Se quiser acompanhar do início, acesse: http://ludopedia.com.br/topico/87275/cabeca-de-cuia-prologo
Antes de falar do jogo em si, preciso comentar sobre a Lenda do nosso Município. Se por acaso tiverem curiosidade podem pesquisar na internet estudos mais aprofundados, mas para fins de continuidade antropológica, vou contar da forma como me lembro:
Trata-se da História de um pescador, de nome Crispim, que morava com sua mãe, à beira do rio Parnaíba, em Teresina-PI. Estava passando por uma temporada ruim, onde não conseguia pegar muitos peixes. Certa vez, sua mãe tinha apenas um osso de boi, e com ele preparou uma sopa rala, numa cuia (uma tigela). Ao chegar em casa frustrado por mais uma pesca infrutífera, irritou-se ao ver o pobre jantar, pegou o osso de boi da sopa e bateu na sua mãe. A pancada foi na cabeça dela... antes de falecer, ela lhe rogou uma praga: a cabeça de Crispim cresceria ao tamanho de uma cuia, e ele deveria vagar eternamente pelo rio Parnaíba. Preso ao rio e sua forma monstruosa, só poderia quebrar a maldição se conseguisse devorar sete virgens de nome Maria.
Considerando essa lenda, tivemos a seguinte idéia misturando tema e jogabilidade: o jogo seria uma espécie de rummy cooperativo, com comunicação limitada e cumprimento de contratos. Os contratos seriam as Marias, que estariam na beira do rio Parnaíba, lavando roupa. As cartas seriam as roupas que cada Maria deve lavar para ir embora, antes do Cabeça de Cuia aparecer (aparição definida por cartas de efeito negativo que poderiam aparecer durante o jogo).
Daí que pedi emprestado ao meu amigo Vinymazza seu baralho convencional (que diga-se de passagem, ainda não devolvi...) para experimentar a estrutura descrita no parágrafo acima. Colocar a idéia pra funcionar.
(P.S.: Aqui é um divisor de águas para um procrastinador. Existe um grande prazer em ter idéias. No campo ideal, não existem muitos detalhes, e existe a impressão de perfeição. Praticar é frustrante por dois motivos, o primeiro é que dá trabalho fazer a idéia materializar, e o segundo é lidar com a angústia da imperfeição...)
Então, peguei o baralho, tirei todas as figuras. Valetes ficariam de fora por hora. Reis e Coringas representariam a aproximação do Cabeça de Cuia. As Rainhas seriam as Marias, cada uma com um contrato de realização diferente. E os números e Ases representariam as peças de roupa a serem lavadas.
A preparação: As marias ficam dispostas na mesa ao alcance dos jogadores. O resto das cartas embaralhadas, numa pilha virada para cima, ao alcance dos jogadores.
A jogabilidade: Os Jogadores alternariam turnos. Em seu turno o jogador escolhe dentre duas ações iniciais, ou compra uma carta descartada em cima de uma Maria, ou compra quatro cartas do Baralho de compras e descarta uma dessas em cima de uma Maria. Após realizar uma dessas ações, o jogador, se tiver na mão uma composição de cartas pedida em uma Maria que esteja descoberta, ele pode baixar as cartas nessa Maria para ajudar a completar seu contrato. Durante a compra de cartas, se aparecesse um Rei ou Coringa, uma Maria devia ser bloqueada (de forma que um jogador deveria gastar um turno para desbloqueá-la). Se todos os Reis e Coringas aparecerem, o Cabeça de cuia chegou e se tiver Maria ainda em jogo, os jogadores perdem. Vencem se conseguirem cumprir todos os contratos antes do Cabeça de Cuia aparecer.
E então joguei uma vez com minha esposa Melis. Nesse momento, a fantasia entra em colapso com a realidade. O jogo que era óbvio na minha imaginação tinha várias falhas. Uma Maria acabava acumulando todas as cartas de descarte, os contratos das Marias tinham demandas que o baralho não atendia, a mão ficava com excesso de cartas... Mas no meio dessa bagunça, parece que tinha um jogo.
Jogamos uma segunda vez, eu, Melis e Vinymazza. Foi uma gameplay bagunçada, muita conversa durante as jogadas e sugestões de alteração. Não é a mesma coisa de jogar um jogo pronto. É preciso determinação pra fazer isso. E por ter sido um processo coletivo, também é preciso uma certa consciência para avaliar os apontamentos propostos pelos colegas, e paciência para debater.
Depois dessas duas sessões, algumas coisas clamaram por mudanças:
- Quanto a ação de baixar cartas nas Marias: a princípio pensei que deveriam ser baixadas quando o jogo estivesse completo na mão do jogador (como no Pife), mas sugeriram que pudesse ser baixado aos poucos (como no Buraco).
- Variar os tipos de efeitos negativos.
- Criar um descarte além das Marias. Na idéia original, as Marias seriam o alvo do descarte. Isso representaria um acúmulo de tarefas (tema) e criaria um desafio para os jogadores porque elas não poderiam finalizar contratos se estiverem bloqueadas (mecânica). Só que o que vimos em duas sessões é que acabamos enchendo uma Maria de cartas, de forma que era impossível recuperá-la antes das cartas ruins aparecerem.
- Aprimorar os contratos. Dado que usávamos um baralho normal, as combinações eram: pares de naipes de mesma cor, pares de naipes de cores diferentes, Trincas, Quadras, sequencias de naipes de mesma cor/cor diferente... Ou seja, os contratos estavam limitados às possibilidades contidas no baralho tradicional. Daí que se um contrato não fosse bem planejado, seria impossível de cumprí-lo.
Mas no fim do segundo teste, ficou mais claro que ali, com todos os defeitos identificados, tinha um jogo. E isso me animou a continuar buscando.
Encerro por aqui este pedaço de relato. Acho que em resumo, o que aprendi aqui foi que fazer a travessia da fantasia para a realidade é dolorosa, demanda esforço e energia, mas pode promover um prazer que faz tudo valer a pena.
No próximo capitulo:
Trocamos o baralho tradicional por cartas desenhadas para melhor representar as roupas. E isso foi muito bom...