EDIT: Prezados, conforme bem pontuado pelo nosso colega @Rimor, a campanha seguiu bem sucedida e já estão sendo coletados os fretes para envio. Durante o texto eu trouxe apreensões que não se concretizaram, e alguns comentários também trouxeram preocupações semelhantes.
Caros leitores da Ludopedia, assim como muitos de vocês, faço parte daquele grupo que utiliza a plataforma quase exclusivamente para consultar, comprar ou vender, raramente deixando comentários ou publicações. Esta é minha primeira postagem, motivada por um assunto que considero relevante para o cenário dos jogos no Brasil: um evento curioso envolvendo um produto de grande destaque no mundo dos designers europeus, que está prestes a ser publicado por aqui, mas corre o risco de não acontecer.
Antes de tudo, vamos encarar o elefante na sala: estou falando de um RPG. Sei que a Ludopedia é majoritariamente voltada para boardgames, e o público de RPG aqui parece tímido (embora os financiamentos coletivos e lives na Twitch mostrem que, no Brasil, o hobby de RPG é muito maior do que o de boardgames). Eu mesmo, nos últimos cinco anos, devo ter jogado 20 ou 30 partidas de boardgame para cada sessão de RPG que participei. A praticidade dos jogos de tabuleiro, onde geralmente é só abrir a caixa e começar a jogar, acaba ganhando espaço na vida adulta. Mas, apesar disso, ainda guardo com carinho na estante os livros e impressões da minha adolescência, lembranças de um hobby que ficou para trás.
ENNIES e OSR
Como era o mais dedicado ao RPG entre meus amigos, eu sempre acabava assumindo o papel de mestre. Isso me levou a desenvolver um gosto por ler livros de regras — muitos, de diferentes mecânicas e temas. Cheguei até a me considerar um "crítico de sistemas", analisando regras e julgando: "isso aqui não vai funcionar na mesa". Esse interesse também me fez acompanhar, desde 2015, o ENnie Awards — o equivalente ao Spiel des Jahres no mundo do RPG. Era uma ótima oportunidade para ver o que estava em alta no mercado internacional, o que havia de inovador e diferente das tradicionais escolhas brasileiras, ainda presas à dualidade D&D/Vampiro. E havia muita coisa. MUITA coisa diferente.

Uma certa constância entre as coisas diferentes que iam surgindo foi um um movimento de resgate do estilo de jogar RPG dos anos 70 e 80, inspirado principalmente nas primeiras edições de D&D e Swords & Wizardry, comumente readequando regras/escala/temas para algo aproximado ao que fazia-se na época. Essa onda ficou conhecido como OSR (Old School Renaissance), e embora não haja mandamentos cravados na pedra, o manifesto de Matthew J. Finch "A Quick Primer for Old School Gaming" lista quatro conceitos essenciais para OSR:
- Ruling, not rule: em vez de seguir estritamente regras fixas, o jogador deve descrever ações livremente, e o mestre deve decidir a partir do bom senso, usando dados apenas quando necessário. Isso torna as fichas mais simples, com poucas habilidades e números, e muitos desafios precisam ser resolvidos por observação, raciocínio e experimentação. Isso leva ao segundo conceito:
- Habilidade do jogador, não do personagem: Não existem verificações automáticas, como "percepção" para detectar armadilhas ou "blefe" para enganar guardas; em vez disso, você precisa informar ao mestre onde está procurando as armadilhas ou o que está tentando fazer para enganar os NPCs.
- Heroico, não super-heróico: No primeiro nível, os aventureiros são quase tão capazes quanto uma pessoa comum, dependendo de sua astúcia para sobreviver. À medida que avançam, eles não ganham superpoderes ou habilidades incríveis, mas sim itens valiosos adquiridos ao longo de suas jornadas e, eventualmente, algum poder político, como um reduto ou influência. Mesmo em altos níveis, eles são mortais contra oponentes normais, mas não invencíveis.
- Esqueça "balanceamento": OSR aborda um mundo de fantasia com todos seus perigos, contradições e surpresas. Não traz aventuras que ajusta automaticamente os desafios ao nível dos personagens. O grupo não tem o "direito" de enfrentar apenas monstros que pode derrotar, nem o "direito" de encontrar apenas armadilhas que pode desarmar, nem o "direito" de invocar uma regra específica dos livros, e muito menos o "direito" de rolar dados para resolver cada situação.
Com o passar dos anos, alguns indicados aos ENNIES começaram a incorporar elementos desse estilo. Até mesmo na premiação de 2024, o Shadowdark RPG venceu quatro categorias (e esse é outro jogaço, mas deixo para um próximo texto).
Na minha humilde opinião, porém, o jogo que realmente quebrou paradigmas e redefiniu o jeito de escrever RPGs – seguindo alguns padrões do OSR, mas também subvertendo-os – foi MÖRK BORG.
Criado por suecos e lançado em 2020, MÖRK BORG é um livro com regras e um cenário ambientado em um mundo medieval à beira da destruição. No ENNIES daquele ano, levou medalha de ouro em Produto do Ano, Melhor Escrita, Melhor Layout e Design e medalha de prata em Melhor Jogo (não entendi também, como pode ser considerado o melhor design, melhor escrita e melhor produto mas não o melhor jogo?!?! marmelada.).
No ano seguinte, seu suplemento Mörk Borg Cult: Feretory ganhou ouro em Melhor Suplemento. E em 2022, o jogo continuou brilhando, levando ouro e prata na categoria Melhor Acessório Digital pelos seus geradores de monstros (ouro) e de mapas (prata), sendo que o gerador de mapas ainda faturou ouro como Melhor Conteúdo Online.
Esse destaque por três anos seguidos abriu espaço para versões com temáticas tão variadas quanto cyberpunk, revoluções comunistas, piratas, natalinas e até corporativa (MÖRK ORG). Ah, e tem uma expansão de pesca (FISK BORG). Mas vamos focar na versão básica, ok?
Regras
A estrutura é caótica, propositalmente. A maioria dos livros de RPG segue um padrão quase sagrado no sequenciamento de capítulos: uma introdução ao que é RPG e como jogar, seguida pelo cenário ou criação de personagens, raças/classes, regras de combate, magias, monstros e, por fim, algumas dicas para mestres. É uma fórmula consolidada, quase um "manual de instruções" altamente didático, com poucos fugindo disso. Em MÖRK BORG, não há didática e a estrutura é escarça. O que existe são enxertos de lore com ilustrações macabras, algumas tabelas aqui e ali e é isso. Por exemplo, as regras de pontos de vida estão resumidas em uma ilustração com duas frases.


E, acredite ou não, o jogo funciona perfeitamente assim. As regras são absurdamente simples, mas exigem que o mestre saia da sua zona de conforto e aprenda a se orientar no meio do caos. Em 2021, quando descobri o jogo, imprimi o PDF em casa e joguei de maneira improvisada com meu irmão, minha namorada da época e um amigo. Fluiu extremamente bem. Minha namorada da época conhecia pouco de RPG, e ter regras fáceis e dinâmicas ajudou a na interação.
Tema
O mundo de MÖRK BORG é um lugar corrompido, decadente e afundado em pecado. Os Deuses são malignos e querem te perverter e estão incessantemente tentando destruir o mundo. Inclusive, há uma regra que exige que, a cada dia no jogo, você verifique se o fim do mundo finalmente chegou.
Embora eu evite comparações, a sensação de jogar MÖRK BORG me lembrou a experiência de Elden Ring. Claro, há diferenças marcantes: enquanto o universo de Elden Ring ainda oferece lampejos de bondade e esperança em certos personagens, o mundo de MÖRK BORG é implacavelmente sombrio, sem espaço para redenção. Prefiro não entrar em detalhes sobre o cenário para evitar spoilers, mas fica o aviso: este é um universo que grita destruição e ruína.
A Publicação no Brasil - e a oportunidade que estamos prestes a perder.
Eu poderia me alongar indefinidamente sobre este livro, que superou Castelo Falkenstein como meu RPG favorito. Mas o verdadeiro ponto aqui é a publicação dele no Brasil.
O jogo está atualmente em financiamento coletivo no Meeple Starter. Apesar de eu estar, de certa forma, promovendo a obra, deixo claro que não tenho qualquer vínculo com a editora ou a plataforma, nem conheço alguém envolvido no projeto. Mesmo assim, como fã e ansioso para ter uma cópia física do que hoje só possuo impresso em A4, apoiei o financiamento logo no primeiro dia.
O problema? Estamos entrando nas últimas semanas da campanha, e o jogo ainda não atingiu nem 60% da meta (até a data de publicação deste texto).
Isso me fez refletir: como pode um jogo tão aclamado lá fora enfrentar tantas dificuldades para ganhar espaço aqui? Será que o gosto do público brasileiro para RPG é tão diferente do dos europeus e norte-americanos?
Minhas primeiras suposições (baseadas em puro achismo e observação, então levem isso em conta!) apontavam para o público-alvo da Meeple Starter, que imaginei ser mais focado em boardgames do que RPGs. No entanto, esse argumento desmorona quando vemos Tanares RPG, um cenário de D&D, alcançar quase 1000% da meta de financiamento de MÖRK BORG na mesma plataforma. Assim, só posso concluir que o problema está na divulgação e nas parcerias. A editora que está por trás do projeto é pequena, e, se não estou enganado, este deve ser seu primeiro financiamento coletivo. Provavelmente, ainda não possui estrutura para alcançar grandes influenciadores, com a divulgação se limitando quase exclusivamente às postagens no perfil do Instagram, atingindo um nicho pequeno e enfrentando dificuldades para expandir além dele. O produto é excelente, mas, se não chega ao público, é como se ele nem existisse. Concordam?
É intrigante ver como outros projetos, muitas vezes apenas "mais do mesmo" conseguem tanta visibilidade e financiamento. Talvez o segredo esteja nos brindes — chaveiros, pelúcias, merchandising — que editoras menores não conseguem oferecer por falta de contatos ou estrutura. No fim, nós, entusiastas de livros e regras, não devemos criar expectativas, mas manter as esperanças.
Se você leu até aqui, muito obrigado. Foi um desabafo porque desenvolvi um carinho profundo por esse jogo.
Abraço a todos,