Olá, Lucas! Tudo bem com você? Já deixa ligado o alerta de textão!
Eu precisei vir comentar o seu episódio logo após escutá-lo porque, para mim, a sua respostas à pergunta inicial foi insatisfatória.
Você iniciou a discussão esboçando uma crítica e terminou apenas ratificando o ponto de vista inicial a ser criticado. Ou isso ou não entendi muito bem a sua colocação.
O fato é que essa discussão é muito boa e muito me interessa, pois atualmente é justamente esse o ponto que mais me incomoda em torno da criação de conteúdo na esfera dos jogos de tabuleiro. Na verdade me incomoda tanto que eu fiz questão de vir aqui escrever a respeito e, sempre que surge uma oportunidade, eu levanto essa bola nas discussões da Ludopedia.
Para começar a expor os meus pontos eu gostaria de esclarecer uma coisa antes de mais nada. A priori a opinião de outros sobre os jogos simplesmente não me interessa porque normalmente elas não me afetam. Levo muito em consideração a opinião das pessoas que jogam comigo - a minha família - porque quero que se divirtam tanto quanto eu.
Quem tem medo de review negativa? Eu não sei. Tenho alguns palpites, expostos no fim da minha argumentação, e podemos discutir se são válidos ou não, mas posso dizer com certa convicção que não sou eu. Pode parecer arrogância e soberba falar assim, só que opinião negativa não é crítica por si só. Acho que você inclusive deixou isso claro no episódio. Essa percepção vulgarizada da crítica que parte de uma dicotomia antagônica de opiniões entre bem e mal; certo e errado; gosto e não gosto; é um desserviço ao debate público, pois é rasa, superficial, reduz os fenômenos da nossa vida a uma situação de causa e efeito. Implicitamente cria uma relação de intolerância face ao desconhecimento sobre o outro; torna as pessoas incapazes de entender e reagir a situações que lhe parecem complexas demais. Sem contar que faz parecer que quem critica algo está apenas sendo rabugento ou "do contra". Ela despreza o diálogo.
Crítica diz respeito à capacidade de constituir juízos pondo em crise o objeto ou ideia em discussão e o próprio conhecimento em torno deles. Essa foi a melhor síntese que consegui elaborar a partir do pouco que li. A crítica é importante porque ela permite uma compreensão mais profunda e consciente das coisas. Ela pode até mesmo contribuir para o aperfeiçoamento das produções. Ela funciona como mediadora entre o público e as obras, promovendo a sua apreciação seja por meio da sua aprovação ou reprovação. A crítica pode conter a opinião individual, mas não é esse o cerne da coisa. A crítica opinativa pode fazer algum sentido se a perspectiva e a experiência individual contribuem para ilustrar a reflexão em torno da obra ou se expõe alguma característica que de outra maneira não seria percebida. Portanto pode por consequência embasar a formação de gosto e opinião. Em última instância a crítica contribui de alguma forma para o autoconhecimento das pessoas, embora essa não seja sua finalidade declarada. Já a resenha é um discurso capaz de expor as percepções de alguém sobre uma obra, mas sem necessariamente expor um caráter crítico. Por outro lado entendo o review como uma revisão sobre algo, sem qualquer compromisso crítico ou avaliativo, e sim com o propósito de descrever, relembrar ou ver o objeto sob outro ponto de vista. Análise seria a decomposição e desdobramento do objeto em partes menores com o propósito de facilitar a sua compreensão. O que eu queria esclarecer com tudo isso, na minha visão, é que nosso meio está recheado de opiniões de todo tipo e até mesmo de boas resenhas, mas construção de conhecimento coletivo baseado em críticas mesmo que é bom... nada. Ou muito pouco, para ser mais justo.
O utilitarismo entende que o agente moral, indivíduo, é um átomo racional que está invariavelmente disposto a agir de acordo com a negação do seu sofrimento. De acordo com Epicuro, o prazer é o princípio e o fim de uma vida feliz. Atualmente o hedonismo pode ser compreendido como a satisfação dos impulsos associados a uma ideia de qualidade de vida individual, que é superior a qualquer princípio ético. É importante perceber que aquele que está disposto a agir piamente de acordo esses princípios de negação do sofrimento simplesmente não conseguirá fazê-lo. Mais do que isso, essas perspectivas utilitaristas ou hedônicas da vida e das coisas esvazia as pessoas de suas motivações. Aquele disposto a agir dessa maneira, não conseguirá resolver dilemas que envolvam o auto sacrifício por questões afetivas e até mesmo conflitos que opõem culturas distintas em disputa. Eu até acho que as pessoas em seu íntimo e no dia a dia percebem isso. Mas ao colocarem idilicamente essa perspectiva como a mais adequada, ou moralmente correta, elas contraditoriamente acabam criando muito mais sofrimento para si do que prazer. A sociedade atual está entranhada de pensamento utilitarista e hedonista. O consumo notável é o substituto do ócio e está na base da nossa estrutura social; é pensado como o elemento constitutivo do próprio indivíduo e transmite características pessoais do indivíduo para seus pares. Se você não tem um cartão de crédito e um carro você simplesmente não é um cidadão. Para ficar num exemplo do nosso hobby, se você não tem GWT ou Brass na sua coleção, você não é um jogador "sério". Ter é ser.
A sociedade de consumo no fundo, em seu âmago, ou somente como recurso retórico, rompe com essa ideia hedonista da vida, mas não sem antes instrumentalizá-la sutilmente a seu favor. De um jeito torto ela a supera. O que quero dizer é que no fundo, no fundo, o que importa é consumir. E apenas isso. Não importa a sua satisfação pessoal ou a realização das suas necessidades. Só que nenhuma empresa ou propagandista vai falar isso. Então eles, hipocritamente, apelam para discursos utilitaristas, hedonistas e até mesmo naturalistas - assumem que tudo aquilo que existe é algo natural - ao venderem seu produtos. Assim surgem os jogos "killer" que fazem a mesma coisa que os seus antecessores, só que um pouquinho melhor. O grande pulo do gato é que a indústria simplesmente oferece produtos que não cumprem com o que prometem ou que até cumprem, mas por um espaço cada vez mais curto de tempo. Assim podem vender novamente a ideia de que o próximo jogo, esse sim - AGORA VAI - irá realizar os seus desejos e entregar uma experiência verdadeiramente ótima para dois jogadores - para ficar apenas em um exemplo da modinha da vez. Estão comercializando expectativas. Quando os jogadores percebem que o sonho não se torna realidade, a indústria já possui uma solução pronta a ser entregue para satisfazer os mais "exigentes" jogadores. Estamos saindo com o milho e eles já estão voltando com o cuscuz.
Trazendo a discussão para um campo mais concreto e menos abstrato, The Grizzled é um jogo cooperativo que propõe entregar uma experiência que reforça laços de amizade a partir do sofrimento compartilhado e da punição por erros cometidos ao antepor decisões individuais morais acima de decisões coletivas, éticas. Em outras palavras, o jogo representa a guerra como algo que, apesar de todas as suas adversidades, é capaz de unir as pessoas através de um forte senso de comunidade para construírem juntas a vitória. Para isso funcionar o jogo precisa provocar muitos sacrifícios e desgostos aos jogadores. Àqueles que não compreendem ou não gostam dessa proposta o jogo não fará o menor sentido e se decidirem agir sem racionalizar essas questões, vão sair muito irritados ou insatisfeitos da partida, como já vi acontecer várias vezes. E eu nem estou, nesse caso, querendo discutir o mérito ou a validade da representação da guerra dessa tal forma. No entanto jogadores que não compram a ideia do jogo estão abrindo mão de usufruir de uma experiência diferente, única, que pode ser bastante satisfatória a longo prazo, apesar de bastante entristecedora num primeiro momento. Eu diria mais até, ela é tão mais gratificante quanto mais for decepcionante.
Eu construí todo esse discurso para chegar a conclusão de que quem tem medo de review negativa são todos aqueles que não querem que esse sistema de coisas mude. São todas as empresas, criadores de conteúdo e jogadores que estão plenamente satisfeitos com o andamento das coisas como estão... ou que apenas estão muito iludidos, deslumbrados, e alienados do processo produtivo das coisas mesmo. Todos aqueles que, convenientemente ou não, não querem pensar os jogos para além de um objeto de mero entretenimento. Aliás, desconfio que "medo" não seja bem a palavra certa para descrever o que se passa... acho que há uma boa parcela de pessoas que tem interesse em manter o pensamento crítico adormecido, pois se beneficiam disso de alguma maneira - financeiramente. É praticamente um projeto mesmo.
Da minha parte, o que posso dizer é que não ligo muito se falarem "mal" de um jogo que eu gosto. Na verdade, eu até me divirto com isso! Você comentou ao longo desse episódio da importância de compreender para quem se fala. Comentou também em algum momento que há um hobby de jogar e outro de produzir conteúdo. Está certo.
O meu hobby atual, além de jogar, é debater. rs
Sem uma oposição não há um debate, não há formação de consensos e muito menos a criação de saídas alternativas para questões aflitivas. Só há monotonia. Por isso eu reafirmo, fale muito mal dos jogos à vontade. Parafraseando Milton Nascimento, tenha coragem, companheiro. Para que fechar a voz se a força do desejo pulsa em cada um de nós? Isso não quer dizer que você deva disparar qualquer argumentação barata e vazia, desassociada da realidade. Quer dizer que precisamos colocar o jogo pra jogo, colocá-lo na roda e testá-lo para ver se resiste ao teste da vida real. Afinal de contas quem não deve, não teme. Criticar é investigar para alcançar a verdade das coisas. E se ela não existir é melhor ainda, pois podemos construir as nossas próprias regras da casa e fazer uma versão nova dela em comum (des)acordo. Não debater e não criticar é simplesmente aceitar o que já está dado e... vida que segue.
O engraçado é que o universo futebolístico é recheado de debates e críticas... "apaixonadas"... ele vive de polemizar e criar espetáculo com qualquer factóide! Já o universo dos jogos de tabuleiro teima em criar um mito de que todos vestiram a camisa da amizade e que a comunidade é composta de pessoas idôneas e boa-praça, que não promovem ambientes agressivos, "tóxicos". Vivemos a infância dos jogos, em que as pessoas preferem se manter cegas e irresponsáveis a discutir sobre questões que são maiores que os próprios jogos, que fingem que aquele jogo rankeado em primeiro lugar do BGG não reforça estereótipos, que não vende uma ideologia velha e destrutiva aos nossos próprios interesses. Tudo isso em nome de uma "ludicidade", da criação de um espaço reconfortante sem qualquer conflito de interesses. Isso é a Matrix 1.0, aquela que falhou na história do filme.
Para finalizar eu só queria dizer que Wingspan é um dos meus jogos favoritos. O episódio em que você diz que o jogo não te empolga porque sempre parece meio morno foi muito corajoso e bem embasado. Comentou que fazer aquela análise ajudou a se conhecer melhor. Talvez sem saber você também contribuiu para elucidar alguns pontos que me incomodavam e que eu não sabia explicar exatamente o porque. A moral dessa história toda é que eu concordo com você em todos os aspectos analisados e criticados! Wingspan é um grande remendo de mecânicas sem uma narrativa coesa forte, fora o elemento lúdico e enciclopédico das aves, que dá uma liga tênue à coisa toda.
Só que isso não faz eu desgostar do jogo! rs
Agora eu estou grato por você ter aberto meus olhos para uma nova percepção, que por tabela me fez pensar em estratégias diferentes e que levam em consideração todas as limitações que você apontou! Eu inclusive precisei ressignificar o jogo para não ficar frustrado com ele. Hoje virou praticamente um hábito de vida para mim, uma ótima desculpa para passar algum tempo junto da minha mãe, bióloga, com quem já despendi mais de 80 partidas das mais de 100 disputadas. E meu recorde de pontos em uma única partida foi de 128, se me recordo bem.
Eu só escrevi esse textão em defesa da crítica porque realmente admiro o seu podcast e porque você abriu margem para essa discussão. Eu certamente não me daria ao trabalho de estudar e preparar esse material se o resultado do seu trabalho não me afetasse positivamente. Você está de parabéns por trazer à baila pautas importantes e bacanas como essa, que fazem a gente pensar. Mesmo eu tendo ficado insatisfeito com a sua justificativa, eu adorei o episódio meramente pelo fato dele existir! Também desejo boa sorte com a leitura dos comentários no próximo episódio! rs