Jogos que resistem ao teste do tempo tendem a se tornar abstratos.
Xadrez nasceu como um Wargame super temático. Ao longo dos séculos, passando por diversas culturas o jogo aos poucos foi perdendo a conexão com o tema original e aos poucos se tornou mais do que abstrato. Se tornou um tema em si mesmo, a ponto da imagem acima ter se tornado um meme mundial sem que maiores explicações sejam necessárias.
No mundo dos jogos modernos porem, jogos abstratos parecem não fazer tanto sucesso. Na maioria das vezes os autores tentam colocar alguma camada de tema no jogo, ainda que para fins de explicação ou meramente decorativos. É o caso do Azul ou do Jaipur, onde até existe um tema, faz algum sentido, mas poderia ser qualquer outra coisa.
Hoje porém vamos falar de dois jogos abstratos RAIZ, que foram criados dessa forma, não se preocupam em vender nenhum conceito além da realidade criada por sua próprias regras e são de informação perfeita, deixando a decisão de tudo o que acontece na mão dos jogadores. São eles o DVONN e o YINSH, desenvolvidos respectivamente em 2001 e 2003 por Kris Burm, o criador do Projeto GIPF.
O motivo de trazermos esses jogos para a discussão é que eles foram recentemente incluídos na seleção de jogos do BGA, criando a possibilidade de muito mais gente vir a conhecer essas pequenas obras primas do Hobby.
Nesse artigo vou falar um pouco do projeto GIPF, como conheci seus jogos e fecharei com um mini review para cada um deles, com as minhas impressões e algumas dicas de estratégia.
Não seria possível escrever esse artigo sem a ajuda do meu amigo Gilson Segundo, que jogou diversas partidas dos três jogos que cito nesse artigo. Ele é um dos organizadores do Grupo Cassino no BGA, trabalha com eventos em Salvador e ainda encontra tempo para cuidar da
Boar Games, uma loja online que atende todo o Brasil.
Incansável em traduzir trechos do BGA e explicar regras, Gilson é uma dessa figuras que faz muito pelo Hobby no Brasil, sem talvez receber o reconhecimento que merece. Fica aqui a minha singela homenagem.
Projeto GIPF: compre as peças e crie os jogos
Kris Burm é um designer belga que começou a desenvolver jogos em 1991. Em 1997 ele lançou o GIPF, um jogo abstrato que acabou servindo de base para a série que leva hoje o seu nome. GIPF é uma abreviatura de “gipfel”, ou cume da montanha.
Os jogos do Projeto GIPF tem uma série de características em comum: todos eles são jogos abstratos de informação completa para dois jogadores, seus tabuleiros sempre são hexagonais e as peças sempre são de pelo menos dois tipos, as peças normais e as “potenciais˜, que normalmente determinam a estratégia do jogo.
A proposta original era de lançar conjuntos de peças com exemplos de jogos, mas que permitissem que os jogadores criassem suas próprias regras, inclusive misturando peças de outros jogos da série. Sinceramente, acho que isso não deu muito certo. A maioria das pessoas é jogadora e não designer!
A série possui 9 jogos lançados: GIPF, TZAAR (que substituiu o TAMSK), DVONN, YINSH, ZERTZ, PÜNCT, LINGK, e MATRIX GIPF, que usa peça de todos os jogos da série.
Desses eu já joguei (e possuo) GIPF, TZAAR, DVONN e YINSH e ZERTZ. Não são jogos muito fáceis de achar, mesmo em leilões mas, no exterior, não é difícil comprá-los. A questão é que você não os acha em qualquer loja e eles nunca são muito baratos.
Além disso, como jogos de duas pessoas, eles acabam não tendo tanta chance de ir pra mesa. Eu os compro mais por colecionismo do que porque vou jogá-los de verdade.
Porém, quando você encontra alguém que gosta desse tipo de jogo e vence a preguiça de botar na mesa, é uma delícia jogá-los. Porque ele entrega muita coisa, mesmo não jogando bem você consegue ver algumas boas jogadas (ou seu adversário as vê) e você consegue ir destilando a malícia do jogo aos poucos.
Jogatina Online Raiz
Não é difícil encontrar implementações rudimentares dos jogos do Projeto GIPF por aí, mas a única plataforma onde eu encontrei que permitisse conhecer os jogos de um jeito relativamente fácil foi o
BoardSpace.
Esse site foi criado por Dave Dyer como uma forma de jogar ZERTZ e que acabou crescendo bastante, tendo hoje uns 110 jogos a disposição (a grande maioria deles jogos abstratos).
Embora a interface seja horrorosa, estilo applet java anos 90, os jogos são bem implementados e normalmente o site fornece um Bot contra quem você pode jogar.
Sendo muito sincero, nunca encontrei ninguém que conhecesse esse site e com quem eu conseguisse jogar uma partida, mas o fato de ter os Bots permite com que você aprenda os jogos. Além dos jogos da série GIPF, ele tem implementações de alguns outros jogos comerciais, como o Hive e Tammany Hall.
Se você não se importar com a aparência, vale a pena conhecer. O site fornece um APP para ser instalado na sua máquina, mas eu acho que é menos invasivo usar a versão para browser. Ele cria uma máquina java virtual e roda direitinho no Firefox.
DVONN (2001)
Em DVONN, cada jogador possui 23 peças (que são basicamente argolas brancas e pretas, respectivamente) colocadas em um tabuleiro hexagonal com 49 lugares (que são completados com 3 argolas vermelhas, chamadas pelo nome do jogo DVONN, que são neutras).
Na regra original, o tabuleiro começa vazio e cada jogador coloca uma peça de cada vez (sendo que o primeiro jogador coloca duas peças vermelhas e o segundo jogador coloca a restante e, ao terminar, começa a fase da retirada).
Eu sugiro porém que no início se jogue com a configuração aleatória, onde as peças já estão colocadas de antemão no tabuleiro. Sem ter jogado e entendido a malícia do jogo, a fase de colocação de peças não terá tanta graça.
Uma vez que se esteja com as peças colocadas, o turno consiste em pegar as peças de uma posição onde a peça de cima seja da sua cor, andar com ela o número de casas equivalente ao número de peças da pilha (independente de sua cor) e pousar naquele local, contanto que aquele local tenha peças. Não é permitido andar para um lugar vazio.
Ao final da jogada, é importante verificar se existem peças que não tenham um caminho de peças ligando-as a uma das peças vermelhas (estejam elas no topo ou no meio de uma pilha). Se isso acontece, todas as peças desconectadas são retiradas do jogo.
Quando um jogador fica sem movimentos válidos, ele é obrigado a passar. O jogo termina quando nenhum dos jogadores consegue mais mover peças Então, somam-se os pontos: cada pilha vale exatamente a quantidade de anéis que possuem, sendo estes consignados ao dono da peça superior. Quem tiver mais pontos, ganha o jogo.
DVONN é um jogo sobre controle de posições. No inicio do jogo, todas as peças tem para onde ir e elas andam apenas uma casa. A medida que as pilhas vão aumentando, elas se tornam mais valiosas, mas suas opções de movimento diminuem, até o ponto onde elas simplesmente não podem mais se mexer.
A estratégia do jogo tem a ver proteger suas pilhas com pilhas menores que estejam ao alcance para não ter seus pontos roubados e ao mesmo tempo controlar as peças vermelhas, pois elas podem ser movidas quando são cobertas pelas peças normais e isso pode fazer com suas peças sejam eliminadas do jogo.
Normalmente você não quer cobrir suas próprias peças, mas as vezes é necessário fazer isso para ter como defender ou atacar uma pilha maior.
Uma outra coisa é não ter medo de desconectar peças, principalmente quando o adversário perde mais do que você. Quanto menos pilhas um jogador controla, mais limitado ele fica.
As partidas são verdadeiramente emocionantes, porque o placar varia dramaticamente de uma jogada para outra, até que uma posição se consolide. Normalmente o jogo fica em algum momento por uma jogada crítica que se não for executada corretamente, decide o destino da partida.
Eu adorei o DVONN. Eu confesso que demorei um pouco a entendê-lo, mas depois que se pega o jeito ele se torna muito interessante. Dou uma nota 9.
YINSH (2003)
Antes de explicar o YINSH eu considero importante explicar o Othello, um jogo clássico lançado no século XIX que não sei se a maioria de vocês conhece.
Othello é baseado em um jogo chamado Reversi, que foi criado na Inglaterra na segunda metade do Século XIX. Sua autoria é disputada por dois ingleses: Lewis Waterman e John W. Mollet. Em 1971, Goro Hasegawa, um empresário Japones, criou a versão moderna do jogo, adaptando suas regras e criando o que é um jogo jogado mundialmente, com federação e tudo (
https://www.worldothello.org/, só soube disso pesquisando para esse artigo).
Othello é um jogo para 2 jogadores, um com peças brancas e outro com peças pretas e deve ser jogado em um tabuleiro de 64 espaços (organizados num quadrado 8×8). O jogo começa com 2 peças de cada jogador colocadas no centro do tabuleiro, como abaixo.
Em seu turno, cada jogador joga uma peça. Se ele conseguir flanquear peças do adversário em qualquer direção (isso é, ter peças suas cercando as peças do adversário dos dois lados, essas peças se tornam suas. O jogo é jogado até que o tabuleiro esteja completo ou que um dos jogadores desista. Quem tiver mais peças, ganha.
Embora Othello tenha sido resolvido matematicamente, ele me parece um jogo bastante interessante para amadores como nós. Ele também está no BGA (com o nome de Reversi) e, se você gosta de jogos abstratos, não custa dar uma olhada.
YINSH claramente se baseia em Othello, mas aumentando a sua complexidade.
Em YINSH, além das peças normais, cada jogador possui cinco anéis. As peças só podem ser colocadas no tabuleiro (que, como em toda série, é hexagonal) através de um dos anéis e este então deve ser avançado sobre uma das linhas. Ele pode passar por espaços em branco até chegar a uma outra peça qualquer e então deve parar no espaço vazio seguinte,
trocando as cores de todas as peças por onde passa.
Quando um jogador consegue ter uma linha com 5 peças da sua cor, ele retira essas peças do tabuleiro e escolhe um dos seus anéis que estão no jogo para sair do jogo e servir como a marca de que ele fez um ponto. Ganha o jogo quem consegue retirar 3 anéis.
YINSH é incrivelmente tenso, pois a menos que alguém marque um ponto (o que alivia a tensão, retirando peças), o jogo vai se tornando cada vez mais complicado, pois são mais peças em jogo e maior a quantidade de possíveis “reações em cadeia”.
Os Anéis controlam totalmente o jogo, pois além de dizerem onde peças podem ser colocadas e que linhas podem ser alteradas, eles servem como anteparo para os movimentos adversários (um anel não pode passar por cima de outro anel).
A estratégia basicamente é criar diversas ameaças para que adversário não consiga controlar todas as peças, ao mesmo tempo que você tenta defender o melhor que puder a linha onde pretende pontuar. Ao pontuar, você está mais perto da vitória, mas abre mão de controle, pois passa a ter um anel a menos.
O BGA dá a opção de jogar a partida de “blitz”. Nessas regras, vence o jogo quem completar a primeira linha. Eu não acho essa versão tão legal, porque um simples golpe tático pode resolver o jogo. A partida de 3 pontos exige mais consistência e dá chance para o adversário se recuperar.
YINSH é nada menos que brilhante. Eu não conheço ninguém que goste de jogos e que, quando apresentado a ele não fique encantado. Não é o tipo de jogo ao qual a maioria de nós se dedique a ser um mestre, mas as suas partidas sempre são interessantes. Para mim, é um jogo nota 10. Ele entrega tudo o que você pode esperar de um jogo de estratégia abstrato.
O Futuro
Estando no BGA, acredito que a medida que se tornem conhecidos, é possível que aumente bastante a base de jogadores.
A vida real, infelizmente, não é assim tão fácil. DVONN já está praticamente há um ano na plataforma e, embora 27 mil partidas já tenham sido jogadas quando escrevo, isso é quase nada perto das 12 milhões de partidas de Carcassonne (em nove anos de plataforma) ou das 21 milhões de partidas de Azul (em apenas 4 anos de BGA). YINSH ainda está em beta, com 1500 partidas.
Um dos motivos de fazer esse artigo é chamar a sua atenção para esses jogos. Eles não tem hype, dificilmente um gerador de conteúdo com preocupações mais comerciais vai ter agenda para falar deles, então, eu tomei esse desafio para mim.
Dê uma chance aos jogos da série GIPF. Eles são fáceis de explicar mas se mantêm muito desafiadores, mesmo depois de várias partidas. Eles recompensam o jogador que gosta de rever a partida e entender o que aconteceu. Tudo isso é muito fácil de fazer no BGA e, se você é competitivo, encontrará gente muito forte na Arena para te desafiar.
Qual a chance desses jogos serem lançados no Brasil? Sinceramente, acho que pequena. Eles já estão por aí há muito tempo e ninguém se interessou.
Quem sabe se eles bombarem no BGA? Nunca é tarde!
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!