Oi, Davi.
Acabei esquecendo de responder a sua pergunta sobre o mercado estar ou não em um "vazio criativo"!
Como alguém que trabalha diretamente na indústria criativa (sou Designer de móveis), me sinto na obrigação de dar uma contribuição para o desembaraço dessa questão.
Essa é uma pergunta meio capiciosa... porque ela tira o foco do ponto principal e eu acho que vou conseguir explicar o porquê. Eu tenho duas respostas para ela, uma simples e outra mais... complicada?!
A simples primeiro:
Não exatamente, apesar de parecer que sim. - e olha que essa é a resposta mais simples! - XD
A originalidade e inventividade continuam permeando o meio da indústria criativa. Elas só não encontram espaço para se desenvolverem e serem distribuídas adequadamente, no meu ponto de vista. Cada vez mais é algo que está fora do escopo das grandes empresas, ironicamente, pois ela não querem mais assumir o risco do desenvolvimento de algo que não entrega a garantia do retorno sobre o seu investimento. O ônus dessa responsabilidade está sendo assumido por terceiros, sejam pessoas físicas ou pessoas jurídicas. Por isso há muitos autores e estúdios independentes criando e desenvolvendo novas propostas, buscando dessa maneira garantir sua fatia do mercado. E é algo que provavelmente crescerá mais, se o mercado continuar se expandido. Mas não são todas as ideias que veem a luz do dia, como está bem óbvio para nós. Dá para entender que as pessoas tenham essa percepção, especialmente porque tudo o que chega para nós já passa por um crivo muito forte: o do "mercado".
É visto como normal que as empresas tenham receio de assumir o risco de lançar tendências e novidades no mercado. Logo o que já vende tende a ser replicado incansavelmente.
Essa postura... reativa eu diria, para não pegar pesado, junto com todos os seus mecanismos de controle de qualidade, promovem a padronização -"standardização" - dos processos e por consequência dos produtos também. E não sou eu quem está dizendo isso, pois isso não é uma opinião. É uma meta estabelecida pela própria indústria.
Você pode perguntar a qualquer um que trabalhe com controle de qualidade ou engenharia de produção e essa pessoa, se estiver minimamente informada, vai ratificar o que eu digo.
O que quero dizer é que ocorre na indústria dos jogos de tabuleiro algo semelhante ao que ocorre na indústria automotiva. O estabelecimento de plataformas de produção.
Mas para não ficar no disse que disse, vou trazer aqui uma citação da página de apresentação do conceito pela Knauf Industries:
- "O termo plataforma de carro refere-se a um conjunto de soluções iguais ou muito semelhantes utilizadas como base para a produção de diferentes modelos de carros. O mercado automotivo não tem escassez de veículos criados dessa forma - um exemplo é o Fiat 500, que compartilha uma plataforma, por exemplo, com o Ford Ka."
- "O desenvolvimento de plataformas de carros envolve principalmente a padronização de certos elementos relacionados à produção de um veículo. Isso é feito para reduzir custos, mas também para garantir que o foco principal seja colocado no desenvolvimento de outros elementos do design do carro. De particular importância aqui é a redução do tempo desde a criação do conceito do carro até o lançamento do produto acabado. O uso de engenharia conjunta permite que os fabricantes reduzam significativamente o chamado parâmetro de tempo para a entrada no mercado."
- "Entre outras coisas, esta abordagem é caracterizada por maior flexibilidade em comparação com as soluções utilizadas anteriormente. Isso se deve ao fato de que muitos componentes podem ser modificados, embora o escopo exato das alterações dependa do fabricante específico."
Fonte: http://knaufautomotive.com
Fiz uma leve adaptação do texto, traduzindo termos que estavam em inglês.
A essa altura você pode estar pensando que
"isso não tem nada a ver com o último lançamento da Calango Jogos"!...
Volte às citações e substitua as palavras
"carro", "veículo" e
"automotivo" por "jogos de tabuleiro"
.
Eu dei essa volta toda para dizer que as pessoas se esquecem que o Design é tecnologia.
E
que a criatividade é um processo passível de ser padronizado como outro qualquer. Ela não só é passível de ser padronizada, como ela é.
É claro que essa não é uma regra escrita em pedra. Há diversos autores que tentam e conseguem "fugir" dessa lógica produtivista, mas no geral é assim que a banda toca. Cada vez mais. E nós, enquanto consumidores e produtores, estamos reproduzindo a lógica estrutural dos jogos criados e desenvolvidos por pessoas e empresas que se consolidaram reafirmando essa prática. É inclusive por isso, dentre outras coisas, que é tão difícil emplacar um jogo nacional que não respeite os padrões de "boas práticas em Design", estabelecidos internacionalmente pelas empresas e
think tanks desse campo. São produtos vistos como de "má qualidade". Não surpreende também que surjam empresas brasileiras com nomes em inglês, focando os seus lançamentos no mercado internacional, mimetizando as práticas e identidades corporativas de empresas do exterior.
Pode parecer um salto lógico muito grande o que vou fazer agora, mas vou cravar assim mesmo.
Minha conclusão é que a indústria, de um modo geral, escolheu estar assim.
A indústria sempre está em crise porque ela precisa da crise para existir. Sem a crise no presente ela não pode vender a esperança no futuro.
É exatamente porque há uma insatisfação com os jogos atuais que a indústria pode vender a expectativa de que serão lançados jogos melhores no futuro.
Mas não se desespere (muito) porque isso é absolutamente normal(?!) rs
Se a crise é criativa ou não, pouco importa. O que importa é que Dixit continue vendendo.
Para entender melhor o que eu disse, é preciso uma explicação mais aprofundada e complexa.
Agora sim,
eu prometi a resposta complicada:
Nós estamos presenciando o estabelecimento de uma nova dinâmica de acumulação do capital em escala global.
Enquanto periferia do sistema econômico e produtivo, assistimos à nossa revelia o desenrolar desse processo que chega para nós de forma imposta.
Não temos a opção de fazer diferente, por nossa própria sorte, sem a disposição para sofrer com as consequências drásticas desse ato.
A isso que as pessoas chamas de crise criativa, Gui Bonsiepe, um expoente do estruturalismo no campo do Design de Produtos, chama do estabelecimento de padrões retóricos, dentro da sua Metodologia Projetual. Diversos pensadores discutem como se dá e qual é o impacto da reprodutibilidade técnica da obra de
arte (em seu sentido mais amplo) no processo de construção do gosto, da captura da subjetividade humana, dentre eles Walter Benjamim, Vilém Flusser e, mais recentemente, Gilles Lipovetsky.
Nada disso é algo muito novo. A novidade é a dimensão que isso tomou, a extremação desse processo, e o fato de que as pessoas que consomem jogos de tabuleiro provavelmente não leram nenhum dos autores que eu citei anteriormente. XD