderia arrancar aplausos do próprio Matt Leacock.
Destaque para apresentação do set collection no manual do jogo
Conclusão e um Convite ao Futuro
Mesmo com minhas sugestões, não tenho dúvidas:
Semeando o Cuidado atinge seu objetivo principal com louvor. Ele gera curiosidade, educa e celebra os saberes populares.
Ainda espero testar algumas regras caseiras para aumentar o desafio, como limitar a troca de cartas a uma por localidade e ajustar alguns poderes de personagens que pareceram mais fortes que outros ou inserir esse elemento de propagação. Se encontrar algo interessante, compartilho com vocês aqui.
E, claro, fica o convite no ar: Fiocruz, equipe de desenvolvimento, se um dia se interessarem em explorar essas ideias, saibam que há um fã aqui pronto para colaborar. Que tal uma expansão chamada "Semeando o Cuidado: Fofocas e Doenças"? O convite está feito! ;P