
UMA LUDOGONIA
No princípio, havia o tédio. A ausência de diversão eram trevas e a antena da humanidade captava apenas a estática de Caos. O vazio ocupava os espaços entre as atividades de sobrevivência humanas. E isso era triste. Mas justamente no ventre de Caos, padrões começam a emergir de modo a dar à luz duas entidades lúdicas: Gaia-Destreza e Urano-Abstrato. A partir destes, diversas atividades que ajudam os humanos a se entreter passam a surgir. Gaia-Destreza, por exemplo, inspira brincadeiras envolvendo habilidades físicas dos participantes. Urano-Abstrato inspira evoluções na comunicação e o uso de objetos de modos divertidos, brinquedos, que passam a representar coisas que não estão ali de fato.
Mas a humanidade vai saindo de sua infância e se tornando mais exigente... A duas entidades começam a se aproximar, aprimorando seus derivados e em certo momento, da união de Urano-Abstrato e Gaia-Destreza surgem alguns Titãs-lúdicos: Brincadeiras-jogos com regras que ora dependiam mais de habilidades motoras, ora dependiam mais de habilidades mentais. E o mundo é tomado por eles.
Em algum momento, nem todos os humanos pareciam satisfeitos com os Titãs-lúdicos e seus extremos, vendo-os muitas vezes como inconvenientes ou insuficientes. Urano-Abstrato também se mostra infeliz com muitos de seus filhos. Caos, percebendo lacunas, viu a chance de participar da brincadeira-jogo mais diretamente. Aproximou-se de Urano-Abstrato e com este gerou "Alea-Dados". Esta se multiplica de modo incontrolável. Era fácil, emocionante, portátil. Rapidamente se tornou popular.
Gaia-Destreza não achou isso divertido. Pior, muitos achavam que Alea-Dados era sua filha, o que só a insultava. Sentindo-se traída e usada, Gaia-Destreza pede que um de seus filhos, Cronos-Passatempos, se vingue por ela. Com uma foice, ele cumpre o pedido fatiando e fragmentando Alea-Dados. Seus restos imortais caem em um certo Rio Amarelo, originando uma nova entidade lúdica...

DOS COMPONENTES DOS CARTEADOS
Inspirado pelas re-descrições desses tipos de jogos no podcast, vídeo e o artigo dos 4F's citado, gostaria de propor uma releitura sintetizadora sobre as características dos carteados. Para começar, acho que vale uma análise etimológica dos seus possíveis componentes usualmente conhecidos. Para simplificar vou me ater aos termos baralho, deck e 牌 (placas ou cartas de jogo em chinês):
Placas/Cartas Chinesas
- Em jogos tradicionais chineses, um conjunto de placas-cartas é comumente chamado de "pái" (牌), que significa "placa" ou "ladrilho" (ou ainda "marcas", "cartões", enfim, as traduções podem variar bastante);
- A etimologia dessa palavra reflete o uso de cartas como "placas" que são viradas para esconder informações aos outros jogadores por terem costas idênticas;
- Dependendo do jogo e do tipo de carta, pode haver distinções na nomenclatura. Por exemplo, Placas-cartas de dominó (que surgiram a partir de dados) podem ser chamadas de "gópai" (骨牌, "cartas de osso") enquanto as Placas-cartas de baralho podem ser chamadas de "zhípái" (纸牌, "cartas de papel");
Deck
- Meados do século XV, dekke: "cobertura que se estende de um lado a outro sobre parte de um navio", de um uso náutico do holandês médio dec, decke "teto, cobertura", do protogermânico *thakam (fonte também de thatch (n.)) que significa telha, telhado, cuja raíz significa "cobrir";
- O sentido se estendeu no início do inglês de "cobrindo" para "plataforma de um navio";
- O significado de "baralho de cartas necessário para jogar" é da década de 1590, talvez porque fossem empilhadas como conveses de um navio;
Baralho
- A etimologia da palavra "baralho" vem do verbo "baralhar", que significa misturar/embaralhar;
- "Baralhar" deriva de "baralha", que, por sua vez, tem origem em "varalia", do latim, que se refere a plantas (varetos/ramos) entrelaçadas sem ordem;
- A palavra "baralho" então é usada para descrever uma coleção de peças passíveis de serem misturadas, ou seja, "embaralhadas" (antes de começar um jogo, por exemplo);
Carta
- Vem do Latim charta, "folha para escrita, tablete", do Grego khartes (χάρτης), "folha de papiro preparada para escrita", provavelmente de origem egípcia;
- Cidades fenícias, especialmente Byblos, tornaram-se centros de exportação do papiro egípcio para o mundo grego e mediterrâneo. Daí o próprio outro nome grego para papiro – býblos, de Byblos – que deu origem à palavra "bíblia" (livro) em línguas ocidentais;
- É interessante notar que a palavra "carta" também é usada no sentido de "mensagens escritas entregues por mensageiros", trazendo consigo a noção de algo a ser lido por alguém em especial, não qualquer um;
Pela análise etimológica dos termos usados para indicar componentes desse tipo de jogo, temos em comum algo que pode "cobrir", "encobrir". No caso, cobrir uma informação (com uma escrita ou marca) de modo que esta possa ficar protegida ou oculta. A possibilidade de agrupar/empilhar esses componentes e misturá-los é outra noção subjacente. Então, os componentes destes jogos devem permitir ocultar parcial ou totalmente informações (marcas, escritas, etc) e com isso uma mistura/embaralhamento destes, não importando se são peças de madeira, ossos, papel, conchas, etc.

DOS FUNDAMENTOS DOS CARTEADOS
Segue uma releitura dos 4F's descritos pelo usuário @NateStraight do BGG, trazendo também parte das redescrições mencionadas pelo Gustavo (em vídeo e podcast). Em resumo, mantenho dois dos 4F's originais e substituo dois:
- Fractal
- Fortune
- Folklore
- Flow
♠ Fractal
- Nome usado por Mandelbrot para descrever padrões geométricos complexos pelos quais tentava desvendar padrões ocultos da natureza (trajetória de um raio, ramos de uma árvore, formas das nuvens, etc);
- A palavra "fractal" deriva do latim "fractus", que significa "fraturado" ou "fragmentado". Reflete a característica fundamental dos fractais: a estrutura fracionada e irregular que se repete em partes menores (partes simples criando complexidade);
- Tais como nos fractais, esses jogos possuem componentes (peças, cartas, etc) autossimilares: Geralmente pequenas variações entre si, principalmente quanto a números/ranks ou por naipes, e com o verso repetido. Com ausência completa ou parcial de outros tipos de componentes;
- Ciclos autossimilares: Componentes "jogados" em pequenos ciclos e ciclos maiores (da mão para a mesa e diferentes mãos). A complexidade emerge da simplicidade;
- Associação simbólica: Associado ao naipe de espadas, folha, ar. A espada pode cortar e fragmentar. A folha remete ao padrão fractal de folhagens de árvores, bem como das nervuras internas destas. "O jogo das folhas" (yezi ge) seria o jogo chinês de onde as cartas teriam se originado (informação contestado por muitos);
♦ Fortune/Fortuna
- A deusa romana Fortuna representava o destino imprevisível que rege a vida humana, mas também podia ser invocada e reverenciada, como se sua influência pudesse ser, até certo ponto, negociada;
- O termo aqui é usado no sentido de "sorte" e "chance". Mas difere da sorte de "Alea" (dados, raiz para "aleatoriedade") por trazer uma sorte que pode ser "negociada ou mitigada" por ciclos (como na "Roda da fortuna");
- Componentes e ciclos trazem uma fragmentação entre os estados mais simples de "não conhecido" e "conhecido" que se observa num lançamento de dados, por exemplo. Somente com o decorrer das jogadas vai se ganhando informações sobre todas as cartas de um naipe, seja por surgirem na mesa ou pelas escolhas de quais cartas os outros jogadores priorizam jogar;
- A possibilidade de mitigar a sorte a partir do fracionamento da informação e interação, além dos ciclos de diferentes mãos, deixam os jogos menos aleatórios que outros;
- Associação simbólica: Associado ao naipe de moedas, ouros, terra. Muitos consideram que a verdadeira origem das cartas que conhecemos viriam das cartas chinesas de dinheiro. Seus naipes identificariam diferentes escalas (unidades, centenas, milhares, etc) e um número indicando sua quantidade. As peças de Mah Jong também têm naipes e numerais, mas datam apenas do século XIX e claramente derivam de cartas de dinheiro.
♣ Folklore/Folclore
- Folclore, significando "conhecimento popular" ou "sabedoria do povo", foi um termo criado pelo arqueólogo William Thoms em 1846 para descrever as tradições, lendas e crenças de um povo;
- Transmitido oralmente e por meio da prática, muitas vezes de geração em geração, reflete os "mores" e a "traditio" de uma comunidade. Os jogos populares tradicionais são frequentemente considerados parte do folclore, incluindo o estudo de suas variações regionais e as adaptações ao longo do tempo;
- Para perdurarem no tempo e com tamanha abrangência, geralmente são jogos que agradam um amplo perfil de gostos e idades. Sendo jogados em diferentes espaços sociais (inclusive familiares);
- Jogos recentes, para se enquadrar no gênero (nesta proposta), teriam algum(ns) de seus "genes" compartilhado(s) com algum(ns) desses jogos mais antigos, dando continuidade a uma longa linhagem de variações de um jogo tradicional popular;
- Associação simbólica: Associado ao naipe de tacos/bastões de polo, paus, fogo. O jogo de polo, geralmente praticado por membros de uma nobreza, estaria agora num jogo nas mãos do povo. Para além disso, era ao redor da fogueira (feita de ramos/bastões de madeira) que as pessoas se reuniam para se aquecer, cozinhar, proteger-se e, crucialmente, interagir. Essa proximidade física e o calor reconfortante criavam um ambiente propício à comunicação e à partilha. A luz bruxuleante da fogueira cria uma atmosfera misteriosa (um círculo mágico?), perfeita para a contação de histórias e o repasse de conhecimentos/tradições;
♥ Flow/Fluxo
- As diferentes variações de um mesmo jogo tradicional originário (com alto reaproveitamento de mecânicas/dinâmicas), faz muitos desses jogos se tornarem intuitivos para jogadores usuais (permitindo o reencontro de muitas situações de mãos e jogadas já vividas);
- Por serem variações de jogo similares, as regras não pesam na memória, diminuindo chances de erros ou interrupções para consultas;
- As características fractais dos componentes, ciclos e jogos, trazendo regras simples e/ou bem conhecidas, trazem jogadas rápidas em um ritmo engajador;
- Tudo isso favorece a criação de um "Estado de Fluxo": Uma sensação de aumento de foco e diminuição da autoconsciência comum ao nos depararmos com atividades no limiar do desafio e do domínio;
- Por serem intuitivos, permitem conversas (até mesmo consumo de bebidas) durante uma partida, favorecendo socialização mais intensa;
- Associação simbólica: Associado ao naipe da taça, copas, água. Bebidas e socialização parecem estar nos primórdios desses jogos, como nos relatos do "Jogo do Vinho" (de arroz) chinês;
Tais fundamentos possuem relações de reforço entre si. Por exemplo: A dimensão de Folclore traz variações e ramificações regionais e temporais de um só jogo, sugerindo uma espécie de fractal de regras. Talvez por trazer um estado de fluxo com pequenas variações que tais jogos perduraram no tempo entre gerações.
Sobre os fundamentos no artigo original substituídos:
- "Frustrating" é coberto por "Fortune". "Fun" (sugerido pela comunidade para substituir) seria muito subjetivo e não seria grande diferencial;
- "Friendly" é coberto por "Folklore" e "Flow";